quarta-feira, 25 de junho de 2014

NINGUÉM AS VESTE QUE AS NÃO BORRE...


Após um mês de sol apareceram os nevoeiros. A exemplo da Primeira República Francesa, também em Barroso se podia chamar Brumário ao segundo mês do ano.
Brumário por causa das brumas do «nosso descontentamento». Embirro sobremaneira com os dias em que a aldeia acorda envolta em nevoeiro. Era a coberto dele que, outrora, os lobos desciam dos montes e atacavam os cães nas eiras.
O medo que nós tínhamos aos lobos! Nós, os pequenos pastores. «Viste lobos?» — perguntávamos, na galhofa, àqueles que, por resfriado ou qualquer outra patologia das cordas vocais, apareciam afónicos. Isto porque, quem visse lobo, perdia a fala.
A mim, em boa hora o diga, nunca me aconteceu. Mas fartei-me de berrar a lobo.
Um dia por outro, no relativo silêncio dos montes, ecoava o alarme: «Lobo! Aí vai Lobo! — E logo de todos os pontos apareciam vozes: «Cerque, Ti António!» «Dá-lhe fogo, Joaquim!» — «Agarra cão!»
Por vezes não se via lobo nenhum. Outras, lá ia ele, disparado como uma seta, em diagonal, direito à serra.
Eu, em garoto, nunca arrostei com um lobo. E foi pena. Foi pena porque, assim, nunca tive ensejo de pôr em prática a teoria que o Avô me ensinara. Um dia fui dar com ele sentado no escano a calçar-se para ir à caça.
— O Paizinho não tem medo aos lobos? — perguntei.
E o Avô, que era muito divertido, respondeu:
— Tenho lá algum medo aos lobos? Sabes o que lhes faço?
— Não.
— Repara.
E o Avô, enfiando a mão no carpim, virou-o do avesso. Depois, arregaçando a manga do braço direito, exemplificou:
— Enfio-lhes a mão goelas abaixo, agarro-os gela tripa do cu e viro-os com o de dentro para fora.
No dia seguinte, estando eu à lareira a ensaiar a manobra numa peúga: «Eh, lobo!» vem de lá a mãe e espeta-me dois tabefes:
— Mas tu calças-te para ires com o gadinho, ou estás de pantomina?
Doutra feita, andando eu com as vacas em Fontefria, aparece o Barrolo com a rês. Pusemo-nos a jogar a choca e o rebanho foi andando até desaparecer para além dum cômoro de maninho. Nisto, passa a caminheta das cinco da tarde. Diz o Barrolo:
— Tenho de ir virar a rês, se não ainda vem algum carro e desgraça-me.
E mete a correr, pau no ar e goelas abertas:
— Chiba aí ei... ei... i.
Ainda mal tinha desaparecido, reaparece, a tropeçar nas próprias pernas, cabelos no ar, olhos esbugalhados, boca aberta.
— Que foi, Barrolo? Viste lobo?
Ele abria e fechava a mandíbula, como sapo das hortas em dias de calor ou náufrago de água doce que perde o pé, mas não dizia nada.
— Levou-te algum richelo?
Numa voz roufenha, de cartilagens secas, o Barrolo lá conseguiu articular:
— Uma ovelha!
— Rais-ta parta! Porque não chamaste por mim?
— Que é que tu lhe fazias?
Eu exemplifiquei a manobra do Avô:
— Virava-o com o de dentro para fora.
— Fia-te. Se o visses acontecia-te o mesmo que a mim.
Olhei para ele com mais atenção:
— Não me digas que borraste as calças?
— Ó Marinheiro? Não fales nisto a ninguém, que é uma vergonha...
— Oh, Barrolo? Não faças caso. Isso acontece a qualquer um. «Ninguém as veste que as não borre... É dos livros.»

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas de Barroso (p. 128 e s.)

sábado, 21 de junho de 2014

Coimbra, 20 de Junho de 1978.


ARQUIVO

Tão baço o teu retrato
No álbum da lembrança!
Que vaga semelhança
Entre a imagem que vejo
E a dor que sinto!
Minto
Se te disser
Que te desejo ainda,
Que o meu instinto
Te reconhece e quer.
E sei que um dia me perdi
Em ti
Como se perde o homem na mulher.


