quinta-feira, 18 de abril de 2013

Viver na lua


Crónica
António Lobo Antunes

Como estou quase sempre sozinho arranjei o hábito de falar alto comigo mesmo. Por exemplo, de manhã, quando vou a sair para comprar o jornal, sinto que me falta qualquer coisa, pergunto
– Que é do relógio, estúpido?
que de facto não está no pulso e lá vou eu
– Hás-de ser sempre parvo
à mesa de cabeceira buscá-lo. Quem diz o relógio diz as chaves de casa ou a carteira, distraio-me, vivo na lua, perco os anos da minha afilhada, o dia em que a minha tia morreu, as coisas que é preciso comprar para comer. No supermercado previno-me constantemente
– Atenção Varela, atenção Varela
porque ou é o sal, ou é o pão, ou é a garrafa de rosé e voltar a fazer o caminho e a perder séculos na bicha da caixa, francamente, é um bocado aborrecido e as pernas já pesam. Pesam da idade e pesam dos diabetes, ao acordar ordeno-me logo
– Verifica os açúcares, Varela
faço o exame para controlar os comprimidos, enquanto faço o exame
– A consulta é quando?
confiro no papelinho, fixo a data, esqueço-a, escrevo-a no bloco da mesa da cozinha, em maiúsculas, para me lembrar
– Dia vinte e três às nove, cretino
volta e meia uma espiadela de confirmação
– Dia vinte e três às nove
e, de confirmação em confirmação, consigo estar na sala de espera do hospital como manda a sapatilha, de gravata porque um médico é um médico, já a minha mãe se arranjava para mostrar as varizes, eu, rapaz novo
– Vai toda triques para o doutor
como se fosse um baptizado ou assim, a minha mãe, a pregar o broche na lapela
– Um médico é um médico
e estes pormenores, parecendo que não, ficam, os meus pais, graças a Deus, ensinaram-me a educação e o respeito, sento-me diante da secretária a ajeitar a gravata, sem cruzar a perna, claro, e inclinado para a frente, não pergunto como está a tensão depois de me tirarem o aparelho do braço, espero que o médico informe
– Podia andar mais baixa mas vá lá
não estendo a mão para me despedir, espero que ma estendam e, se ma estenderem, aperto-a nem com muita força nem com pouca, com uma veniazita, verifico a nova data no papel antes de me despedir
– Até onze de junho, senhor doutor
pergunto da porta
– Quer que feche ou que deixe encostada?
e apanho o autocarro direito à farmácia, a recomendar-me
– A farmácia antes do ninho, Varela
a aviar a receita, coloco os medicamentos na prateleira da cozinha, depois de lhes escrever a maneira de tomar na embalagem porque vivo na lua, não me fio na memória, assim escrito não me engano, e sento-me meia hora no sofá com a televisão, todo catita ainda, antes de mudar de roupa para fazer o almoço, dado que um pingo deixa nódoa e as minhas mãos são dois cepos, a minha mãe
– As tuas mãos são dois cepos, não sei a quem sais assim que o teu pai tinha dedos de relojoeiro
embora fosse empregado de escritório como eu. Faleceram os dois há uma porção de anos, primeiro o meu pai, que tinha o coração fraco, depois ela de um problema nos rins de modo que tenho a casa toda para mim agora, três assoalhadas, marquise fechada, os móveis de sempre, uns retratos, o quadro com uma vista de praia, com duas senhoras estendidas na areia, debaixo de um guarda-sol, e no mar, de frente, um paquete ao longe, dos grandes, cheio de passageiros que não se vêm. O paquete é amarelo com uma listra azul e, na janela, os prédios fronteiros, umas árvores. É bonito. Sempre morei aqui e continuo a achar bonito. A seguir ao almoço a loiça para lavar, uma sestazita e, à tarde, a pastelaria com os jornais em cima da caixa grande dos gelados. Cumprimento uma pessoa ou duas, bebo um chá sem açúcar
– Não esqueças a pastilha, Varela
engulo a pastilha tirada de um coraçãozito de metal que pertenceu à minha mãe e me recorda sempre ela
– Mãezinha
pequena
(eu sou alto)
Simpática, remexida, com a mania das limpezas mas pronto, toda a gente tem as suas manias
– Vai lá fora e esfrega outra vez os sapatos no capacho
de forma que ainda hoje, vou sempre lá fora esfregar os sapatos no capacho, volto às sete, preparo o jantar e, depois de tudo arrumado, o corpo já não me puxa para sair outra vez. A televisão de novo, recordações de quando trabalhava, a lembrança da Mena com quem acabei por não casar, não por esta razão ou aquela, estava escrito, a minha mãe
– Está tudo escrito no livro da vida
e talvez tenha sido melhor assim, não sei, vivo na lua, sempre a dar preocupações às pessoas e, solteiro, não preocupo ninguém, às onze outra pastilha
– Não esqueças a outra pastilha, Varela
e cama, não a dos meus pais, a minha, a deles é deles e pronto, e fico, de candeeiro apagado, à espera do sono. Umas ocasiões vem depressa, outras ocasiões demora, sobretudo se pensar na Mena, tento não pensar na Mena, que habita sei lá onde, cheia de netos, pergunto-me se, cruzando-me com ela agora, a reconheceria, no caso de reconhecer cumprimentava
– Olá Mena
e andor, pode ser que me respondesse
– Olá Varela
pode ser que não, o tempo muda as pessoas, a pouco e pouco a Mena desvanece-se-me da ideia e, ao acordar, não penso nela. Quer dizer, acontece-me pensar mas é raro. Quer dizer, não é assim tão raro. Os olhos dela claros, o sorriso tímido. Estava escrito. A minha mãe, que sabe
– Está tudo escrito no livro da vida
e, no livro da minha vida, Deus riscou a Mena e eu aceito. Será que me sinto sozinho? Um dia destes vem o coração ou o rim e pronto. Confesso que me entristece, não bem tristeza mas como chamar-lhe, a Mena não vir a saber de nada, ninguém lhe contar
 – Lá se foi o Varela
mas, no fim de contas, que importância tem que o Varela se vá?

[publicado na VISÃO, em 18 de abril de 2013, fls. 8 e 9] 

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