Sandra. Para a hipótese de V. ter saltado do meu livro – e
da vida onde a fui buscar – e continuar viva algures, deverá ter já setenta e
muitos anos. Mando-lhe por isso um beijo de parabéns. Como estará e será hoje?
Velhinha, não? Coalhada de rugas e cabelos brancos? Mais desembaraçada de
língua, menos contida? Ou continua seca, reservada, severa? Ou gágá? Não a
quero ver, a minha curiosidade não sobra da minha criação. Imagino que V., se
leu o livro, deve ter sido bastante e já para fora. Ou terá ficado agradada da
imagem que de si lhe dei. Mas não se iluda: a imagem não é de si mas de mim. E seja
feliz com os seus filhos e netos. Ou terá ficado solteira? Se assim foi, lerá
talvez o meu livro com uma atenção mais esclarecida. Porque estará mais desligada
do real imediato e poderá aceder mais facilmente à eternidade que está nele. E
aí encontrará a essência de si. Como o João disse da Mónica.
*
Quantos te ouvem? Para quantos és audível? O que te ouviam
melhor era o riso, mesmo quando mais discreto, quase só riso para ti. Porque o
riso é a forma mais plausível de retirar peso ao que é pesado e a vida para
tudo pesa tanto. Mas essa mesma possibilidade a vais perdendo. O real não
abdica facilmente da sua carga e esvaziado um momento, logo tenta recuperá-la e
carregar outra vez. Mas rir é passarmos para nós o peso que era do real e isso
exige um esforço enorme ou uma destreza de um deus. Estás demasiado humanizado
para esguer a vida a pulso.
Quem te ouve? Para quantos és audível? Não o és para quase
ninguém. O silêncio é o teu lugar. Fala nele para ti, desfaz-te no teu falar
interminável e vão. E cumprirás o teu destino como a loucura cumpre o seu.
*
Não é frequente que um homem de letras goste de música e o
confesse ou menos deixe passar para o que escreve esse gostar. Romain Rolland, Thomas Mann e alguns outros
são excepção. Ainda há pouco um sobrinho-enteado de Malraux nos revelou
que o escritor sabia de música, casara
com uma pianista, viúva do seu irmão Roland que os nazis
mataram. Mas nos seus livros esse gosto não transparece. Teixeira de Pascoaes
dizia que da música só gostava da harmonia das esferas e do fado do Hilário. Por mim, gosto
muito de música instrumental e digo-o nos meus livros. Mas a voz humana só em
coro ou em solos especiais de óperas ou oratórias – ou em baladas de Coimbra.
No meu Cântico Final há uma
personagem (Mário) que julga a música uma forma de arte menor ou feminina e que
só a literatura ou as plásticas são arte maior ou masculina. Em todo o caso
apaixona-se por uma bailarina cuja arte admira e há uma frase musical do começo
do 2.º acto do Lago
dos Cisnes que percorre o livro até ao fim. Bom. De todo o modo há o
facto em si da sua opinião e da de outros escritores. Porquê essa ideia de que
a música é uma forma de arte débil?
Não sei. Mas postas de parte as marchas militares e de músicas afins pelo seu
apelo à acção, ao voluntarismo, à robustez, a música genericamente apela para a
passividade, o abandono, a desistência. Ver República de Platão. Não me desagrada
esta hipótese para o meu caso. Porque a força maior da arte para mim vem de
fornecer-nos o encantamento, a transcendência do real imediato, a transfiguração.
Ora isso tem que ver com o apelo da música, o êxtase a que nos chama, a elevação
sobre nós. Mas sobretudo a música é de sua essência uma arte de abstractização.
Ora a literatura, ao menos na sua forma generalizada, é no real imediato que funda
a sua razão de ser. Mesmo a poesia. O de
la musique avant toute chose já tem que ver com um certo tipo de poesia,
por exemplo a de Verlaine,
que o disse. Mas não com os poetas grudados ao real ou pelo menos à
discursividade que tem que ver com a lógica e não com o imaginário. Mas
acabou-se. A música fala à parte débil de nós onde mora o encantamento e a
ternura. É onde eu moro também. E onde me mora também. Em todo o caso – é
curioso – não me sinto propriamente um banana. Tenho mesmo, ao que me dizem, a
minha costela de obstinação de burro. Será que também isso é das partes moles
do nosso ser? Sei lá. E já agora estou-me nas tintas para o saber.
Mas a que propósito vinha tudo isto? Não sei. Talvez porque
em Lisboa, sobretudo aqui em Fontanelas,
passo os dias a ouvir música com ou sem acompanhamento de leitura ou escrita. É
o que está mais conforme com um sofá e um fogão.
