quarta-feira, 24 de abril de 2013

24 – Abril (terça). [1990]

       Sandra. Para a hipótese de V. ter saltado do meu livro – e da vida onde a fui buscar – e continuar viva algures, deverá ter já setenta e muitos anos. Mando-lhe por isso um beijo de parabéns. Como estará e será hoje? Velhinha, não? Coalhada de rugas e cabelos brancos? Mais desembaraçada de língua, menos contida? Ou continua seca, reservada, severa? Ou gágá? Não a quero ver, a minha curiosidade não sobra da minha criação. Imagino que V., se leu o livro, deve ter sido bastante e já para fora. Ou terá ficado agradada da imagem que de si lhe dei. Mas não se iluda: a imagem não é de si mas de mim. E seja feliz com os seus filhos e netos. Ou terá ficado solteira? Se assim foi, lerá talvez o meu livro com uma atenção mais esclarecida. Porque estará mais desligada do real imediato e poderá aceder mais facilmente à eternidade que está nele. E aí encontrará a essência de si. Como o João disse da Mónica.
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       Quantos te ouvem? Para quantos és audível? O que te ouviam melhor era o riso, mesmo quando mais discreto, quase só riso para ti. Porque o riso é a forma mais plausível de retirar peso ao que é pesado e a vida para tudo pesa tanto. Mas essa mesma possibilidade a vais perdendo. O real não abdica facilmente da sua carga e esvaziado um momento, logo tenta recuperá-la e carregar outra vez. Mas rir é passarmos para nós o peso que era do real e isso exige um esforço enorme ou uma destreza de um deus. Estás demasiado humanizado para esguer a vida a pulso.
       Quem te ouve? Para quantos és audível? Não o és para quase ninguém. O silêncio é o teu lugar. Fala nele para ti, desfaz-te no teu falar interminável e vão. E cumprirás o teu destino como a loucura cumpre o seu.
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       Não é frequente que um homem de letras goste de música e o confesse ou menos deixe passar para o que escreve esse gostar. Romain Rolland, Thomas Mann e alguns outros são excepção. Ainda há pouco um sobrinho-enteado de Malraux nos revelou que o escritor sabia de música, casara com uma pianista, viúva do seu irmão Roland que os nazis mataram. Mas nos seus livros esse gosto não transparece. Teixeira de Pascoaes dizia que da música só gostava da harmonia das esferas e do fado do Hilário. Por mim, gosto muito de música instrumental e digo-o nos meus livros. Mas a voz humana só em coro ou em solos especiais de óperas ou oratórias – ou em baladas de Coimbra. No meu Cântico Final há uma personagem (Mário) que julga a música uma forma de arte menor ou feminina e que só a literatura ou as plásticas são arte maior ou masculina. Em todo o caso apaixona-se por uma bailarina cuja arte admira e há uma frase musical do começo do 2.º acto do Lago dos Cisnes que percorre o livro até ao fim. Bom. De todo o modo há o facto em si da sua opinião e da de outros escritores. Porquê essa ideia de que a música é uma forma de arte débil? Não sei. Mas postas de parte as marchas militares e de músicas afins pelo seu apelo à acção, ao voluntarismo, à robustez, a música genericamente apela para a passividade, o abandono, a desistência. Ver República de Platão. Não me desagrada esta hipótese para o meu caso. Porque a força maior da arte para mim vem de fornecer-nos o encantamento, a transcendência do real imediato, a transfiguração. Ora isso tem que ver com o apelo da música, o êxtase a que nos chama, a elevação sobre nós. Mas sobretudo a música é de sua essência uma arte de abstractização. Ora a literatura, ao menos na sua forma generalizada, é no real imediato que funda a sua razão de ser. Mesmo a poesia. O de la musique avant toute chose já tem que ver com um certo tipo de poesia, por exemplo a de Verlaine, que o disse. Mas não com os poetas grudados ao real ou pelo menos à discursividade que tem que ver com a lógica e não com o imaginário. Mas acabou-se. A música fala à parte débil de nós onde mora o encantamento e a ternura. É onde eu moro também. E onde me mora também. Em todo o caso – é curioso – não me sinto propriamente um banana. Tenho mesmo, ao que me dizem, a minha costela de obstinação de burro. Será que também isso é das partes moles do nosso ser? Sei lá. E já agora estou-me nas tintas para o saber.
       Mas a que propósito vinha tudo isto? Não sei. Talvez porque em Lisboa, sobretudo aqui em Fontanelas, passo os dias a ouvir música com ou sem acompanhamento de leitura ou escrita. É o que está mais conforme com um sofá e um fogão.
