terça-feira, 18 de junho de 2013

O PRÍNCIPE LAGARTO

Desde há uns anos a esta parte que ando com uma estranha sensação de frialdade nos ossos. E como, desde que me conheço, sempre ouvi dizer que o melhor remédio para o frio ainda é o calar, adquiri o hábito de me expor ao sol. E como (assim a comer ainda rebento…) abomino as praias do Porto e arredores, sempre cobertas de nevoeiro ou varridas pela nortada, refugio-me em Peireses onde o sol, por norma, anda sempre de cara descoberta. Agarro num liteiro, vou até à margem direita do meu pátrio Regavão, escolho um sítio discreto e estendo-me como um lagarto.
Por falar em lagartos. O medo que as raparigas do meu tempo lhes tinham… Desde garotitas que lhes impingiam a peta de que os lagartos eram doidos por pernas e petas de raparigas…

«A saia da Carolina
Tem um lagarto pintado
– Carolina dá à perna
O lagarto dá ao rabo.»

Creio que era assim que se cantava.
Fosse que não fosse, muito me ria eu quando uma garota, à vista dum lagarto, largava a correr de saia apanhada entre pernas.
As petas que nos impingiam…
Minha Mãe recomendava:
– Tu não adormeças! Pode vir uma cobra e meter-se-te na boca.
E exemplificava:
– Aconteceu isso a um rapaz de Rabodasno. A cobra ficou metade dentro e metade fora, e, depois, com a parte de fora, que era a do rabo, chicoteava as orelhas do menino. Tiveram de lhe proteger a cabeça com uma cesta. Vi-o eu, a caminho de Montalegre, o rabo da cobra a bater na cesta: trás, trás, trás. Parecia o rabo dum burro a enxotar as moscas. Não adormeças, filho!
O que minha Mãe queria era que eu não adormecesse para não deixar ir as vacas aos lameiros dos vizinhos. Mas as crianças acreditam em tudo o que lhes dizem e eu passei a odiar as cobras. Ainda hoje tenho pesadelos com elas. Mas é engraçado. Nunca, em sonhos, uma cobra me atacou pela boca. Ataca-me sempre pelos pés. E aí é que o pesadelo principia. Eu quero recolher os pés e não consigo. Que aflição! Acordo sempre coberto de suores frios. Odeio cobras.
Já o mesmo não direi dos lagartos. Até certo ponto, simpatizo com os tipos. Acho que temos algo em comum: o prazer do sol. Eles, por terem o sangue frio, dizem, que lá disso não percebo nada. Eu, por ter frio nos ossos.
Ou talvez a minha simpatia pelos lagartos venha de muito mais longe, lá dos meus remotos tempos de pastor de vacas. Mau grado o sermão diário de minha mãe, um dia deitei-me à sombra dum carvalho e adormeci de papo para o ar. Nisto, sinto qualquer coisa no pescoço, acordo assarapantado e que vejo eu? Um lagarto de palmo e meio numa corrida doida, a toda a velocidade das suas quatro patitas desajeitadas como barbatanas em seco. Volto-me para ver do que é que ele fugia e encaro numa cobra enorme direita comigo. Levanto-me de golpe, ah, pernas para que vos quero!, direito ao portal, encosta arriba, só parei bem lá no alto, sem que primeiro não olhasse duas ou três vezes para trás, a certificar-me de que o monstro me não perseguia.
À noite contei a proeza em casa:
– Tinha para aí dois metros de comprimento, uma cabeçorra assim!
E juntava as duas mãos fechadas, para dar uma ideia do tamanho da cabeça da cobra.
Minha Mãe pegou logo na vassoira de giesta para me sacudir o pó.
– Oh, Mãe! Eu estava acordado! O lagarto é que vinha tão cego na corrida que nem me deu tempo de me levantar.
– Acossado pela cobra, cortou a direito – assentiu o meu Pai.
– Sabes, meu meninho? – acode de lá a tia Ermelinda do Mandes que tinha vindo pedir um pão emprestado e assistia à conversa. – Talvez esse lagarto seja um príncipe encantado que te quis avisar do perigo.
– Um quê, tia Ermelinda?
– Nunca ouviste contar a história do «Príncipe Lagarto»?
– Não senhora.
– Queres ouvir?
– Quero!
A tia Ermelinda contou-me a história do «Príncipe Lagarto».
Já me não lembro bem dela. Mas ainda hoje estou convencido de que os lagartos são príncipes. Basta olhar para eles com aquelas vestes reais, verde, púrpura e oiro, principescamente estendidos ao sol.
Não haja dúvida. Gosto dos lagartos. Temos alguma coisa em comum – o culto deste magnífico sol de Peireses.

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 62 e ss.)

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