*
E cheguei ao momento, como decerto todos os escritores
quando é altura de chegarem, em que quase tudo o que se escreveu no meu tempo
deixou de me interessar. Como isso é triste. Haver uma montanha de obras de
arte à minha mão e nenhuma me dizer nada. Não é isso um problema de qualidade: é um problema de natureza.
Nada do que ali está me diz o que me importa. O que me importa, e até por acaso
não importa à grande maioria dos meus confrades em humanidade, é só o que me fala à minha condição de
homem numa forma original de o dizer, vindo essa singularidade de dentro para
fora e não ao contrário. É triste, eu sei, ter ao lado um palácio ao meu dispor
e preferir dormir no vão de uma porta como um cão. É triste, mas é assim. O que
mais me importa somos nós e só onde nós estamos é que podemos estar. E quem
discordar disso faça queixa à polícia que reconduz ao manicómio quem dele
fugiu.
*
Um livro aparecido aqui há anos, mas que ainda não li, demonstrava que Heidegger fora um nazi depois
de dez meses do seu reitorado e jamais afirmou publicamente o seu horror ao holocausto hitleriano. E em face
disto, o grande esforço dos intérpretes da sua filosofia é fazê-la coincidir
com a doutrina e prática nazis.
Como suponho já ter anotado, o que mais me espanta nisto é que ninguém ainda denunciou um só dos milhentos
intelectuais (artistas e filósofos) que exaltaram Estaline e jamais o renegaram
a não ser em termos doces de «erros», «desvios», «culto da personalidade» ou em
casos raríssimos mesmo «crimes». Ora
Estaline foi muito mais criminoso do que Hitler não só pela extensão enorme das
suas vítimas e o arbítrio das suas decisões, mas ainda porque abusou da
credulidade dos milhões dos seus adeptos. E não se diga que só agora os seus crimes foram
conhecidos, porque o que apenas mudou foi serem os próprios soviéticos a
denunciá-los e a ratificar a denúncia alheia. Khrustchev, aliás, já o
fizera, como o fizera sobretudo Soljenitsine
nessa coisa medonha que foi o terror estaliniano demonstrado no seu Gulag.
Que é que o mundo comunista fez em face deste testemunho? Os soviéticos
expulsaram o autor da denúncia e do lado de cá cobriu-se de lama o autor e quem
o lesse. Assim o horror não estava do lado de Estaline mas de Soljenitsine – e
à tentativa de publicar-se em português a sua obra, opuseram-se os tipógrafos
por ordem do PCP. Soljentsine era o símbolo da traição, da calúnia, do
abjeccionismo de um inimigo da classe operária e do progressismo. Acontece,
porém, que certos intelectuais declaradamente nazis e racistas foram
perfeitamente assimilados pelo progresso, como Céline. E um Nietzsche, racista e nazi avant la lettre, funcionou perfeitamente
para a especulação progressista.
Ora neste esforço desvairado de cobrir de lama Heidegger,
ainda há dias li um artigo, a propósito de um livro de Steiner que (leio na
edição inglesa) não deixa de condenar o comportamento do filósofo, artigo esse
em que se pretende ver no conceita de Ser
e na sua revelação, uma marca estigmatizante de nazismo. Tanto quanto sei –
mesmo pela célebre entrevista postumamente publicada – Heidegger foi largamente
condenável pelo que houve de dúbio ou equívoco ou pusilânime nas sua atitudes
face ao nazismo e ao seu horror – embora, se o condenasse apenas depois do seu
esmagamento, toda a gente dissesse com certeza que essa condenação era tardia e
mesmo cobarde por se produzir só então.
Mas, posto isto, porque diabo o seu conceito de Ser e o modo
de se revelar hão-de ter que ver com o nazismo? Hegel, que esteve na base do
prussianismo e ditaduras nazi-fascistas, longe de ser enlameado, foi valorizado
pela razão primária de Marx
pressupostamente o ter virado de pernas para o ar. A doutrinação hegeliana, no
que respeita aos estados (e à guerra…) é imensamente mais grave do que a pobre
doutrina do Ser e da sua revelação. Aliás, o Ser e a Ideia, como veremos, se tiver
pachorra para isso, sendo muito diferentes, têm um parentesco de consanguinidade.
Hegel situa-se num domínio lógico e Heidegger numa base que tem que ver com o
inominável (e o grande erro de Heidegger, suponho eu, foi dar-lhe um nome). Mas nesse domínio lógico, Hegel é imbatível e
Marx comete por isso um erro quase infantil. Creio ter já anotado não sei onde
que em toda a doutrina há o que é o seu corpo
e o que é a sua alma. O corpo é
redutível a conceitos, jogos de raciocínio, etc. e a alma é o indizível de tudo
isso. Hegel é imbatível porque para ele as coisas são conceitos, ou seja o que
delas se pensa. Todo o real é pensamento porque fora disso não é nada. E a
Ideia ou Espírito é
aquilo que como pensamento vai alargando e iluminando os seus limites. Todas as
doutrinas fazem parte da Ideia ou Absoluto, que teoricamente (para
ele, nele próprio, parecer) há-de um dia absorver em si todo o pensar de modo a
não haver possibilidade de outro pensamento para fora dele. Hegel evitou o
risco de filósofos anteriores, de pôr de um lado o ser, do outro o pensar. Ora por um lado não se
pensa no vazio (já Hume e a
seguir Husserl) e por outro
o ser que se não pense não existe.