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       E cheguei ao momento, como decerto todos os escritores quando é altura de chegarem, em que quase tudo o que se escreveu no meu tempo deixou de me interessar. Como isso é triste. Haver uma montanha de obras de arte à minha mão e nenhuma me dizer nada. Não é isso um problema de qualidade: é um problema de natureza. Nada do que ali está me diz o que me importa. O que me importa, e até por acaso não importa à grande maioria dos meus confrades em humanidade, é o que me fala à minha condição de homem numa forma original de o dizer, vindo essa singularidade de dentro para fora e não ao contrário. É triste, eu sei, ter ao lado um palácio ao meu dispor e preferir dormir no vão de uma porta como um cão. É triste, mas é assim. O que mais me importa somos nós e só onde nós estamos é que podemos estar. E quem discordar disso faça queixa à polícia que reconduz ao manicómio quem dele fugiu.
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       Um livro aparecido aqui há anos, mas que ainda não li, demonstrava que Heidegger fora um nazi depois de dez meses do seu reitorado e jamais afirmou publicamente o seu horror ao holocausto hitleriano. E em face disto, o grande esforço dos intérpretes da sua filosofia é fazê-la coincidir com a doutrina e prática nazis. Como suponho já ter anotado, o que mais me espanta nisto é que ninguém ainda denunciou um só dos milhentos intelectuais (artistas e filósofos) que exaltaram Estaline e jamais o renegaram a não ser em termos doces de «erros», «desvios», «culto da personalidade» ou em casos raríssimos mesmo «crimes». Ora Estaline foi muito mais criminoso do que Hitler não só pela extensão enorme das suas vítimas e o arbítrio das suas decisões, mas ainda porque abusou da credulidade dos milhões dos seus adeptos. E não se diga que só agora os seus crimes foram conhecidos, porque o que apenas mudou foi serem os próprios soviéticos a denunciá-los e a ratificar a denúncia alheia. Khrustchev, aliás, já o fizera, como o fizera sobretudo Soljenitsine nessa coisa medonha que foi o terror estaliniano demonstrado no seu Gulag. Que é que o mundo comunista fez em face deste testemunho? Os soviéticos expulsaram o autor da denúncia e do lado de cá cobriu-se de lama o autor e quem o lesse. Assim o horror não estava do lado de Estaline mas de Soljenitsine – e à tentativa de publicar-se em português a sua obra, opuseram-se os tipógrafos por ordem do PCP. Soljentsine era o símbolo da traição, da calúnia, do abjeccionismo de um inimigo da classe operária e do progressismo. Acontece, porém, que certos intelectuais declaradamente nazis e racistas foram perfeitamente assimilados pelo progresso, como Céline. E um Nietzsche, racista e nazi avant la lettre, funcionou perfeitamente para a especulação progressista.
       Ora neste esforço desvairado de cobrir de lama Heidegger, ainda há dias li um artigo, a propósito de um livro de Steiner que (leio na edição inglesa) não deixa de condenar o comportamento do filósofo, artigo esse em que se pretende ver no conceita de Ser e na sua revelação, uma marca estigmatizante de nazismo. Tanto quanto sei – mesmo pela célebre entrevista postumamente publicada – Heidegger foi largamente condenável pelo que houve de dúbio ou equívoco ou pusilânime nas sua atitudes face ao nazismo e ao seu horror – embora, se o condenasse apenas depois do seu esmagamento, toda a gente dissesse com certeza que essa condenação era tardia e mesmo cobarde por se produzir só então.
