segunda-feira, 22 de abril de 2013

22 – Abril (domingo). [1990]

       Ontem tive de novo um sintoma de coisa grave no recto. A Regina insistiu que era das hemorroidas – que palavra feia, a do sítio do sintoma e a do que a Regina propõe. Mas todas as palavras são feias para a desgraça e entre elas logo a da velhice. Tinha prometido uma visita à Gabriela Liansol, que mora no Banzão, e lá fui com a alma escura e o espírito entaramelado. Mas lá cumpri como pude. E à noite quando voltei a falar no meu alarme a Regina teimou que tinha sido no dia anterior. Fiquei gelado. Se mudássemos de assunto?
       Faz hoje oito dias que morreu a Greta Garbo. Foi um acontecimento mundial. Era a morte de um mito do cinema. E o mito nasceu da sua vida misteriosa e sobretudo de se ter afastado do cinema em plena glória. A renúncia assim para se afastar «em beleza» excitava imenso o nosso imaginário. Nunca se casara mas tivera vários amores. Quais? Sabia-se de um ou outro, a começar no John Gilbert, seu parceiro nos filmes. E com a notícia da sua morte, a TV exibiu um documentário da sua vida com trechos dos seus principais filmes. Extraordinária coisa. Porque os trechos dos filmes punham-nos diante do facto real que era o que ela fora como actriz. Os grandes «monstros» do passado nas artes de que não ficou o registo – grandes cantores, executantes, actores – passaram à posteridade sem a contraprova da sua actuação para nós vermos como foi. Mas agora o disco e o filme deixam-nos a prova real do que foram. E então quase sempre é a decepção sem remédio. Garbo foi uma grande actriz para o gosto do seu tempo. E o gosto do seu tempo tem que ver com a totalidade desse tempo e foi em função dele que se teve uma aferição. Mas esse tempo mudou e com ele o gosto que foi seu. E agora temos só a manifestação desse gosto numa fracção que lhe pertenceu. Assim a Garbo surgiu-nos separada do que a englobava e onde fora grandiosa. Mas agora havia só a sua actuação sem o contexto em que se inserira a sua grandiosidade. E o resultado – para mim ao menos – foi o quase ridículo das grandes paixões com o seu ritual de atitudes docemente ingénuas para um tempo que já se não reconhece nelas. Seria aqui que devia funcionar o que Malraux chamou a «metamorfose». Mas a metamorfose é difícil funcionar no que é demasiado nítido, real, definitivo. É o que separa de um modo geral o cinema das artes plásticas e mesmo da literatura. Porque nestas o que está nelas tem uma margem de inominável, de flutuação, de mistério em que a metamorfose pode actuar.
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       O Luís Amaro, que é um bom mas escasso poeta da área do Saul Dias, é simultaneamente um feroz revisor de provas que só numa instantânea distracção deixa escapar uma gralha. E eu pedi por isso ao Adriano Lopes, da Bertrand, que lhe confiasse a tarefa policiária de rever o meu romance. Hoje precisei de lhe transmitir algumas alterações (minúsculas) em certos passos. E disse-me ele, agora que está rever as segundas provas e as vai levando portanto numa leitura corrente, que o meu livro é «muito bom», talvez o meu melhor romance de sempre. E eu fiquei com uma alegria na alma que me compensou do meu receio de ter alguma desgraça no recto. Mas o que é extraordinário é ser eu tão sensível à opinião dos outros, eu que contra muitas vezes a opinião desses outros, garanto a pés juntos que talou tal livro é uma merda. Os deuses dotaram-me já não digo de uma óptica segura para julgar a obra alheia mas de uma segura convicção do que penso sobre ela. E sobre a minha própria obra não tenho óptica nenhuma. De certos livros pensei que eram uma maravilha. E os outros depois disseram-me que era uma coisa medíocre. E ao contrário. Muitos anos passados sobre um meu livro, a minha opinião é mais segura porque ela se sedimentou. Mas mesmo então há às vezes divergência entre o que penso e o que pensam ao contrário. Simplesmente nessa altura podem correr-me à pedrada que não vou abaixo. Sei hoje o que valem os meus livros antigos. E não há saber algum diferente que torne diferente o meu saber. Mas um livro ainda quente do forno nunca sei se está bem cozinhado e lhe falta condimento ou mesmo substância. Porque então uma e outro estão ainda em mim e assim não sei se estão também na obra. E é assim.
VF

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