Uma rasgada manhã de primavera, com olaias de semblante rosado estampadas na
luz imaculada, cachos de glicínias túmidas a vergar os muros, e o resto da
natureza a explodir nos gomos ou a latejar, contida, à espera de vez. Larga e
aberta ao aceno ondulado da paisagem, a rua parecia uma extensão urbana da
simpatia universal.
Depois de ser par num encontro tão feliz e lavado como a hora distraída que
nos prendeu, acompanhou e soltou no mesmo acaso despreconcebido, não sei que
voz intima e atrevida que levedava por dentro da minha atenção pôs-se a erguer,
no silêncio do resto do caminho, um cântico desatinado ao valor teleológico da
vida. Era um surto indomável, súbita tentação de imortalidade induzida pelo
arrebatamento dos sentidos, que se rendiam, num tropismo irresistível, ao
feitiço da glória ambiente. Confiado na sua lucidez, o próprio demónio da
dúvida se entregava, curioso, à expectativa do milagre. Abandonei-me então
preguiçosamente àquele ímpeto que me arrastava consigo e me inseria em corpo
inteiro na ilusão da eternidade, mercê da simples graça dum instante sem
medida.
Mesmo absurda, a esperança é sagrada. Quem alguma vez teve nos olhos a
evidência do seu rosto natural, jamais se consolará com a precária sugestão das
suas aparências. Mas são essas miragens acidentais que trazem à mem6ria do
náufrago dos dias o verdadeiro nome do movimento que o devolve dos abismos à
tona do desespero.
Miguel Torga
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