16 – Junho (sábado). Escrevo um pouco
para pôr em movimento o mecanismo de escrever. Porque me vai faltando. O
escrever foi sempre para mim uma necessidade. Não bem por ter coisas para dizer
mas para dar vazão ao impulso que me vinha de dentro e precisava de chegar ao
terminal, que era o acto de escrita. Assim o que havia a dizer nascia um tanto
do próprio acto da escrita em que os movimentos que a traçavam geravam em si
aquilo mesmo que escrevia. Em todo o caso o fundamental era a mistura do que
precisava de dizer, o acto em que isso era a realidade traduzida. Estou
bastante paralítico não bem por não ter coisas a dizer, mas porque o dizê-las
me é pouco necessário. Porquê? Não sei. Há o desagradável da repetição, mesmo
que me não repita, porque ser eu o mesmo que as diz, as toma mesmas a elas. E
há o desencorajamento nascido do vazio do Mundo de hoje em que o dizer esse
vazio é já um vazio. E há o cansaço de viajar sozinho nesta estúpida aventura
de escrever. Os meus confrades em escrita não me aceitam na sua generalidade.
Porque a literatura do meu tempo só é reconhecida na medida em que retoma e
remói e glosa a herança do «Orpheu».
Eu também passo por lá – mas só pelo que é menos aceite em Pessoa e que é o que
remonta a Dostoievski,
Pascal, Santo Agostinho, Marco Aurélio, Sófocles… Do Orpheu o que veio até nós e é
entronizado é o que se concretizou na palhacice do Almada e floresceu no
surrealismo de alguns. A gravidade da vida, a vertigem da nossa desorientação
não tem o aval da opinião oficializada. O riso intrometeu-se-me na escrita não
sei como. E é o que me recolhe alguma tolerância dos meus inquisidores.
Mas banda de
lamúria que me é um vício insuportável. Está um belo dia de sol com pássaros a
explica-lo, como diabo o não aprendo? São pássaros que cumprem o seu horário
sobretudo pela manhã. Decerto para criarmos embalagem para o resto do dia. E há
o monte de jornais a desbastar. Num semanário tiro os meus apontamentos mentais
sobre o grande arraial que vai pelos profissionais da filosofia. É um saber que
eu não sabia ser de saber na maior parte dos currículos secundários dos países
europeus. Isto constitui um argumento de autoridade para o regime de dieta que
ainda se nos consente. E porque é que esse argumento não funciona por exemplo
para o caso do Latim? Porque
nesses tais países latiniza-se com aplicação. Mas acabou-se: num país sem
filósofos não é justificável que se filosofe em excesso. Há em todo o caso um
pormenor que me entala o pensar e é que o programa proposto aposta na
contemporaneidade. E a contemporaneidade que se topou foi a da filosofia
analítica. Ora se uma questão primordial é o problema da «verdade», porque é
que a fenomenologia e sobretudo um Heidegger não são chamados à
conversa? Por mim, aliás, também tentei dar um contributo à contenda. Mas sou,
como se sabe, um tipo doentiamente modesto e não vou repetir-me. Estes filósofos
magistrais. Eles ainda não descobriram que toda a doutrinação filosófica é de
um equilíbrio original que parte. E que não há assim «contradição» entre as
várias «filosofias» como a não há entre as várias correntes estéticas, devendo,
aliás, se se defende a eliminação da História da
Filosofia nos liceus, eliminar-se também a da Literatura, se ainda se não
eliminou (como a História tout court)
ou como nas várias religiões ou nas várias políticas. E mais chegados para cá,
é isso que torna compreensível o que separa o pobre do Cunhal do emérito
Diogo. Mas acabou a conversa.
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