Ontem tive de novo um sintoma de coisa grave no recto. A Regina
insistiu que era das hemorroidas – que palavra feia, a do sítio do sintoma e a
do que a Regina propõe. Mas todas as palavras são feias para a desgraça e entre
elas logo a da velhice. Tinha prometido uma visita à Gabriela Liansol,
que mora no Banzão, e lá fui com a alma escura e o espírito entaramelado. Mas
lá cumpri como pude. E à noite quando voltei a falar no meu alarme a Regina
teimou que tinha sido no dia anterior. Fiquei gelado. Se mudássemos de assunto?
Faz hoje oito dias que morreu a Greta Garbo. Foi um acontecimento mundial. Era a
morte de um mito do cinema. E o mito nasceu da sua vida misteriosa e sobretudo
de se ter afastado do cinema em plena glória. A renúncia assim para se afastar
«em beleza» excitava imenso o nosso imaginário. Nunca se casara mas tivera
vários amores. Quais? Sabia-se de um ou outro, a começar no John Gilbert, seu parceiro
nos filmes. E com a notícia da sua morte, a TV exibiu um documentário da sua
vida com trechos dos seus principais filmes. Extraordinária coisa. Porque os
trechos dos filmes punham-nos diante do facto real que era o que ela fora como actriz. Os grandes «monstros» do
passado nas artes de que não ficou o registo – grandes cantores, executantes,
actores – passaram à posteridade sem a contraprova da sua actuação para nós vermos
como foi. Mas agora o disco e o filme
deixam-nos a prova real do que foram. E então quase sempre é a decepção sem
remédio. Garbo foi uma grande actriz para o gosto do seu tempo. E o gosto do
seu tempo tem que ver com a totalidade desse tempo e foi em função dele que se
teve uma aferição. Mas esse tempo mudou e com ele o gosto que foi seu. E agora
temos só a manifestação desse gosto numa fracção que lhe pertenceu. Assim a
Garbo surgiu-nos separada do que a englobava e onde fora grandiosa. Mas agora
havia só a sua actuação sem o contexto em que se inserira a sua grandiosidade.
E o resultado – para mim ao menos – foi o quase ridículo das grandes paixões
com o seu ritual de atitudes docemente ingénuas para um tempo que já se não
reconhece nelas. Seria aqui que devia funcionar o que Malraux chamou a
«metamorfose». Mas a metamorfose é difícil funcionar no que é demasiado nítido,
real, definitivo. É o que separa de um modo geral o cinema das artes plásticas
e mesmo da literatura. Porque nestas o que está nelas tem uma margem de
inominável, de flutuação, de mistério em que a metamorfose pode actuar.
*
O Luís Amaro,
que é um bom mas escasso poeta da área do Saul Dias,
é simultaneamente um feroz revisor de provas que só numa instantânea distracção
deixa escapar uma gralha. E eu pedi por isso ao Adriano Lopes, da Bertrand, que
lhe confiasse a tarefa policiária de rever o meu romance. Hoje precisei de lhe
transmitir algumas alterações (minúsculas) em certos passos. E disse-me ele,
agora que está rever as segundas provas e as vai levando portanto numa leitura
corrente, que o meu livro é «muito bom», talvez o meu melhor romance de sempre.
E eu fiquei com uma alegria na alma que me compensou do meu receio de ter
alguma desgraça no recto. Mas o que é extraordinário é ser eu tão sensível à
opinião dos outros, eu que contra muitas vezes a opinião desses outros, garanto
a pés juntos que talou tal livro é uma merda. Os deuses dotaram-me já não digo
de uma óptica segura para julgar a obra alheia mas de uma segura convicção do
que penso sobre ela. E sobre a minha própria obra não tenho óptica nenhuma. De
certos livros pensei que eram uma maravilha. E os outros depois disseram-me que
era uma coisa medíocre. E ao contrário. Muitos anos passados sobre um meu
livro, a minha opinião é mais segura porque ela se sedimentou. Mas mesmo então
há às vezes divergência entre o que penso e o que pensam ao contrário.
Simplesmente nessa altura podem correr-me à pedrada que não vou abaixo. Sei
hoje o que valem os meus livros antigos. E não há saber algum diferente que
torne diferente o meu saber. Mas um livro ainda quente do forno nunca sei se
está bem cozinhado e lhe falta condimento ou mesmo substância. Porque então uma
e outro estão ainda em mim e assim não sei se estão também na obra. E é assim.
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