terça-feira, 2 de abril de 2013

2 – Abril (segunda). [1990]

       Que tenho ainda a pensar? Sobre quê? Onde a coragem inumana para escrever ficção? Como é possível a literatura ou mesmo a filosofia? Que tens ainda a ser em escrita? Não, não é a velhice, que é realmente uma razão considerável. É o meu tempo, a hora suspensa da História, que pude anunciar, mas não tinha vivido. É o súbito vazio que nos desorientou, a anulação de qualquer impulso que nos movimente, seja por si razão bastante para a nossa decisão. Nós não damos conta de um acerto do que fazemos com o que nos envolve e muitas vezes ignoramos. O impulso vem daí e a obra que realizamos é o ponto terminal de uma harmonia desconhecida. Há um acordo entre o que fazemos e o todo de que fazemos parte e em que isso que fazemos se insere por uma certa necessidade ou justificação ignorada. Como o ar que respiramos e em que somos viventes sem pensarmos nesse ar. A união de uma obra com o seu tempo é isso – uma harmonia desconhecida que a tomou justificável e de algum modo necessária. Pelo acordo ou oposição, concordância ou discordância agressiva, tudo é um todo numa harmonia final. Mas de repente faltou-nos o ar e sabemos então que não podemos respirar, que uma razão de fundo e profunda nos faltou para agir. Aí estamos. Aí nos debatemos com a injustificabilidade, a pertinência de qualquer coisa que façamos. A História está em suspenso – como o suspeitei no meu livro Signo Sinal. À superfície das razões como razão imediata e visível, a base de apoio para nos erguermos sobre nós foi a razão quase ridícula do desmoronamento do comunismo. Porque os comunistas, para-comunistas e anticomunistas e mesmo os quase indiferentes, ficaram todos de súbito órfãos sem a sua base de apoio. O comunismo foi o grande ordenador da vida de todo o Mundo. Mas havia atrás dele uma outra razão de se ser, cujas raízes se perdem já no incognoscível. É o «desconcerto do mundo» cuja razão está antes de todas as razões e é o que para ter um nome poderemos chamar o espírito da História, o arranjo oculto da sua orientação, o signo que a marcou e de que a desorganização visível é o sinal. Não é assim de estranhar que as religiões venham ao de cima com a sua fácil redenção ou sedução. É à hora da morte que há mais conversões. Mas elas têm a debilidade de se resolverem num ser débil. Débil está o Mundo inteiro – a emergência da religião é a prova da debilidade desse Mundo. O moribundo aferra-se ao que tiver à mão, nem que sejam as dobras do lençol. Não prova isso que a salvação esteja lá.
*
       Mas queria registar uma série de coisas que se me atropelam umas nas outras – terei estilo para serem escrita? Ontem fomos a casa do Gilo ver uma emissão francesa de três entrevistas feitas o ano passado à TV suíça. Sophia de Mello Breyner Andresen abriu o cortejo. Falou do povo, do fado (para lhe arrear um pouco), leu necessariamente um poema e teve sempre um estranho tremor nos dedos. Depois seguiu-se o sorriso urbano do Urbano e o seu elogio do socialismo (antes do rebentamento a Leste). Depois falei eu do Para Sempre com muitos gestos e muitos tiques que me não caíram bem no simpático. Mas tudo isto foi bom para dar aos franceses a notícia de que há escritores em Portugal e não apenas a grande Amália e o enorme Eusébio.
       Queria depois registar que estou a ler o número da revista (nossa) «Filosofia» dedicado a Heidegger. Fui reler o meu texto de há quase 30 anos sobre o Existencialismo em que falo do grande filósofo e ver se tal texto estava parecido com o dos refinados especialistas. Estava. E nalguns casos mais parecido com o filósofo do que os textos especializados, pela razão de ter tentado não apenas recitar os dados do filósofo mas ainda assumi-los e trespassá-los de uma explicação plausível. Quando o escrevi, pouca gente sabia entre nós qual a problemática não apenas de Heidegger (Husserl, Jaspers, etc.) mas do próprio Sartre. Gostaria de reeditar o meu texto, já esgotadíssimo e que funcionou como prefácio à conferência O Existencialismo é um Humanismo. Mas o director da editora «Presença» mandou-me um secretário telefonar-me a dizer que me davam 200 contos de caras e não se falava mais nisso. Achei curto. Queria o que dava a outros ensaístas publicados na casa. Achou comprido. E acabou-se a conversa. Pelas minhas contas, os 200 contos da isca não davam talvez um por cento. Já é querer pertencer às classes exploradoras. Uma outra coisa foi a vinda aqui a casa do Almeida Faria que veio trazer-me um exemplar da tradução francesa de Aparição. Folheei. Pareceu-me apetecível. Traz um prefácio do Robert Bréchon cheio de simpatia. Mas na fotocópia que já me enviara, por entre a comovedora amabilidade, diz Bréchon que Aparição não é o meu livro mais original. Quanto à estrutura, personagens, etc. tem bastante (não toda) razão. Mas dá-me voltas ao juízo o facto de ninguém reparar no que há de fortemente original na concepção do «eu» que é um «eu» metafísico e de dificílima explicação, mas que é real porque o experimentei, tive dele a experiência certo dia em Évora, mas não sou capaz de transmitir à intelecção dos outros. Almeida Faria está contente, nada perturbado pela tremenda convulsão que trouxe ao Mundo o estoiro a Leste de que falei atrás. Estarei eu na mesma situação de não poder explicar o caso, como não expliquei o do «eu»? A propósito ainda, o Ed. Lourenço remeteu-me para o Ortega y Gasset onde já vinha tudo. Em que livro e passo dele? quis eu saber. Não me disse. Outros falam-me das «epifanias» do Joyce. Mas não é isso! A Aparição, aliás, não diz respeito apenas ao «eu», mas a toda a revelação não das «essências» joycianas, mas do mistério, alarme do já sabido. De quem devo estar mais próximo é de Heidegger para o sentido originário de tudo (não do «eu», que ele recusa e reduz a uma ek-stase, a um estar-aí, fundido ao mundo, às coisas, onde realmente vem a descobrir o «mistério», que é o lado de lá do que é verdade visível. Mas (Interrompido)
VF 

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