sexta-feira, 5 de abril de 2013

Coimbra, 5 de Abril de 1973


Uma rasgada manhã de primavera, com olaias de semblante rosado estampadas na luz imaculada, cachos de glicínias túmidas a vergar os muros, e o resto da natureza a explodir nos gomos ou a latejar, contida, à espera de vez. Larga e aberta ao aceno ondulado da paisagem, a rua parecia uma extensão urbana da simpatia universal.
Depois de ser par num encontro tão feliz e lavado como a hora distraída que nos prendeu, acompanhou e soltou no mesmo acaso despreconcebido, não sei que voz intima e atrevida que levedava por dentro da minha atenção pôs-se a erguer, no silêncio do resto do caminho, um cântico desatinado ao valor teleológico da vida. Era um surto indomável, súbita tentação de imortalidade induzida pelo arrebatamento dos sentidos, que se rendiam, num tropismo irresistível, ao feitiço da glória ambiente. Confiado na sua lucidez, o próprio demónio da dúvida se entregava, curioso, à expectativa do milagre. Abandonei-me então preguiçosamente àquele ímpeto que me arrastava consigo e me inseria em corpo inteiro na ilusão da eternidade, mercê da simples graça dum instante sem medida.
Mesmo absurda, a esperança é sagrada. Quem alguma vez teve nos olhos a evidência do seu rosto natural, jamais se consolará com a precária sugestão das suas aparências. Mas são essas miragens acidentais que trazem à mem6ria do náufrago dos dias o verdadeiro nome do movimento que o devolve dos abismos à tona do desespero.
Miguel Torga

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