Miguel Torga, DIÁRIO XIII 

sábado, 14 de junho de 2014

OS MEUS MORTOS


Durante grande parte da nossa vida, a morte é uma coisa alheia e distante que só vaga e incertamente nos diz respeito. Até que, um dia, damos subitamente com ela à porta da nossa própria casa e descobrimos então que sempre ali esteve.
Quando somos jovens e morrem os avós, ou os pais, ou os amigos dos pais, não é ainda a morte. Mesmo se um amigo morre, morre por acidente, morre por acaso, morre antes do tempo de morrer. A morte apenas começa a ter um rosto, o nosso rosto, quando, à volta, os amigos morrem tão-só de morrer e os motivos por que morrem são uma explicação, não uma razão.
A mãe de minha mulher costumava dizer: «Os meus mortos...», e eu não compreendia. Hoje, porém, também eu tenho mortos. Quando o Chico morreu escrevi um poema a que pus o título de «O mundo sem o Chico», porque, descobri, a sua morte tinha levado o mundo consigo e o que me restava era um outro mundo, desconhecido e desabrigado, onde penosamente aprendia a viver outra vida, a minha vida. Depois disso, muitos mais mundos se foram desfazendo diante de mim e, de cada vez, fiquei mais só do lado de cá de qualquer coisa.
Antes de morrer com 16 facadas, numa longínqua auto-estrada da Turquia, Sérgio escreveu-me uma última vez. Uma carta trivial, dizendo coisas triviais sobre coisas triviais, como se não tivesse ainda morrido. A notícia da sua morte chegara, no entanto, primeiro do que a carta. Que podia eu fazer com ela, com a carta, com tanto peso, com tanta desmesura? Também Fernando me escreveu antes de se enforcar. Mandou-me um cheque. Emprestara-lhe em tempos dinheiro e ele esquecera-se de que já mo havia pago e pagava-mo de novo. Que podia eu fazer com um dinheiro tão insustentável como aquele?
E com os seus nomes, que poderei fazer agora com os seus nomes? E que outro nome terão agora o Fernando, o Sérgio, o Chico, o Assis, o Arnaldo, a Marcela, o Luís, o Manuel Hermínio e os outros? Abro a minha agenda telefónica e estão ainda todos paradamente lá, os nomes que um dia tiveram. Que poderei fazer com eles? Riscá-los? Apagá-los? São agora aparentemente inúteis, esses nomes e esses números. E, contudo, ali permanecem, alguns há vários anos. Porque se trata, cada um, de uma questão comigo mesmo, uma questão insolúvel, ainda não encerrada. Todos os anos copio outra vez os seus nomes. Porque ainda não me conformei.
Há de facto na morte algo de injusto e de inaceitável, e as nossas lágrimas são, acho eu, tanto de revolta quanto de dor. Assisti outro dia ao enterro do Manuel Hermínio. Meteram-no num buraco fundo e imenso e, enquanto o Sol declinava lentamente atrás dos pinheiros, três homens despejaram sobre ele terra húmida e pedras. Como poderia conformar-me?
Os meus mortos levaram consigo, de mim, palavras, memórias, dias, lugares, desígnios, incertezas; os seus olhos guardam para sempre o meu rosto, os seus ouvidos a minha voz. Também eu morri com eles, e também eu, o que fiquei, me perdi fora de mim. Onde quer que eles estejam agora, quem quer que sejam, estou, pois, junto deles. E pertencem-me, tanto quanto provavelmente eu lhes pertenço.