       Mas, posto isto, porque diabo o seu conceito de Ser e o modo de se revelar hão-de ter que ver com o nazismo? Hegel, que esteve na base do prussianismo e ditaduras nazi-fascistas, longe de ser enlameado, foi valorizado pela razão primária de Marx pressupostamente o ter virado de pernas para o ar. A doutrinação hegeliana, no que respeita aos estados (e à guerra…) é imensamente mais grave do que a pobre doutrina do Ser e da sua revelação. Aliás, o Ser e a Ideia, como veremos, se tiver pachorra para isso, sendo muito diferentes, têm um parentesco de consanguinidade. Hegel situa-se num domínio lógico e Heidegger numa base que tem que ver com o inominável (e o grande erro de Heidegger, suponho eu, foi dar-lhe um nome). Mas nesse domínio lógico, Hegel é imbatível e Marx comete por isso um erro quase infantil. Creio ter já anotado não sei onde que em toda a doutrina há o que é o seu corpo e o que é a sua alma. O corpo é redutível a conceitos, jogos de raciocínio, etc. e a alma é o indizível de tudo isso. Hegel é imbatível porque para ele as coisas são conceitos, ou seja o que delas se pensa. Todo o real é pensamento porque fora disso não é nada. E a Ideia ou Espírito é aquilo que como pensamento vai alargando e iluminando os seus limites. Todas as doutrinas fazem parte da Ideia ou Absoluto, que teoricamente (para ele, nele próprio, parecer) há-de um dia absorver em si todo o pensar de modo a não haver possibilidade de outro pensamento para fora dele. Hegel evitou o risco de filósofos anteriores, de pôr de um lado o ser, do outro o pensar. Ora por um lado não se pensa no vazio (já Hume e a seguir Husserl) e por outro o ser que se não pense não existe. Ele é assim o que se chama um «idealista objectivo», que é uma designação insidiosa, ou seja um pensador para quem o pensamento não está em si mas no objecto. Que é que é um objecto sem que o pensemos? Que é que é o pensamento sem um objecto que ele pense? Marx entendeu que o hegelianismo estava de pernas para o ar porque, para o marxismo, primeiro está o objecto e depois o que dele se pensa como seu «reflexo» (Lenine). Ora tudo isto é uma questão do ovo e da galinha. Para Hegel não há nenhuma divisão com um monismo de ser / pensar ou se se quiser de um ser que pensa (através de um seu elemento privilegiado que é o homem). Eu não estou a defender Hegel, com o qual aliás tenho uma pequena / enorme discordância – com ele e com Heidegger – situada nessa coisa minúscula e imensa que é o «eu». Estou apenas a defendê-lo e a tentar aproximar a sua Ideia do Ser heideggeriano. Começa pelas diferenças, o Ser será sempre inapropriável, irredutível, irrevelável – e a Ideia tem teórica e logicamente, um termo da revelação. Por outro lado a Ideia ou Espírito em cada época não tem nada «escondido», é um absoluto para essa época, não releva de nenhum mistério, por mais que a realidade dele (do Espírito – que, aliás, de passagem se diga, é o que realmente define e realiza qualquer período da história do homem) por mais que a sua realidade, dizia, seja imensamente oculta como o futuro o demonstrará. Mas o Ser é o que em qualquer tempo ou situação ou verdade representa a outra face invisível de tudo isso, como na obra de arte espectacularmente se prova. De todo o modo, Ser e Espírito representam a totalidade do que é – num caso (no Espírito) em pensamento lógico; e no outro (no Ser) em inominável e para sempre misterioso.
       Mas sendo assim, o Espírito é o que há-de esclarecer-se e há-de portanto vir à superfície do saber; e o Ser é de sua condição jamais vir à superfície ou melhor, estabelecer-se aí, porque o invisível de tudo é que é a sua condição e o vir à superfície é o que acontece apenas em instantes de iluminação para logo de seguida se retirar para a zona do insondável ou incognoscível ou inominável. A obra de arte, que privilegia a sua revelação (a do Ser), pode nem sempre operá-la – e para a maioria das pessoas não se opera, porque um quadro é uma agradabilidade de cores e linhas, uma música, de sons, uma escultura ou um templo, de volumes, etc. Poderei avançar com algo que um dia pus em evidência e suponho poder irmanar-se ao que digo e que é a aparição? Porque um quadro, como sabemos, aparece, como o nosso «eu», uma flor, etc. – como a própria doutrina de Heidegger. É quando lhes vemos apenas o «corpo», o lado material e imediato, não a «alma», o que está por detrás disso e só em instantes de milagre se revela. Naturalmente o Ser heideggeriano é muito mais do que isso, porque é em termos filosóficos o fundamento de todo o pensar, o que acede à linguagem, o que, por mais que Heidegger o negue, invencivelmente aproximamos do conceito de Deus. Mas o que é fundamental no Ser é o que há nele de furtivo, de irrealizante, de fundo insondável para onde converge o que há em tudo de misterioso, inapreensível, inominável, o simplesmente il y a, o «há», o ser abertura, como julgo já ter dito. E justamente por isso o grave erro de Heidegger foi dar um nome ao que o não tem, manipular o seu conceito como se fosse conceptuável, querer à força manter-lhe o lado misterioso e tratá-lo como um qualquer elemento filosófico. Ora a filosofia de Heidegger (como já o indiciara Nietzsche) é marcada pela irredutibilidade a uma linguagem conceptual como qualquer outra. E há ainda – mas já estou farto de escrever – a sua obsessão de intrometer e esmoer infindavelmente a noção do Ser com que vamos topar sempre, fale do que falar (como o sexo em tudo quanto Freud escrevia).
       E agora, se me permitem, vou ler o jornal, onde com certeza se não fala de Hegel ou de Heidegger, mas dos nossos políticos e futebolistas – aliás, com grandes afinidades entre si.
VF

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