quinta-feira, 25 de abril de 2013

Coimbra, 25 de Abril de 1977


O que são as vidas! Chegado ao termo da minha, é que vejo como gastei os anos a correr atrás de foguetes doutra romaria. O que eu me desesperei por coisas perfeitamente vãs, a energia que gastei a cumprir deveres absurdos! Escrever era fundamentalmente o que me importava. E foi à escrita que dei menos horas e as mais cansadas. A maior parte do tempo perdi-o a ser médico, chefe de família, cidadão. Um médico apenas escrupuloso, um chefe de família apenas cumpridor, um cidadão apenas honrado. Em cursivo é que punha a paixão e a esperança. Mas roubei à caneta os melhores momentos, e fiz os versos quase às escondidas, como quem pratica vícios secretos. Em vez de me entregar de corpo e alma à vocação, servi-a como Deus é servido. E agora pego-lhe com um trapo quente. Nem posso voltar atrás, nem arrepiar caminho. É tarde demais para tudo. Até para morrer.
Miguel Torga

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