domingo, 21 de abril de 2013

Um beijo

COLUNISTAS
VALTER HUGO MÃE 
21/04/2013 - 00:00 [Público]
No momento em que me abraçou, o David Tibet beijou-me o rosto. Eu sei que não vos dirá muito que esse beijo tenha acontecido, mas ele tinha acabado de homenagear o John Balance, o Balance morreu para anjo, e eu já achava o David um homem dos céus há bem mais de vinte anos.
Quando somos abraçados por alguém que nos coloca em diálogo com os absolutos, isso do amor inteiro ou a morte, é sempre místico que nos encontremos. E os concertos do David Tibet são sempre feitos de uma espiritualidade essencial. Vou aos concertos dele como a homilias que efectivamente me importam.
Poucas figuras me influenciaram tanto quanto o David Tibet. Ele, com as suas angústias e aspirações, cheio de visões e necessidade de se transcender, incoerente, mudado, mudador, sempre intenso, comovido, arriscando muito. Eu não sei se o entendo, sei que cresci muito com a sua busca, ao ponto de a familiaridade da sua voz me parecer algo interior, como se fosse a minha própria voz, como se pertencesse ao meu imaginário mais pessoal, mais íntimo, quero dizer. Uma voz que apenas eu fosse capaz de escutar.
Pois, esse mestre abraçou-me e beijou-me o rosto, bem no fim do concerto, e o John Balance, que morreu, tinha encolhido o estômago a toda a gente. Porque o puseram numa tela grande e foi muito especial encará-lo e sentir muito a sua falta. Gostei de pensar que eu e o David abraçávamos o John pelo meio. E tive tanta pena de nunca havermos estado os três juntos. Teria sido lindo se tivesse acontecido.
Foi no Maria Matos, onde eu nunca havia entrado. O público era um grupo de ex-góticos, uns quarentões mal remendados, a parecerem finalmente curados das depressões, com certa nostalgia do tempo antes de serem barrigudos e carecas. Gostei de cada pessoa. Porque a especificidade da música do David Tibet faz-nos comungar de algo muito peculiar e reservado que cria a ilusão de um colectivo de gente imbuída de um mesmo espírito. Como se partilhássemos uma mesma visão, um mesmo privilégio. Estamos barrigudos e carecas e curámos há um bom tempo as depressões, mas temos a marca das coisas. Somos maduros e sabemos melhor o porquê das coisas. Ouvimos o David acerca do Balance e somos capazes de um amor mais genuíno e intenso por um e por outro.
Quando me beijou o rosto, sorri. Podia ter-lhe dito que de todas as vezes que nos vimos eu quis aceder a uma beleza assim. Mas não disse nada. Os criadores mais importantes para mim deixam-me mudo. Acho que sorri como os meninos quando merecem algo muito precioso do próprio pai.

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