domingo, 14 de abril de 2013

14 – Abril (sábado). [1990]


       Ontem esteve aqui a Gabriela Llansol e o Augusto, o marido. Tínhamos combinado a vinda aqui (fui, aliás, busca-los no carro ao Banzão, onde moram) e não podia anular o encontro, já proposto há largo tempo. Mas eu estava terrivelmente mal-disposto, com o meu acesso de histeria nervosa (náusea, tontura e o mais do ramalhete) de modo que não pude cumprir a minha sociabilidade. Gabriela é uma escritora singular. Fechada no seu mundo sem portas, a gente lê-a e pressente o seu aviso de «pegar ou largar». Não faz concessões. A dimensão desse seu mundo é o do insólito, do mistério visível, de um impossível possibilitado pela nudez à vista, sem sombras, sem estranheza que se diga estranha, realizada no coração das coisas, mas tangível, sem subentendidos, imediato, real. Ela exige pois uma óptica que não temos e há que inventar. Gabriela diz-me que vários leitores a lêem com entusiasmo. Sinal de que já têm essa óptica. Por mim, não a tenho ainda afinada. O que sinto e vejo é que o seu mundo é coerente, é pois uno, autêntico, não sustentado por qualquer mistificação. E esse é um sinal seguro da sua qualidade. E de que é profundamente original. E de que o alimenta uma segura consciência do que é.
       Conversou-se bastante, apesar de eu estar em dia negativo. (Talvez que se pusesse de parte o tabaco e sobretudo o vinho… Fígado a fazer-me manguitos?). Mas em toda a conversa, pouco me esclareci sobre o seu projecto literário. Suponho mesmo que, fechada nele, pouquíssimo lerá. Pois ler o quê? para quê? Armou a sua tenda no deserto. E os outros escritores moram em casas urbanas. É assim.
*
       Estou sentado ao lado do fogão, olho o lume, ouço o seu rumor. A Regina foi a casa da Titilde, deve estender a conversa até à hora de jantar. Telefonou o Miguel Oliveira da Silva, que está na Praia Grande, a perguntar se podia cá dar uma saltada. Eu estava a acabar o suplício das provas dos ensaios, disse que sim. Mas ele então adiantou a proposta de vir com umas «pessoas amigas» que gostariam de me conhecer ao natural. Disse que não. Estou pois só eu e o fogão. É uma companhia mais agradável que uma qualquer visita ou mesmo um animal doméstico cuja função é essa de estar connosco e aliviar-nos um pouco o peso de estarmos a sós connosco. O lume. Está lá tudo. A música do seu rumor que nos vem do fundo da memória, e o encanto de suas chamas que nos inventa qualquer imagem. Está lá tudo. Mas esse tudo, como o de uma música, o pacto que nos estabelece é com o passado, ou antes com o seu imemorial. E para quê um pacto com o futuro? O futuro é a morte. Mesmo o presente reconverte-se em memória, que é o seu estar-sendo. A memória. No meu caso de pensar nela e de ela me pensar o seu nada. Tão pouco de recordação por e de ela me pensar o seu nada. Tão pouco de recordação por ela passa. Iluminação dispersa no ar, pontos breves de referência para à sua volta se abrir a irradiação até ao incognoscível. Aura mágica, auréola. E a suspensão em mim do encantamento. Todos os factos concretos, imagens concretas, são um erro do meu imaginar. Tudo o que recordo é inútil e vão. Ou amargo como um vexame. Olhar o lume. Queimar nele todas as recordações. E ver só, no trémulo das chamas, as sombras que me oscilam na lembrança, ver só na sua iluminação o sorriso breve do que me iluminou…
VF 

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