segunda-feira, 18 de abril de 2011

Cadernos de Lanzarote (Diário – I)

18 de Abril [1993]
O filme não teve o favor de uma direcção de primeira classe (quem é Valerian Borowczyk?), não contou com actores de cartaz (nem um único nome conhecido), a produção (França-Alemanha-Itália), se tinha dinheiro, não o gastou aqui – e, contudo, esta Lulu de 1979, tosca, ingénua, quase primitiva (intencionalmente?), híbrida de um expressionismo mal recuperado e de um erotismo que não se decide ou a si mesmo se limita, chega a ser, muitas vezes, perturbadora. A ostensiva nudez de Lulu, apesar de total e exibida sem disfarce, torna-se, a meu ver, demonstração de uma pureza recôndita, essencial, que vai resistir a todas as degradações e a que a morte dará o amargo sabor de uma perda irremediável: Lulu apareceu no mundo, mas o mundo não a reconheceu, usou-a como usaria outra qualquer. Não li nunca o teatro de Wedekind, e à ópera de Alban Berg só a conheço (e mal) de disco, mas este filme de Borowczyk fez-me perceber que Lulu, bem mais do que um mero símbolo do fascínio sexual da mulher, é uma representação angustiante da inacessibilidade irredutível do ser.
José Saramago

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