segunda-feira, 3 de junho de 2013

3 –Junho (domingo). [1990]

Exerço sobre mim uma enorme violência para me pôr para aqui a escrever. Porque estou tão em baixo no meu psiquismo, que a única reacção plausível era pôr-me de mono com a vida, enrolado a um canto dela e ficar para ali a apodrecer. Estou farto. De quê? Farto. Das sacanices do corpo, das sacanices dos meus irmãos em humanidade, de olhar para o futuro e não haver lá futuro, de tudo o que fiz, do que já não posso fazer, do peso do fim que se abate sobre mim como uma laje. Ainda agora, para me dar também um beliscão, a merdícola de mais um dente. O filho da puta está a abanar e estou agora sempre à espera que ele caia de podre. Como é terrível de humilhação ver o corpo a degradar-se. Eu tenho um longo treino disso desde a juventude, mas o resultado não é a resignação – é rebentar de já não poder mais. E como fica já longe, mesmo a gloríola que sempre foi de dar-me um afago na alma. Ontem estive a rever a tradução francesa de Até ao Fim. Com que tédio e fadiga e desinteresse. Tudo se quer no seu tempo e os nabos pelo Advento – dizia-se em Melo na minha infância. A glorícula era quando me achavascavam de todos os lados os comunas e os seus fâmulos. O meu país literário só agora parece resignado com eu existir. Mas na realidade, que é que eu tenho a ver com o meu país literário? Só lhe devo insultos porque somos dois estranhos. Em abastecimento de cultura, de gosto, de interesse para o que me interessa, mesmo de parceiros para encostar, o meu país deu-me muito pouco. Ponto final, está bem? 
*
Ontem o Lúcio, quando do seu telefonema diário aqui para Fontanelas, disse-me muito excitado que um dente fóssil de um dinossauro que tenho no escritório, somava não sei quantos milhões de anos. Estava a ouvir um programa de TV e ouviu. Tenho realmente um dente de dinossauro [1] de milimétrica perfeição: o triângulo do dente e um rendilhado finíssimo na aresta, decerto para melhor poder serrilhar os vegetais. Milhões de anos. Mas o dente-fóssil é tão exacto e presente ali na sua realidade objectiva, que nunca me dei à vibração sensível de reflectir que ele tinha funcionado muitos milhões de anos antes de aparecer o primeiro homem e de partir da Andrómeda a luz com que a estamos a ver. Vou retomar o dente quando voltar a Lisboa. E talvez me reconforte a ideia do nada que é a minha preocupação com o dente que é meu e está a cair. Ou mais por largo, a ideia de como é nada o acidente intervalar de haver depois dos dinossauros a esquírola raspada no grande tronco das espécies e que e a humana…
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E de novo me volta a questão fundamental que melhor toma clamoroso o absurdo de uma religião: no tempo dos dinossauros, que poderia significar a palavra «Deus»? Num suposto universo feito de bolas de pedra cheias de buracos, que é queria dizer a criação divina? Para os milhões e milhões de anos anteriores à espécie humana e para os milhões e milhões que se lhe seguirão, que é que quer dizer o ápice instantâneo da sua duração e o que durante ela inventou de deuses e religiões?


[1] É de um tubarão. Tem seis (?) milhões de anos. Disse-mo o Galopim de Carvalho há dias (Fev. 93) que é autoridade em dinossáurios e foi aluno da Regina. Lá lho deixei. 

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