segunda-feira, 15 de abril de 2013

15 – Abril (domingo de Páscoa). [1990]


       Tento reinventar este dia de festa e não é fácil. Porque todos os dias marcantes do ano tenho eu de os recriar, eles são já apenas um sinal a apagar-se e nada deles é ainda o que fossem por si como foram. Páscoa da ressurreição, do retorno da terra à sua força germinativa, às flores silvestres, à água que transborda pelas encostas da serra, das camélias de um jardim de outrora, da alegria sem razão que é a única que a tem. Mas sobretudo é um dia de grandes dobres de sinos, ampliados em ecos pela distância. Dão a volta à montanha, despertam-na em todos os recantos, dão a volta ao Mundo todo, dão a volta à vida toda. Os mortos calam-se na sua humilhação, é a hora do triunfo sobre eles e a memória do fim. Aleluia. Ouço na rádio os cânticos de exaltação e de glória. Mas numa breve inflexão do ondeado da alegria, há insinuada e de novo a memória da morte. E a alegria fecha um círculo em que a vida e a morte se envolvem uma na outra e são apenas a verdade do homem. Aleluia. Dobre de sinos da ressurreição. Mas as raízes dela estão no túmulo donde se ressurgiu…
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       Pois. A glória, o ser falado, o «vir nos jornais». Melhor, porém, que ser «falado» é ser «pensado». Porque ser falado é ser posto a nu. E eu sou muito friorento.
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       Que aridez me alastra na alma. Essa desertificação progressiva, não é fácil saber porquê. Ler, escrever, pensar, que é que isso quer dizer? A idade, eu sei. O esgotamento do que nos fez vibrar e seria agora coisa vã. Mas que outros motivos para a vibração alheia? Porque os não vejo ou imagino. A suspensão da História fez-me escrever sobre ela. Mas agora apenas me dá jeito vivê-la. O Mundo inteiro sofre de paralisia e os que ainda mexem têm a doença atrasada. Aliás, o único motivo que os faz ser pensantes é a ruína do Leste. Leio tudo o que fala disso, mas já sei o que vou ler. Regressar à filosofia, para quê? A grande fase da literatura é apenas o comércio. Traduções. Encontros para venda de traduções. Mas não se imagina o que escrever hoje para ser traduzido amanhã. Escrever sobre quê? Tenho a alma mais seca do que um caroço. Tenho nela mais vazio do que. A sensação tremenda que se tem é a de que tudo de súbito envelheceu. Mesmo o que amanhã poderá renascer, de momento sentimo-lo ridiculamente inútil. Enquanto me queixava da desagregação do Mundo, tinha esse mesmo motivo para pensar e ser em escrita. Mas agora o que estamos é a viver esse momento e queixarmo-nos disso já vai atrasado. Nada agora entra a tempo, é suportável que se diga, é aceitável falar-se sobre. O que leio nos jornais é-me extremamente frívolo e ridículo. Nada vale a pena dizer-se, há só que esperar em silêncio. Como é que há tipos possíveis na dimensão da sensatez informada a escrever um romance? Que pode dizer-se além de que nada pode dizer-se? Mas como isso já foi viável dizer-se, que pode mais dizer-se que nada dizer? A desertificação alastra e a tudo foi secando. No deserto universal há só oportunidade para os salteadores. São os literatos da literatura de consumo, os obstinados até à morte na ideia de que Aristóteles é que tem razão, a politiqueirada larápia, os poetas incompreendidos e atrasados com as suas edições «de autor», os mastigadores do já mastigado em ensaísmo e filosofia, os charlatães da parolice da TV, os videiras do jogo da bolsa, os vigaristas de todos os vigários.
       A tarde apaga-se nas janelas da sala. Para a aldeia estoiram foguetes, em honra da Senhora da Esperança. Estoiro eu aqui também o meu foguete pela Esperança de que não tenho Senhora alguma. É a esperança de nada, a esperança em si. E o mais que posso esperar é só estar à espera. Terei ainda vida para saber de quê?
VF 

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