Visão, 14/06/2001
Manuel António Pina

quinta-feira, 5 de junho de 2014

TRÊS COELHOS DUMA CAJATADA


Quando um homem está a contar com uma coisa e lhe sai outra, fica sempre desconsolado. Foi o que aconteceu comigo nesta quadra natalícia. Estava a contar com neve. Afinal, o céu teimou em manter-se limpo, o sol a brilhar, a geada a cair. Uma espécie de Janeiro antecipado. Nos meus tempos de garoto, dias destes, só a partir do Ano Novo. Era então que o sol se tornava álgido, a lua altaneira, as geadas de palmo.
Foi por dias desses que eu aprendi a patinar no gelo. Nos lameiros onde eu guardava as vacas, nessa época do ano sempre encharcados, formavam-se grandes lagos de carambelo, verdadeiras tentações para umas acrobacias de patinagem artística, as quais, no meu caso, não tinham arte nenhuma. Aquilo era tombo que te parte, com grandes mossas no esqueleto, dum modo particular nas partes mais salientes, género cóccix e cotovelos. Por amor ao esqueleto, mudei de táctica. Em vez de esqui, passei a fazer escu. Consistia ele em cavalgar molhos de urzes ou giestas e descer as encostas vidradas a grande velocidade, rédea firme, tronco inclinado para trás, pernas em estradiota, goelas abertas, numa atitude selvagem, nem mais nem menos ridícula do que aquela que mais tarde vi fazer a pessoas mais civilizadas na montanha russa da Feira popular de Lisboa.
A brincadeira valeu-me alguns rasgões nos fundilhos, outras tantas bofetadas de minha mãe e ordens expressas de meu pai para me deixar de cavalgadas no gelo. E dado que meu pai não era de brincadeiras, eu passei a esconder-me para as fazer. Ia lá para uma touça com uma fonte e uma lameira em plano inclinado, sempre coberta de gelo e tão recatada entre urzeiras como o toucador duma gueixa entre biombos. Era aí que eu cavalgava matões a meu bel-prazer e à rédea solta.
Ora uma tarde em que eu me entregava ao meu desporto favorito e proibido, sai-me dentre as urzes o meu cão com um coelho na boca. Isto não teria nada de anormal se, atrás do coelho, não viesse uma ratoeira a rastos. Recolhi o coelho ao bornal, fiz umas festas ao Dezoito, que assim se chamava o cão, atirei com a ratoeira à lura dum carvalho antigo e com o assunto para trás das costas.
Era isto a um domingo e eu aluno da quarta classe. Vim para casa, meti as vacas, ceei mais cedo e fui dormir a S. Vicente, onde, segunda-feira, a professora exigia a nossa presença logo ao romper o dia. À hora do recreio, estava o meu vizinho Joaquim do Fontenova, praça velha, direito comigo. Pelos vistos, a ratoeira era dele. Neguei, claro.
— Ai sim? E onde foste tu pelo coelho que ontem trouxeste para casa?
— Agarrou-o o meu Dezoito.
— Na minha ratoeira?
— Não vi ratoeira nenhuma, já te disse!
— Acuso-te à professora.
— Acusa. Quero lá saber.
Nesta altura da discussão já estávamos rodeados por todos os alunos das quatro classes e uma boa parte dos vizinhos de S. Vicente. E até o senhor abade, que regressava do passal de cabeção, batina, tamancos e sacho às costas, quis saber que galega parira ali? Inteirado, pôs aquela cara de bondade e riso que era a dele e disse:
— Vá. Ide à vossa vida. Deixai-me aqui só com o Fontenova e o Marinheiro que lhes quero um segredo.
A malta dispersou. O pároco voltou-se para o Fontenova e inquiriu:
— Quantos coelhos tens em casa?
— Um.
— Não. Tu, às ratoeiras que armas todas as noites, deves ter mais?
— Bem. Se o senhor abade tem alguma incumbência, podem-se arranjar mais alguns.
— Quantos?
— Uns quatro ou cinco.
— Preciso apenas de dois.
— Onde quer que lhos deixe?
— Entrega-los aqui ao Marinheiro.
— Para quê?!
— Ele te dizer onde está a ratoeira.
— E o senhor abade fica por ele? — atalhei eu a rir-me.
Ele ameaçou-me com um tabefe:
— Anda, que tu és malandro, mas desta já eu te safei.
No domingo seguinte, estando eu no adro entre um ror de rapazes e homens à espera do toque de entrada para a missa, vem de lá o Faia de Travassos, sempre pantomineiro, bate-me duas palmadinhas nas costas e exclama:
— Ora aqui está o homem que matou três coelhos duma cajatada...


Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas de Barroso (p. 122 e ss.)

Coimbra, 5 de Junho de 1978.


ADEUS

É um adeus…
Não vale a pena sofismar a hora!
É tarde nos meus olhos e nos teus…
Agora,
O remédio é partir discretamente,
Sem palavras,
Sem lágrimas,
Sem gestos.
De que servem lamentos e protestos
Contra o destino?
Cego assassino
A que nenhum poder
Limita a crueldade,
Só o pode vencer
A humanidade
Da nossa lucidez desencantada.
Antes da iniquidade
Consumada,
Um poema de lírico pudor,
Um sorriso de amor,
E mais nada.

