quarta-feira, 17 de abril de 2013

17 – Abril (terça). [1990]


       Hoje esteve aqui o Luís Mourão. E como sempre que estou com alguém, faço o anteprojecto de falar pouco. Há uma razão para isso que devia ser decisiva e é que me fatigo. Mas iniciada a conversa, tomo logo conta dela e desato a falatar. O Luís Mourão é um jovem de 30 anos, mas com um ar pacífico de 60. Mas não é isso desculpa, porque a desculpa é outra que não sei. Devia saber a culpa para saber a desculpa. Não a sei. Fazer «figura»? Não sou tão modesto como isso para invocar a «figura» como razão. Os tagarelas imaginamos que o são para se porem em evidência e aí a figura faz figura. Mas é possível que também não seja isso. Digamos que se fala para se ter que dizer, ou seja criar o motivo do falar. Porque tal como na escrita, a própria palavra é que engendra o que há a dizer para no fim ter havido o que se disser. O povo diz que «as palavras são como as cerejas», que engatadas umas nas outras formam uma corrente. Mas isso é dizer que é a própria palavra que se gera na palavra, ou seja que o que se diz é na palavra que existe. E eis pois que o falar cria o que se não sabia que se iria dizer, ou seja que não existia antes disso. É uma explicação nobre e só por isso talvez me convenha adoptá-la. De todo o modo foi esse o processo que atribuímos a Deus para criar o Mundo. E um deus inventa-se à nossa imagem e semelhança. Mas fico-me por aqui antes que o meu raciocínio se destrua a si próprio. Como acontece, aliás, a todo o raciocínio que vai além do que deve. Cala a boca – diz a mãe ao filho que fala demais. Trava a lógica – devemos nós dizer-nos segundo a mesma regra de educação. E vou continuar a reler o Heidegger de que só agora estou a aprender não o corpo da doutrina, que já conhecia razoavelmente, mas a alma desse corpo, que ainda não sabia bem, como é normal acontecer com o que é invisível.
*
       Perguntam-me frequentemente
       – Como vai de saúde?
       Respondo frequentemente
       – Navegando à bolina.
       A Propósito. Ouvi de não sei quem que este tipo de navegação é de invenção portuguesa. Como estava surdo, não sei se ouvi bem. Mas devo ter ouvido porque navegar à bolina é uma espécie de «desenrascanço». E é essa a natural condição do português. Logo, a minha – pois que remédio.
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       Telefonou-me o Onésimo. E quando isso acontece, costumo perguntar: donde fala? E ele diz-me falo de Providence ou falo de Lisboa. E nesta diferença de distância organizo o meu sentir no falar-lhe. Porque se é da América, há o Atlântico de permeio na minha conversa como se em mim se erguesse uma voz mais alta para o atravessar. Se é de Lisboa há apenas a distância de um telefone. E isto porque ainda não ajeitei a sensibilidade à ideia de que hoje o planeta é já uma aldeia.
VF 

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