segunda-feira, 29 de abril de 2013

29 – Abril (domingo). [1990]

       Hoje o Gilo faz 48 anos. Quase cinquentenário – digo-lhe –, já um período para haver História. E para comemorarmos o feliz evento, vamos inaugurar o almoço de Verão na Feira Popular. E enquanto esperamos pela hora, ouço em «disco compacto», que ele me ofereceu, trechos de Bach (Fantasia, Fuga, Corais). É uma música de órgão e assim mesmo logo ritual ou sagrada. Pergunto-me porque tanto me emociona e não sei bem. Música de largos espaços mas que não tem nada que ver com o carácter espacial da de um Wagner ou da Sinfonia do Novo Mundo de Dvorak. Porque o espaço destes é da superfície da Terra e o de Bach do Universo, de um espaço vazio e cósmico, do interior do que existe, do seu Ser. Música do infinito e do sem-tempo, de um mundo desabitado, confrontado com a divindade, como se antes mesmo da sua criação. O que em mim nela escuta é a pureza do meu silêncio interior, a suspensão do que em mim respira e sente, de uma graça que sobre mim descesse e me despegasse de tudo o que há de terreno, a eternidade do meu corpo, transfundido de tudo o que nele é perecível e prometido à morte. Porque é no meu corpo que a escuto, no transcendente da sua miséria e degradação. Música de Bach. Música das constelações, de astros mortos perdidos no impensável do infinito. Alegria calma de existir. Sagração de mim.
*
       Tudo tem um outro de si, que é o inominável e irredutível. Porque darmos um nome é trazê-lo à nossa posse, dominá-lo, criá-lo na ordem das coisas. Mas se o nomeamos e o materializamos em coisa, ele exige um outro além de si, ou seja do que já era um outro do outro. E isto indefinidamente, porque o limite de tudo é o seu mistério, o incognoscível da noite contra a qual a luz pode existir. E é porque o mistério é intangível, que só a arte o pode revelar. Ou seja a única face visível da sua invisibilidade.
VF

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