terça-feira, 9 de abril de 2013

9 – Abril (segunda). [1990]

        Não sei porquê, pus-me a reler Heidegger. Não, não foi por causa dessa mixórdia do nazismo em que dizem se atascou. Não li ainda o livro do Farias em que isso dizem demonstrar-se. Isto porque, em primeiro lugar, há que provar-se que a sua filosofia implica realmente o nazismo. Em segundo lugar, há que explicar porque é que todos os progressistas admiram Céline ou Nietzsche em que houve um nazismo expresso e um pré-nazismo (com racismo e tudo). Finalmente, não se percebe porque é execrável um Heidegger nazi e não um Neruda, Éluard e tutti quanti estalinistas, quando Estaline foi um criminoso maior do que Hitler – nos milhões de vítimas, no racismo encoberto (na URSS um soviético não podia andar com uma preta ou uma com um) e ainda ou sobretudo porque vigarizou todo o mundo progressista. Passons. Não, voltei a Heidegger nem sei porquê. E relendo alguns comentadores, descobri (suponho) a razão por que ele foi tão incompreendido e combatido. E a razão fundamental é que ele pôs em termos de rigor filosófico o que estava mais certo em poesia. Isto para o segundo Heidegger, já que Ser e Tempo é legível num domínio estritamente filosófico. E que é que passou da poesia para a filosofia? Passou fundamentalmente a grande questão do Ser. Porque o Ser é o indizível de tudo e ele tentou dizê-lo. O Ser é o inominável, o incoercível, a radicalidade do irreal de todo o real que não pode mencionar-se e muito menos demonstrar-se e apenas se revela no que eu afinal vim a chamar (sem dar conta de que se ligavam) a aparição. Porque eu li também Heidegger em termos concretos, racionais, filosoficamente dizíveis. E ele transformou a dimensão do que ele chama o Ser, para lá de toda a positivação filosófica, que o foi a partir de Platão. Por isso ele ama particularmente os pré-socráticos porque aí domina o indizível, o poético, o irredutível à nomeação concreta. Assim ele por vezes (ou já no fim?), em vez de se referir ao Ser, refere-se ao il y a, ao começo dissipado desse Ser. O Ser é o milagre de tudo o que existe, o remoto fundamenta que só vem à luz por um nosso especial estado de graça, como Deus aos místicos. Por isso ele recusa a identificação de Deus com o Ser. Mas eu penso que ele a não recusaria, se não se tratasse de Deus mas da transcendência dele próprio, ou seja o sagrado. Ser e Sagrado já creio mais identificáveis. Por isso às vezes o Ser nos parece Deus – e é quando esse Deus é o inominável, o «eu sou quem sou», ou seja o sem nome. Um dia eu disse que Heidegger foi o racionalista do a-racional. Ele foi o poeta do filosófico. E pensado assim, o seu Ser já não inquieta, como nos não inquieta o (ir)racional poético. O Ser é o limite, ou seja o sem-limite, do pensar. Compreendemos assim melhor que ele identifique a verdade com a «desocultação». Há o mistério universal, o sem fim do mundo inteligível, e «desocultação» é o deixar que se opere a revelação ou talvez a aparição, que só pode operar-se em inteira liberdade (disponibilidade) nossa. Eu defini ou determinei a verdade de uma forma mais imediata, mas creio que acabei por dizer uma coisa parecida. Para mim a verdade é uma harmonização do todo que somos com o que verificamos ser verdade. Ou seja, a verdade é uma resultante do que chamo o nosso «equilíbrio interno» no qual cabe (a verdade) ou não cabe (o erro) – ou seja aquilo que se nos propõe ou candidata a ser verdadeiro. Assim a verdade é uma aparição, o que se revela na directa relação com o real. Em todo o caso para mim a «aparição» tem que ver com a revelação do irreal do real ou da sua verdade que o hábito endureceu, normalizou, neutralizou. É o que acontece com o nosso «eu», a nossa condição, ou com uma simples flor que em certos momentos vemos no seu ser original ou miraculoso. Tenho assim duas verdades: a que diz respeito ao quotidiano (ser crente ou descrente, pertencer a esta ou àquela política, achar ou não graça a esta ou àquela anedota) e a que se refere à profundidade do mistério de nós e do Mundo. (Interrompido).
VF 

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