Desde
há uns anos a esta parte que ando com uma estranha sensação de frialdade nos
ossos. E como, desde que me conheço, sempre ouvi dizer que o melhor remédio
para o frio ainda é o calar, adquiri o hábito de me expor ao sol. E como (assim
a comer ainda rebento…) abomino as praias do Porto e arredores, sempre cobertas
de nevoeiro ou varridas pela nortada, refugio-me em Peireses onde o sol, por
norma, anda sempre de cara descoberta. Agarro num liteiro, vou até à margem
direita do meu pátrio Regavão, escolho um sítio discreto e estendo-me como um
lagarto.
Por
falar em lagartos. O medo que as raparigas do meu tempo lhes tinham… Desde
garotitas que lhes impingiam a peta de que os lagartos eram doidos por pernas e
petas de raparigas…
«A saia da Carolina
Tem um lagarto pintado
– Carolina dá à perna
O lagarto dá ao rabo.»
Creio
que era assim que se cantava.
Fosse
que não fosse, muito me ria eu quando uma garota, à vista dum lagarto, largava
a correr de saia apanhada entre pernas.
As
petas que nos impingiam…
Minha
Mãe recomendava:
– Tu
não adormeças! Pode vir uma cobra e meter-se-te na boca.
E
exemplificava:
– Aconteceu
isso a um rapaz de Rabodasno. A cobra ficou metade dentro e metade fora, e,
depois, com a parte de fora, que era a do rabo, chicoteava as orelhas do menino.
Tiveram de lhe proteger a cabeça com uma cesta. Vi-o eu, a caminho de
Montalegre, o rabo da cobra a bater na cesta: trás, trás, trás. Parecia o rabo
dum burro a enxotar as moscas. Não adormeças, filho!
O
que minha Mãe queria era que eu não adormecesse para não deixar ir as vacas aos
lameiros dos vizinhos. Mas as crianças acreditam em tudo o que lhes dizem e eu
passei a odiar as cobras. Ainda hoje tenho pesadelos com elas. Mas é engraçado.
Nunca, em sonhos, uma cobra me atacou pela boca. Ataca-me sempre pelos pés. E
aí é que o pesadelo principia. Eu quero recolher os pés e não consigo. Que
aflição! Acordo sempre coberto de suores frios. Odeio cobras.
Já
o mesmo não direi dos lagartos. Até certo ponto, simpatizo com os tipos. Acho
que temos algo em comum: o prazer do sol. Eles, por terem o sangue frio, dizem,
que lá disso não percebo nada. Eu, por ter frio nos ossos.
Ou
talvez a minha simpatia pelos lagartos venha de muito mais longe, lá dos meus
remotos tempos de pastor de vacas. Mau grado o sermão diário de minha mãe, um
dia deitei-me à sombra dum carvalho e adormeci de papo para o ar. Nisto, sinto
qualquer coisa no pescoço, acordo assarapantado e que vejo eu? Um lagarto de palmo
e meio numa corrida doida, a toda a velocidade das suas quatro patitas desajeitadas
como barbatanas em seco. Volto-me para ver do que é que ele fugia e encaro numa
cobra enorme direita comigo. Levanto-me de golpe, ah, pernas para que vos
quero!, direito ao portal, encosta arriba, só parei bem lá no alto, sem que
primeiro não olhasse duas ou três vezes para trás, a certificar-me de que o
monstro me não perseguia.
À
noite contei a proeza em casa:
– Tinha
para aí dois metros de comprimento, uma cabeçorra assim!
E
juntava as duas mãos fechadas, para dar uma ideia do tamanho da cabeça da
cobra.
Minha
Mãe pegou logo na vassoira de giesta para me sacudir o pó.
– Oh,
Mãe! Eu estava acordado! O lagarto é que vinha tão cego na corrida que nem me
deu tempo de me levantar.
– Acossado
pela cobra, cortou a direito – assentiu o meu Pai.
– Sabes,
meu meninho? – acode de lá a tia Ermelinda do Mandes que tinha vindo pedir um
pão emprestado e assistia à conversa. – Talvez esse lagarto seja um príncipe
encantado que te quis avisar do perigo.
– Um
quê, tia Ermelinda?
– Nunca
ouviste contar a história do «Príncipe Lagarto»?
– Não
senhora.
– Queres
ouvir?
– Quero!
A
tia Ermelinda contou-me a história do «Príncipe Lagarto».
Já
me não lembro bem dela. Mas ainda hoje estou convencido de que os lagartos são
príncipes. Basta olhar para eles com aquelas vestes reais, verde, púrpura e
oiro, principescamente estendidos ao sol.
Não
haja dúvida. Gosto dos lagartos. Temos alguma coisa em comum – o culto deste
magnífico sol de Peireses.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II
– Crónicas de Barroso (p. 62 e ss.)
Sem comentários:
Enviar um comentário