terça-feira, 11 de junho de 2013

Luanda, 11 de Junho de 1973

Luanda, 11 de Junho de 1973 – Despedida de Luanda, primeiro a visitar as igrejas da Senhora da Nazaré e de Jesus, bem bonitas por sinal, erguidas no tempo em que tínhamos fé e fazíamos coisas bonitas; depois, a pasmar do desenfado das avenidas e a espreitar a suspicácia dos musseques; por fim, a ver um pôr do sol feérico do alto da fortaleza. Ao lusco-fusco regressei melancolicamente a casa, situada perto do campo entrincheirado da aviação militar. Guaritas, fortins, arame farpado. E as imagens edificantes, empolgantes ou inquietantes, recolhidas ao largo do meu passeio, fundem-se insensivelmente na grande imagem castrense que tenho agora diante dos olhos. Um preto que ao lado guarda uma casa em construção – para um branco, claro – assobia. E o som, que deve ser melódico, rasga-me o ouvido. Tenho a impressão de que estou a ser vaiado.
– Sente-se mal? – pergunta alguém, ao ver-me inquieto.
– É do ar bélico que se respira, pouco salubre…
– Tem de ser… Foi horrível, acredite!
E não me contenho. Despejo finalmente o saco:
– Acredito. Mas fico na minha. Numa moral primitiva, o vencedor destrói o vencido. Decapita-o, esquarteja-o, devora-o. É bárbaro, é intolerável, mas é a sua lógica guerreira. Sabe-se lá que remotas implicações rituais, ou mesmo religiosas, estão por detrás desses excessos! O que em termos de cultura ocidental é uma aberração que brada aos céus, para ele pode ser uma afirmação étnica e ética. Nós é que, com o tempo e o vagar dos séculos, não lhe soubemos comunicar outros valores que na guerra fossem tão invioláveis como na paz. Na sua exemplaridade trágica, os massacres foram o sinal eloquente da nossa falência civilizadora.

Miguel Torga

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