Quando estávamos em Évora e celebrávamos o Natal em casa do
Alberto Silva – mas não falei já disto? – entre os discos que se tocavam sempre
havia um do trio Odemira
que nunca mais esqueci. Lembrava-me mesmo que era da Columbia e tinha o rótulo
verde. E tantas vezes falei nele, que o Alberto Silva mo trouxe há dias. Lá
estava o rótulo verde e o nome da editora. Pedi então ao Lúcio que mo passasse
a cassete para mais fácil utilização. E agora, de vez em quando, volto a ouvi-lo.
Que estranho poder de encantamento e a paralela impossibilidade de o dizer. Não
ouço música alguma sem um enquadramento imaginário qualquer, o que deve ser um
sinal de inferioridade para um ouvinte encartado. A música deve ouvir-se por
si, na pura organização dos sons, na essência de si própria que é o ser música
sem mais. Isto o penso eu porque jamais ouvi esta blasfémia a um perito nessa
arte. Mas eu confesso que música por música, só a dissonância moderna ou mais ainda
a música desconexa ou sobretudo a dita «concreta». A música é-me o transporte
para o que não sei mas vou imaginando enquanto a ouço. Às vezes não há um
referente dizível. Mas há sempre alguma coisa mais para que aponta, nem que
seja o próprio encantamento em si em que a música já se não ouve. Há a música dos longes infinitos,
como certas aberturas de Wagner
ou naturalmente o Novo Mundo de Dvorak.
Há a dos grandes espaços cósmicos como a de Bach, etc. Este Natal do trio
Odemira funciona como certos aromas ou paladares em Proust. E o Natal de há
trinta anos recupera-se-me inteiro à evocação comovida. Há um grande
apaziguamento na alma, um certo calor brando de um conforto e abandono para
todo o sempre, um desejo intenso de desistência, um esquecimento do que se
agita no vento e frio lá de fora. E insinuadamente, um a um vêm vindo à memória
os amigos que morreram. Nunca mais. É uma melancolia calma de aceitação e passividade.
Não pessimismo ou mesmo tristeza ou doença. Aceitação. Serenidade. E no meio
uma alegria que não chega a ser alegre e deve parecer-se com o que se diz de
uma sabedoria final. Nunca mais. Tentar reconstituir esse passado, mesmo com a
presença dos que morreram, seria um logro incomensurável. Não é o passado que
importa, mas só o encantamento que há nele, à memória longínqua de ter sido.
Uma paz que não houve, senão no podê-la haver um dia e que é hoje. E uma
beatitude infinita no absoluto de a poder inventar.
VF
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