sábado, 23 de abril de 2011

Cadernos de Lanzarote (Diário – I)

23 de Abril [1993]
Terminado «O Conto Burocrático do Capitão do Porto e do Director da Alfândega». Tirando a questão, relativamente insignificante, de saber se o que escrevi é de facto um conto, creio haver posto na história muito mais do que a anedota original prometia. Interessante foi ter repetido, em relato de espírito tão diferente, aquele jogo do mostrar e do esconder que usei nas primeiras páginas do «Centauro», falando, alternadamente, de homem e de cavalo para demorar a informação de que, afinal, era de um único ser que se tratava – o centauro. Neste caso do «Conto Burocrático», o outro era, simplesmente, o mesmo.
Graças às tão louvadas e tão caluniadas tecnologias, agora o inefável fax (por que é que não dizemos, à moda antiga, fac similc?), pude ler, hoje mesmo, o artigo que o Eduardo Prado Coelho publicou hoje no Público. A inteligência deste homem – irritante, às vezes, graças a uma espécie de clareza de visão e de exposição (agressivas pela eficácia, mas nunca pedantes) que é capaz de nos fazer parecer tudo óbvio desde o princípio, quando o que nos teria dado prazer seria ver compartilhadas por ele as dificuldades do nosso próprio entendimento – soube ler, como ninguém o fez até agora, ln Nomine Dei. Estimam-se aqui os louvores, aliás, como é norma sua, sempre discretos («um texto que equaciona com meios poderosamente pedagógicos todos os problemas da estrutura religiosa do pensamento», «numa dessas fórmulas envolventes e certeiras de que Saramago tem o segredo», «uma contribuição preciosa para aqueles que consideram fundamental a defesa da sociedade civil contra os fanatismos e fantasmas dos fantásticos»), mas o que Prado Coelho diz de mais importante, e que, sem ambiguidades, põe o dedo na ferida que eu pretendi mostrar e desbridar com esta peça, condensa-se em duas perguntas finais: «Como conciliar o princípio da crença com o princípio da tolerância? Seremos nós capazes de viver em crença, para sermos um pouco mais que coisa nenhuma, e aceitarmos a pluralidade inconciliável das crenças?» Ora, se o meu livro foi capaz de suscitar em Prado Coelho estas interrogações, dou-me por satisfeito. Fica demonstrado – e que me seja perdoada a presunção – que algumas interpelações fundamentais também podem ser feitas do lado de cá. Não deixo, contudo, de pensar que foi preciso eu ter escrito alguns milhares de páginas e, depois delas, estas de ln Nomine Dei para que o nosso «conselheiro cultural» (conselheiro em todos os sentidos, não só no diplomático) se dispusesse a olhar com alguma atenção um texto meu.
José Saramago (1922/11/16 – 2010/06/18)

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