quarta-feira, 17 de abril de 2013

Coimbra, 17 de Abril de 1974

         Jesus Cristo Super Star. Que perverso aproveitamento se faz hoje do inconsciente cristão, que, quer queiramos quer não, é uma herança de todos nós! Ao sair do espectáculo, até o mais ateu alardeava o ar iluminado e desobrigado de quem acabava de cumprir honestamente um preceito. Preceito tão público como o da missa, acobertado, porém, da crítica do livre pensamento por nobres razões estéticas. Necessitada de sagrado, mas envergonhada dessa fraqueza, a multidão corria ao cinema e saía dele aliviada e divertida como quem sai de um casino. Viesse um apóstolo pregar na praça a boa nova, e toda aquela gente passaria ao lado, embaraçada com o escândalo da verdade em carne viva. Felizmente que o escudo da arte tornava permissível o acto cultual… E esgotavam-se as bilheteiras.
O pior é que o sagrado não pode ter suportes profanos. Perde neles a força e a grandeza. Sem nada de aleatório, de uma rigorosa coerência interna, só no seu dogmático monolitismo dá sentido aos gestos certos e à vida certa – o indivíduo certo no homem, o homem certo na família, a família certa na sociedade, a sociedade certa nos dias, nos meses, nos anos, nas estações, e as estações certas no ritmo cósmico.
Seres de religião levianamente desviados dessas apetências anímicas, satisfazemo-nos mediocremente com os seus simulacros. E eis-nos a macaquear o que já não sabemos honrar. A trocar os símbolos por emblemas, as orações por imprecações, as liturgias por formalidades ou informalidades. A esquecer que, sem disciplina ortodoxa, o religioso pode ser tudo, desde um filme comercial até um comício para destruir a própria religião.
Miguel Torga

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