Miguel Torga
quinta-feira, 11 de abril de 2013
Curral de Vacas, Chaves, 11 de Abril de 1974
O auto da Paixão num pobre lugarejo transmontano transfigurado numa Galileia imaginária, a fonte
de Jacob, o Jardim das Oliveiras
e o Sinédrio reduzidos
a uma bacia cheia de água, a meia dúzia de ramos espetados no chão, a um
palanque de feira. Mas nesse cenário ingénuo e sumário, tudo se passou como no
verdadeiro – um Cristo do mundo a sofrer as injustiças e agruras do mundo. Pilatos era qualquer regedor,
presidente da Câmara ou juiz poltrão a lavar as mãos na hora da verdade; Caifás, o influente
poderoso e rancoroso, quem não é por nós é contra nós; Judas, o mau vizinho que muda os
marcos e jura peitado; e a turba judaica, a multidão que assistia, mata,
queima, esfola, conforme a onda emotiva. Não havia vedetas. Nem o próprio Redentor tentava ultrapassar a
medida humana. Todos faziam diligentemente o seu papel, a debitar o texto e a
gesticular como a rudeza era servida. A tarde estava de rosas, e essa doçura da
natureza emoldurava harmoniosamente aquela lúdica catarse colectiva, teatro e
realidade misturados, festa e pesadelo, agonia fingida e vivida. O povo tem
isso: sabe encontrar o meio termo feliz, o equilíbrio entre as exigências da
alma e as fraquezas do corpo. A tragédia do Calvário é a nossa
própria tragédia. Mas Deus é Deus, um ser absoluto. Pode sofrer absolutamente.
Nós somos criaturas relativas… Por isso, a esponja de fel que desta vez o Centurião chegou aos
lábios de Cristo era um naco de pão de ló ensopado em vinho fino…
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