domingo, 9 de junho de 2013

9 – Junho (sábado). [1990]

Sinto cada vez menos gosto em vir aqui assinar o ponto. É esse um sinal de que já vão sendo horas de apenas existir e ser analfabeto. Mas há que combater o analfabetismo e aqui estou. Aliás, um sinal de que a invenção da escrita foi uma aberração do homem, tive-a hoje no facto pela primeira vez, desde que tenho autoconsciência, vir de Lisboa para Fontanelas sem trazer a minha pasta de folhas em branco para lavrar. Valeu-me ter cá esta para ser lavrador.
Ora bem, e para dizer o quê? Naturalmente para me cumprir como sub-humano pela forma mais vocacionada de o ser que é sê-lo pela lágrima. E porque choro? Que pergunta. Motivos são aos centos como em quem é desgraçado. Desta vez foi a surpressão de mais um dente lá para trás. Resta-me aí agora só um como um poste telegráfico num descampado. Mas sem mensagens para transmitir. E há mais candidatos à aposentação. Porque não ser antes careca do que desdentado? Que nojo uma boca sem dentes. E que coisa tão parecida com a morte. Acabou-se, menos um dente.
E cheio de dores ainda no sítio do infortúnio, fui almoçar com a Teresa Gouveia, que é hoje administradora da Bertrand. Gostei. Dela, não do almoço pela minha quase invalidez almoçadeira. Creio que percebi qual era o seu intuito. A ver se lhe dou uma volta. Houve um convite para assistir à reunião da Administração nova e folclórica da casa, mas eu tinha um compromisso poético a cumprir e abstive-me. Era o caso que a minha afilhada Arnalda, filha de uma minha prima direita, lançava um seu livro lírico e era da minha obrigação e devoção assistir. Pertence ela a um grupo de poetas que não giram na órbita dos compêndios literários mas que se parecem imenso com os poetas profissionais, com as suas edições, o seu órgão poético, a sua confraternização e decerto rivalidade de vates, os seus recitais e o mais que pertence aos poetas que jogam na primeira divisão. Mas não vou alongar-me porque estou fatigado. Hoje viemos para Fontanelas. Trouxe comigo a notícia de alguns amigos que já leram o meu livro e morderam nele com voracidade. Um disse-me:
– Li o primeiro capítulo e achei tão belo, que não tenho coragem de ler mais nada.
Lá o animei como pude a prosseguir. Talvez houvesse ainda mais coisas comestíveis. Trouxe também algumas rosas de um ramo delas que me enviou a Maria Cavaco Silva em agradecimento do romance que lhe mandei a ela e ao marido. E pronto. Agora estamos aqui a vegetalizar um pouco. Não está frio. Não está calor. Almoçámos em Janas porque o restaurante do Zé está fechado para restauração do pessoal. Depois fomos abastecer-nos. No quintal de uma casa que dá para o coreto, há um cão perdigueiro, preso à sua corrente, e que vem empinar-se para o muro a ladrar ao Universo. E eu esperava que a Regina voltasse da loja e pus-me a olhar o cão. E foi minha ideia que ele sofria de clausura e da necessidade de comunicação humana. E fui até ele que estava empinado no muro. E cocei-lhe a cabeça. E ele deixou de ladrar e deitou a cabeça de lado numa paz de adormecer. Depois interrompi a coçadeira e ele voltou a ladrar. E eu cocei-lhe outra vez o crânio e ele deitou outra vez de lado a cabeça como quem achou sossego na alma. E eu disse-lhe – aguenta! Tu ao menos podes ladrar e clamar alto o teu protesto. Mas e eu? Não me posso pôr para aqui a ladrar senão metem-me num manicómio. Tu és feliz. A única coisa que te põem é uma corrente ao pescoço. E há sempre a hipótese de uma alma caridosa te coçar o toutiço. E a mim quem é que mo coça? E eu sou o rei da criação que sempre está acima de um canídeo. Ladra, ladra, que és feliz.
E foi quando a Regina voltou com as cargas merceeiras e acabou-se a conversa.

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