Ele é assim o que se chama um «idealista
objectivo», que é uma designação insidiosa, ou seja um pensador para quem o
pensamento não está em si mas no objecto.
Que é que é um objecto sem que o pensemos? Que é que é o pensamento sem um
objecto que ele pense? Marx entendeu que o hegelianismo estava de
pernas para o ar porque, para o marxismo,
primeiro está o objecto e depois o que dele se pensa como seu «reflexo» (Lenine). Ora tudo isto é uma
questão do ovo e da galinha. Para Hegel não há nenhuma divisão com um monismo
de ser / pensar ou se se quiser de um ser que pensa (através de um seu elemento
privilegiado que é o homem). Eu não estou a defender Hegel, com o qual aliás
tenho uma pequena / enorme discordância – com ele e com Heidegger – situada
nessa coisa minúscula e imensa que é o «eu». Estou apenas a defendê-lo e a
tentar aproximar a sua Ideia do Ser heideggeriano. Começa pelas diferenças, o
Ser será sempre inapropriável,
irredutível, irrevelável – e a Ideia tem teórica e logicamente, um termo da
revelação. Por outro lado a Ideia ou Espírito em cada época não tem nada
«escondido», é um absoluto para essa época, não releva de nenhum mistério, por
mais que a realidade dele (do Espírito – que, aliás, de passagem se diga, é o
que realmente define e realiza
qualquer período da história do homem) por mais que a sua realidade, dizia,
seja imensamente oculta como o futuro o demonstrará. Mas o Ser é o que em
qualquer tempo ou situação ou verdade representa a outra face invisível de tudo
isso, como na obra de arte espectacularmente se prova. De todo o modo, Ser e
Espírito representam a totalidade do que é – num caso (no Espírito) em
pensamento lógico; e no outro (no Ser) em inominável e para sempre misterioso.
Mas sendo assim, o Espírito é o que há-de esclarecer-se e
há-de portanto vir à superfície do saber; e o Ser é de sua condição jamais vir
à superfície ou melhor, estabelecer-se aí, porque o invisível de tudo é que é a
sua condição e o vir à superfície é o que acontece apenas em instantes de
iluminação para logo de seguida se retirar para a zona do insondável ou
incognoscível ou inominável. A obra de arte, que privilegia a sua revelação (a
do Ser), pode nem sempre operá-la – e para a maioria das pessoas não se opera,
porque um quadro é uma agradabilidade de cores e linhas, uma música, de sons,
uma escultura ou um templo, de volumes, etc. Poderei avançar com algo que um
dia pus em evidência e suponho poder irmanar-se ao que digo e que é a aparição? Porque um quadro, como
sabemos, aparece, como o nosso «eu»,
uma flor, etc. – como a própria doutrina de Heidegger. É quando lhes vemos
apenas o «corpo», o lado material e imediato, não a «alma», o que está por
detrás disso e só em instantes de milagre se revela. Naturalmente o Ser
heideggeriano é muito mais do que isso, porque é em termos filosóficos o
fundamento de todo o pensar, o que acede à linguagem, o que, por mais que Heidegger
o negue, invencivelmente aproximamos do conceito de Deus. Mas o que é fundamental
no Ser é o que há nele de furtivo, de irrealizante, de fundo insondável para
onde converge o que há em tudo de misterioso, inapreensível, inominável, o
simplesmente il y a, o «há», o ser
abertura, como julgo já ter dito. E justamente por isso o grave erro de
Heidegger foi dar um nome ao que o não tem, manipular o seu conceito como se
fosse conceptuável, querer à força manter-lhe o lado misterioso e tratá-lo como
um qualquer elemento filosófico. Ora a filosofia de Heidegger (como já o
indiciara Nietzsche) é marcada pela irredutibilidade a uma linguagem conceptual
como qualquer outra. E há ainda – mas já estou farto de escrever – a sua
obsessão de intrometer e esmoer infindavelmente a noção do Ser com que vamos
topar sempre, fale do que falar (como o sexo em tudo quanto Freud escrevia).
E agora, se me permitem, vou ler o jornal, onde com certeza
se não fala de Hegel ou de Heidegger, mas dos nossos políticos e futebolistas –
aliás, com grandes afinidades entre si.
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