sábado, 27 de abril de 2013

27 – Abril (sexta). [1990]

       Hoje vou ao médico para tirar a limpo a coisa suja de que falei há dias. Mas antes disso, aproveitando o «benefício da dúvida», fui ao correio e às livrarias. Hoje, aliás, foi dia de correios porque já de manhã fui ao de Alvalade mandar em provas o romance ao Joaquim Vital – que o leu dactilografado e gostou em força. Bicha à minha espera, como é óbvio, e exercício de perna e paciência como é óbvio também. E agora fui de novo para nova bicha que me esperava na avenida de Roma. E havia que deixar na Bertrand da dita as folhas do contrato da editora. A Barata tem uns banquinhos para uma leitura preliminar e repouso da cultura que é sempre pesada. Repousei. Mas mesmo assim cheguei com a carga das pernas que me vão dando negas indecentes. Ao que se chega. O meu raio de acção é o das galinhas, mas a capoeira fica-me cada vez mais longe do que isso. Cheguei estoirado. E talvez por isso, já mais chegado ao galinheiro, interceptou-me um indivíduo dos seus 40 anos, magro, muito vermelho (teria vindo a correr?) e uns olhos saídos de rã. E gentilmente perguntou-me:
       – O senhor não é fulano?
       – Sou – disse-lhe eu, cheio de vedetismo.
       – Eu nunca li nenhum livro seu, mas conheço-o dos jornais.
       E sem pensar, disse-lhe com humildade e sorriso de charme:
       – Então leia.
       Mas o que era em mim um pedido saiu-me em tom categórico de uma ordem. E o homem diz-me qualquer coisa que não entendi e retomou a embalagem que trazia. E eu fiquei fulo comigo por uma vez mais não ser capaz de obedecer às recomendações que me dou.
       Posto o que vou descansar no sofá do cansaço e da chatice da desobediência. . 
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       Fui ao médico Valentim de Carvalho. Vim do médico Valentim de Carvalho. No intervalo não aconteceu nada de grave. E nesse caso, aguardo a próxima etapa. Assim me tem decorrido toda a vida – ir avançando sempre por etapas. Há os felizes que só têm uma e com muitos anos de intervalo.
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       O Lúcio está a ler em dactilografado o meu Em Nome da Terra. Diz que está a gostar muito. Mas o que mais me agradou foi dizer-me que durante a leitura vai ficando com mais amor à vida.
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       Os angolanos das várias ideologias (no fundo a da UNITA e a comunista do Governo, a do MPLA) estão reunidos em congresso com vistas à preparação de um entendimento para a paz. O resultado do que ao ouvido de ambos foi soprado pela América e União Soviética (quando voltará ela, a propósito, a chamar-se de novo Rússia?)
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       E de notícias quentes é a acelerada reunião das duas Alemanhas, enquanto a União Europeia é um sinal de rápida convergência. Como as guerras em grande estão fora de uso, o espectro de uma Alemanha reunificada não prevê tiros de canhão mas de marcos pesados. Menos sangue, mas mais quê? Aliás, a Europa unida faz-me muita confusão entre a necessidade de se ratificar a redução fatal do espaço europeu e a necessidade de cada um ser quem é. A ver se me ponho a reflectir sobre o caso.
VF

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