quinta-feira, 11 de abril de 2013

Curral de Vacas, Chaves, 11 de Abril de 1974

        O auto da Paixão num pobre lugarejo transmontano transfigurado numa Galileia imaginária, a fonte de Jacob, o Jardim das Oliveiras e o Sinédrio reduzidos a uma bacia cheia de água, a meia dúzia de ramos espetados no chão, a um palanque de feira. Mas nesse cenário ingénuo e sumário, tudo se passou como no verdadeiro – um Cristo do mundo a sofrer as injustiças e agruras do mundo. Pilatos era qualquer regedor, presidente da Câmara ou juiz poltrão a lavar as mãos na hora da verdade; Caifás, o influente poderoso e rancoroso, quem não é por nós é contra nós; Judas, o mau vizinho que muda os marcos e jura peitado; e a turba judaica, a multidão que assistia, mata, queima, esfola, conforme a onda emotiva. Não havia vedetas. Nem o próprio Redentor tentava ultrapassar a medida humana. Todos faziam diligentemente o seu papel, a debitar o texto e a gesticular como a rudeza era servida. A tarde estava de rosas, e essa doçura da natureza emoldurava harmoniosamente aquela lúdica catarse colectiva, teatro e realidade misturados, festa e pesadelo, agonia fingida e vivida. O povo tem isso: sabe encontrar o meio termo feliz, o equilíbrio entre as exigências da alma e as fraquezas do corpo. A tragédia do Calvário é a nossa própria tragédia. Mas Deus é Deus, um ser absoluto. Pode sofrer absolutamente. Nós somos criaturas relativas… Por isso, a esponja de fel que desta vez o Centurião chegou aos lábios de Cristo era um naco de pão de ló ensopado em vinho fino…
Miguel Torga

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