A voar para Moçambique, 1 de Junho de
1973 – Tenho de me render à evidência: o homem que voa dimensiona o mundo
de outra maneira. Que perspectiva poderia eu levar da imensidão africana, a
calcorreá-la a passo de caranguejo? A vida inteira não chegaria para traçar
nela meia dúzia de coordenadas. Assim, de um só relance, abranjo a infinita
grandeza deste corpo febril e sonolento, ao mesmo tempo despido e inviolado.
Corpo onde altas serras e cordilheiras infindáveis são rugas insignificantes, e
rios intermináveis e caudalosos parecem veias exangues. Até o absurdo de eu o
espreitar de mil metros de altura, comodamente instalado numa cadeira e a
respirar ar condicionado, torna mais significativa a minha observação. Vou
comparando duas realidades: aquela a que pertenço, já quase angélica de tão
abstracta, e a que leveda lá em baixo, ao rés-do-chão, concreta, terrosa, ainda
larvar. A distância que vai da Lusaka,
que neste preciso momento espreito pelo postigo, à Florença que me acode ao
bico da pena! Que esforço terá de fazer o negro para chegar ao palácio da
Senhoria, e que desnudamento é necessário a um europeu para regressar, mesmo em
imaginação, à primitiva decência de uma cubata!
Miguel Torga
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