Depois do almoço patriarcal, hoje para os lados da
Penitenciária, um pouco entontecido do vinho de Reguengos, abro o
rádio, mas o que ele tem para me dar é uma estrídula e antipática cantora de
ópera. Ponho então um disco para a render – e saem os Salmos de Stravinski. Que música bela.
Mas o que mais me chama a atenção é a luta do compositor entre a sua música
bárbara, excessiva de metais estridentes e a gravidade dos salmos que falam do
mais grave da vida. E verifico então que Stravinski se dobra de humildade
perante a seriedade da morte. Não sei quando ele compôs os seus Salmos nem estou com pachorra de ir ver.
Mas se não foi num momento de suspensão da sua agressividade e vitalização, foi
decerto já no fim da vida, quando a morte começa a ser muito provável. De vez
em quando a mão foge-lhe para a dissonância da sua ferocidade. Mas é raro. O
que é normal e se estende por toda a música é uma meditação profunda sob a
nulidade de toda a ambição e agitação mundana. E então reconheço-me nela e nela
reconheço a extensão imensa do que em nós fala a voz da eternidade.
*
Recebi de França a tradução de Aparição
– não falei nisso? Recebi. Ou antes, a minha agente literária Marie-Ange veio a
Lisboa mas não me encontrou e deixou um exemplar ao Almeida Faria que mo veio
trazer. E a primeira ideia que me surge é a de que tal tradução é mais
equilibrada que o original que nela perde uma certa pieguice ou lamechice de
certos passos que me aflige na altura apaziguada a que suponho já cheguei. Mas
mesmo assim não sei se o cartesianismo francês não irá protestar. Acabou-se.
Sei no entanto que a escrever hoje o romance – nem era preciso «escrevê-lo»,
bastava «redigi-lo» – ele baixaria de temperatura e de pulsações por minuto.
Não precisava de alterar nada do que
lá está – bastava acalmá-lo e arrefece-lo. E tenho a certeza de que ficava um
bom livro. Aliás, o que nele insisto em considerar muito original – que é a
auto-evidência do «eu», a sua realidade metafísica – seria dificilmente
modificável para lhe manter o sobressalto, a revelação. Em todo o caso. E de
resto essa originalidade não há modos de ninguém mas reconhecer, decerto porque
não fui capaz de transmitir a experiência que eu próprio fiz e tentei transpor
ao romance. Porque foi a partir dessa
experiência que o livro me surgiu. E essa experiência, além de ter sido
para mim uma revelação, é muito difícil repeti-la – e portanto explica-la a outrem
e levar esse outrem a fazê-la. Tenho-me esfalfado a falar disto. Mas sempre em
vão. É como ter a revelação de uma crença e tentar evidenciá-la a alguém e
sobretudo esclarecê-la, explica-la. Não é possível. Em dado momento um
indivíduo crê. Como outro vê que não há razão para ser crente.
Como se há-de explicar uma coisa ou outra? Ali a «aparição» de um «eu» é a
mesma de uma crença como de uma simples singularidade de uma coisa: posso olhar
uma flor com indiferença ou em certos momentos ver o milagre de ser uma flor. Como transmitir a revelação? É o
mesmo que pretender «explicar» uma dor de dentes a quem nunca a teve, ou uma
cor a um cego de nascença. De todo o modo, tentei-o. De todo o modo, como é
difícil ou impossível, ninguém achar que eu tenha dito algo de original. Não
terei mesmo?
*
Mas ia-me a esquecer que hoje é Domingo de Ramos. É o
domingo de (quase) todos os triunfadores. Sei que poucos Cristas voltam a
triunfar depois da Paixão. Porque poucos tinham antes dela a justiça para
depois dela. Mas só nesse caso se sofre a Paixão – nos outros sofre-se apenas o
Castigo.
Relembro o Domingo de Ramos da minha infância. E o pouco
lembrado nele é o das mulheres que levavam braçadas de ramos de oliveira para
os distribuírem pela casa e a livrarem assim dos raios e outros flagelos, a
troca do ramo pelos presentes dos padrinhos e sobretudo recordo os valentaços
da freguesia que carregavam até à igreja com enormes ramos de loureiro ou mesmo
com loureiros inteiros, dependurados de pães, chouriços e mesmo garrafas de
vinho para que tudo fosse benzido e pudessem talvez apanhar depois uma grande
bebedeira na graça de Deus.
VF
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