terça-feira, 23 de abril de 2013

23 – Abril (segunda). [1990]

       Estás sentada na tua cadeira e os pés estendidos para uma almofada sobre a mesa baixa. Eu sento-me em frente e entre nós arde o lume do fogão. Há claridade na sala pelo ar, vinda sobretudo da janela ao fundo. E há um silêncio em que se ouve quase o germinar da terra. E tudo isto tem um sentido que não sei mas adivinho no simples facto de haver paz e silêncio. E um fogão terno a adormentar-nos. Mas valerá a pena sabê-lo? Porque o melhor de tudo é o seu mistério e o encantamento de todo o seu possível inesgotável. De vez em quando ouve-se o vento passar. Vai para o longe do incognoscível. Depois, de novo o silêncio. E eu sinto, como não sei dizer, que essa leve voz do vento explicou todo o mistério que ficou.
*
       Saturado da literatura, escrevo, escrevo. É um acto necessário sem necessidade para esse acto. Toda a literatura me parece de súbito vã. Que quer dizer criar ainda a realidade que é sua? A realidade que é sua é apenas a música que em nós ressoa por fim. Porque não falar dela apenas? A voz do vento, o rumor do lume, o silêncio de uma sala iluminada de sol. Como é possível sobretudo achar qualquer interesse na feira imensa do modo de se ser humano? O ser humano é o ser, o seu insondável, a sua morte. Como é possível talhar nele uma «história», engrená-la em brinquedo como um mecano? A sua história não tem sentido para se lhe poder inventar um. Como é possível ser-se um começo de evolução mental, para se adoptar e exaltar a sua menoridade? A sua evolução di-la a sua velhice ou o que antes dela é o que pensa a vida como uma coisa muito séria.
       Saturado de literatura, abandonado de literatura, escrevo, escrevo. É a pressão enorme de criar, sem razão de haver barro para a criação…
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       Que fazes tu na vida? Não sei. Cheguei ao limite em que o fim de vez em quando me queima de evidência. Mas persistes em viver nesse gosto de viver. Persisto, há uma ligação feroz ao que em breve não será meu. O quê? Tudo, não sei. As coisas, as pessoas. É como se a minha morte fosse uma condenação pessoal não determinada para os outros. Como se daqui a cem anos os que ficam estivessem ainda e só eu não. Estupidez, não é assim? Estupidez. Mas nunca se sente pelo que se pensa porque o pensar tem o seu destino próprio a que o sentir é alheio. Podes ter ao menos um pouco de vergonha de ser assim. Tenho.
*
       E insensivelmente tu voltas. Fluída, translúcida à opacidade da terra. Ou não voltas – apareces na eternidade do teu ser. Aí estás, imóvel, feita da legenda de todo o meu imaginário, incorruptível e para sempre. Vens na balada, nela te suspendes, transmigrada a uma música terna e difícil. Vens na balada, estás aí, grave, um vislumbre de sorriso e cansaço e pacificação. A balada passou. A tua imagem também.

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