O que são as vidas! Chegado ao termo da minha, é que vejo como gastei os
anos a correr atrás de foguetes doutra romaria. O que eu me desesperei por
coisas perfeitamente vãs, a energia que gastei a cumprir deveres absurdos!
Escrever era fundamentalmente o que me importava. E foi à escrita que dei menos
horas e as mais cansadas. A maior parte do tempo perdi-o a ser médico, chefe de
família, cidadão. Um médico apenas escrupuloso, um chefe de família apenas
cumpridor, um cidadão apenas honrado. Em cursivo é que punha a paixão e a
esperança. Mas roubei à caneta os melhores momentos, e fiz os versos quase às
escondidas, como quem pratica vícios secretos. Em vez de me entregar de corpo e
alma à vocação, servi-a como Deus é servido. E agora pego-lhe com um trapo
quente. Nem posso voltar atrás, nem arrepiar caminho. É tarde demais para tudo.
Até para morrer.
Miguel Torga
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