domingo, 16 de junho de 2013

16 – Junho (sábado). [1990]

16 – Junho (sábado). Escrevo um pouco para pôr em movimento o mecanismo de escrever. Porque me vai faltando. O escrever foi sempre para mim uma necessidade. Não bem por ter coisas para dizer mas para dar vazão ao impulso que me vinha de dentro e precisava de chegar ao terminal, que era o acto de escrita. Assim o que havia a dizer nascia um tanto do próprio acto da escrita em que os movimentos que a traçavam geravam em si aquilo mesmo que escrevia. Em todo o caso o fundamental era a mistura do que precisava de dizer, o acto em que isso era a realidade traduzida. Estou bastante paralítico não bem por não ter coisas a dizer, mas porque o dizê-las me é pouco necessário. Porquê? Não sei. Há o desagradável da repetição, mesmo que me não repita, porque ser eu o mesmo que as diz, as toma mesmas a elas. E há o desencorajamento nascido do vazio do Mundo de hoje em que o dizer esse vazio é já um vazio. E há o cansaço de viajar sozinho nesta estúpida aventura de escrever. Os meus confrades em escrita não me aceitam na sua generalidade. Porque a literatura do meu tempo só é reconhecida na medida em que retoma e remói e glosa a herança do «Orpheu». Eu também passo por lá – mas só pelo que é menos aceite em Pessoa e que é o que remonta a Dostoievski, Pascal, Santo Agostinho, Marco Aurélio, Sófocles… Do Orpheu o que veio até nós e é entronizado é o que se concretizou na palhacice do Almada e floresceu no surrealismo de alguns. A gravidade da vida, a vertigem da nossa desorientação não tem o aval da opinião oficializada. O riso intrometeu-se-me na escrita não sei como. E é o que me recolhe alguma tolerância dos meus inquisidores.
Mas banda de lamúria que me é um vício insuportável. Está um belo dia de sol com pássaros a explica-lo, como diabo o não aprendo? São pássaros que cumprem o seu horário sobretudo pela manhã. Decerto para criarmos embalagem para o resto do dia. E há o monte de jornais a desbastar. Num semanário tiro os meus apontamentos mentais sobre o grande arraial que vai pelos profissionais da filosofia. É um saber que eu não sabia ser de saber na maior parte dos currículos secundários dos países europeus. Isto constitui um argumento de autoridade para o regime de dieta que ainda se nos consente. E porque é que esse argumento não funciona por exemplo para o caso do Latim? Porque nesses tais países latiniza-se com aplicação. Mas acabou-se: num país sem filósofos não é justificável que se filosofe em excesso. Há em todo o caso um pormenor que me entala o pensar e é que o programa proposto aposta na contemporaneidade. E a contemporaneidade que se topou foi a da filosofia analítica. Ora se uma questão primordial é o problema da «verdade», porque é que a fenomenologia e sobretudo um Heidegger não são chamados à conversa? Por mim, aliás, também tentei dar um contributo à contenda. Mas sou, como se sabe, um tipo doentiamente modesto e não vou repetir-me. Estes filósofos magistrais. Eles ainda não descobriram que toda a doutrinação filosófica é de um equilíbrio original que parte. E que não há assim «contradição» entre as várias «filosofias» como a não há entre as várias correntes estéticas, devendo, aliás, se se defende a eliminação da História da Filosofia nos liceus, eliminar-se também a da Literatura, se ainda se não eliminou (como a História tout court) ou como nas várias religiões ou nas várias políticas. E mais chegados para cá, é isso que torna compreensível o que separa o pobre do Cunhal do emérito Diogo. Mas acabou a conversa.

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