domingo, 31 de março de 2013

A PASCOELA


Hoje é dia de Páscoa e, salvo pequenas e raras abertas, tem chovido desde manhã. Num desses bocanhos saí para a eira na esperança de ouvir cantar o cuco. Este vício de ouvir cantar o cuco anda comigo desde garoto. Nesse tempo eu via a satisfação com que as velhas exclamavam umas para as outras: «Ó fulana? Já ouvi cantar o cuco!» Corno quem diz: «Já deitei o Inverno fora!» o mesmo se passa comigo. Enquanto não ouvir o cuco, não há sol que me aqueça. Por isso saí para a eira na esperança de o ouvir. Mas o flautista não apareceu. Sei que já por aí anda, mas deve estar recolhido.
Uma bátega de água obrigou-me a recolher também. E agora aqui estou de pés à lareira e olhos nas chamas. Olho sempre para o fogo com a surpresa e o encanto do primeiro homem que o inventou e a ele se aqueceu.
Pelo silêncio da eira e da casa chega até mim o rumor dum movimento desusado de carros. São os meus vizinhos a caminho da missa. Vou com eles. Não com estes, que vão todos de automóvel, mas com os da minha infância, que iam lodos a pé. No Domingo de Páscoa, os três quilómetros que nos separam da igreja matriz eram uma passerelle de pedras e lama onde os elegantes de Peireses, elas e eles, mostravam as toilettes da Primavera, que depois lhes serviam para todo o ano. E que maravilhas de cotim, chita, lã de ovelha, socas cravejadas de amarelo e socos fechados lustrosos de sebo ali se não exibiam!
Era um dia memorável para as crianças, o dia de Páscoa. Não pelo folar ou as amêndoas, que andavam vasqueiras, mas pela alegria de estrear um trapo novo qualquer. Conheci uma senhora a quem toda a gente tratava por Pascoela. Um dia perguntei-lhe se era nome de baptismo ou apelido. Respondeu-me que era alcunha. E contou:
Teria ela uns sete anos, pediu ao pai uns socos novos para a Páscoa. Ele respondeu, em tom de brincadeira e recusa, que só lhos podia dar para a Pascoela. A menina não compreendeu a evasiva paterna e saiu para a rua a dizer a toda a gente que ia estrear uns socos novos na Pascoela.
A Pascoela veio mas os socos não apareceram.
Ó pai, os meus socos novos?
Dei-os à Pascoela.
Mas os socos eram para mim.
Mas tu pediste-mos para a Pascoela.
Oh! .
E a menina saiu para a rua amuada e descalça. Os adultos acirravam-na:
Ó Pascoela? Os socos?
E ela, que era expedita de língua, mandava-os àquela banda com uma desenvoltura que era um regalo ouvi-la.
Com o rodar dos Invernos, os adultos esqueceram a história dos socos. Mas continuaram a tratar a menina por Pascoela. Foi com esse nome que eu a conheci.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 51 e s.)

Sem comentários:

Enviar um comentário