Hoje é dia de Páscoa
e, salvo pequenas e raras abertas, tem chovido desde manhã. Num desses bocanhos
saí para a eira na esperança de ouvir cantar o cuco. Este vício de ouvir cantar
o cuco anda comigo desde garoto. Nesse tempo eu via a satisfação com que as
velhas exclamavam umas para as outras: «Ó fulana? Já ouvi cantar o cuco!» Corno
quem diz: «Já deitei o Inverno fora!» o mesmo se passa comigo. Enquanto não
ouvir o cuco, não há sol que me aqueça. Por isso saí para a eira na esperança
de o ouvir. Mas o flautista não apareceu. Sei que já por aí anda, mas deve
estar recolhido.
Uma bátega de água
obrigou-me a recolher também. E agora aqui estou de pés à lareira e olhos nas
chamas. Olho sempre para o fogo com a surpresa e o encanto do primeiro homem
que o inventou e a ele se aqueceu.
Pelo silêncio da eira
e da casa chega até mim o rumor dum movimento desusado de carros. São os meus
vizinhos a caminho da missa. Vou com eles. Não com estes, que vão todos de
automóvel, mas com os da minha infância, que iam lodos a pé. No Domingo de
Páscoa, os três quilómetros que nos separam da igreja matriz eram uma passerelle de pedras e lama onde os
elegantes de Peireses, elas e eles, mostravam as toilettes da Primavera, que depois lhes serviam para todo o ano. E
que maravilhas de cotim, chita, lã de ovelha, socas cravejadas de amarelo e
socos fechados lustrosos de sebo ali se não exibiam!
Era um dia memorável
para as crianças, o dia de Páscoa. Não pelo folar ou as amêndoas, que andavam
vasqueiras, mas pela alegria de estrear um trapo novo qualquer. Conheci uma
senhora a quem toda a gente tratava por Pascoela. Um dia perguntei-lhe se era
nome de baptismo ou apelido. Respondeu-me que era alcunha. E contou:
Teria ela uns sete
anos, pediu ao pai uns socos novos para a Páscoa. Ele respondeu, em tom de
brincadeira e recusa, que só lhos podia dar para a Pascoela. A menina não
compreendeu a evasiva paterna e saiu para a rua a dizer a toda a gente que ia
estrear uns socos novos na Pascoela.
A Pascoela veio mas os
socos não apareceram.
–
Ó pai, os meus socos novos?
–
Dei-os à Pascoela.
–
Mas os socos eram para mim.
–
Mas tu pediste-mos para a Pascoela.
–
Oh! .
E a menina saiu para a
rua amuada e descalça. Os adultos acirravam-na:
–
Ó Pascoela? Os socos?
E ela, que era
expedita de língua, mandava-os àquela banda com uma desenvoltura que era um
regalo ouvi-la.
Com o rodar dos
Invernos, os adultos esqueceram a história dos socos. Mas continuaram a tratar
a menina por Pascoela. Foi com esse nome que eu a conheci.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II
– Crónicas de Barroso (p. 51 e s.)
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