Miguel Torga

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Skaters (2011)



Descrição: Óleo sobre placa
Localização: colecção privada 
Autor: Manuel Alcorlo

sábado, 17 de maio de 2014

um homem sorri a morte -com meia cara


JOSÉ RODRIGUES MIGUEIS

um homem
sorri a morte

-com meia cara



 Editorial Estampa





IN MEMORIAM

DO

DOUTOR FRANCISCO PULIDO VALENTE,

mestre de médico e de homem,

E DO

DOUTOR Luís NAVARRO SOEIRO,

grande coração ao serviço das almas

J. R. M.






Ao traçar estas páginas de memória duma crise, entre tantas que talvez um dia reúna em maior tomo, punha-se-me este problema: até que ponto pode um escritor falar das suas experiências pessoais, sem incorrer na pecha de subjectivismo e sem ser indiscreto a respeito de si próprio? Será possível, nesta época e num meio como o nosso, avesso por tradição e preconceito à literatura de confissões, que tem enriquecido e ajudado a esclarecer tantas outras culturas, usar da franqueza de um Rousseau, de um Stendhal, de uma Bashkírtseva, para não dizer já de um De Quincey ou Baudelaire? Flaubert deixou-nos documentada a crise inicial de epilepsia, que tanto faz pensar na do Jean-Jacques das Confessions; de James Joyce esforçam-se os biógrafos por descrever-nos a cegueira e a úlcera gástrica; e Uriel da Costa, e Scott Fitzgerald? Indo ao extremo da indiscrição, quanto se não tem especulado sobre a «necrofilia» de Camilo ou a castidade de Júlio Dinis! Já houve quem «explicasse» a angústia de Antero pelo aperto do piloro ou do cárdia, não sei bem, e o seu suicídio — ó céus! — pelo aumento da pressão atmosférica. O sofrimento, como parte tecidual da existência, é um enigma que empolga os homens.
Mas, independentemente da desproporção dos casos, a questão peca pela base, pois não é do autor que aqui se trata, essencialmente, mas sim do que, na sua experiência pessoal, possa ser comum, comunicável, útil até, como exemplo e lição, aos demais homens. Estas não são confissões de egotismo, nem de actos ou pensamentos secretos, nem sondagens do «eu odioso», mas um caso humano narrado em primeira mão pela sua mais próxima testemunha, com a objectividade de um romance, e pretexto para agitar certos problemas tão gerais como a inquietação da doença e da morte, ou a atitude do indivíduo perante o sofrimento físico e o destino pessoal.
Sim, foi sobretudo para os hipocondríacos — os aterrados da doença, os obcecados do fim — que eu escrevi estas páginas de jornal; depois, para os que queiram saber como se reage num leito de hospital, quando a morte ronda; e talvez também para aqueles médicos a quem interesse saber como os vêem os seus doentes.
Procurei pintar um ambiente real: o dos hospitais numa grande metrópole moderna, onde a dor e a brutalidade, a doçura e o humor, e em particular a devoção dos médicos e das enfermeiras põem traços de tragédia e de epopeia, diante das quais o tema pessoal se apaga e some.
Que escritor, dispondo deste material de experiência vivida, recusaria tratá-lo com objectividade, pintando o cenário e os actores dum drama que diariamente se desenrola a nosso lado, mas ignorado ou esquecido, ou pudicamente velado pelos preconceitos? Não se escrevem porventura memórias de guerra, de masmorras e campos de concentração? E não será também saudável mostrar em que lamas o homem se arrasta ou mergulha por vezes, para delas se erguer e libertar, purificado?
O que importa ao escritor, subjectivador do objectivo, intérprete das reacções do indivíduo em face das calamidades que de todos os lados nos ameaçam, é recriar para os leitores o quadro das experiências de que foi o centro, dando-lhes a ilusão, porventura instrutiva, de serem eles os actores do drama.
Se, ao traçar alguns destes episódios, roço aqui além pela ironia, é sempre com profundo respeito e comovida gratidão que me refiro aos autênticos apóstolos da medicina que tenho conhecido. Os erros são de todos nós, humanos, e não seria de esperar que deles estivessem isentos os homens da bata branca. Nem de longe tentei reincidir na sátira de que há milénios eles têm sido alvo. Pode-se dizer dos médicos o mesmo que das mulheres e dos judeus: crivados, eles e elas, de epigramas e ataques, a humanidade não saberia nem poderia viver sem a sua presença.

J.R.M.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Coimbra, 15 de Maio de 1979.


UM POEMA DE AMOR

É um poema de amor.
Começa num sorriso promissor
E acaba num soluço
De saudade.
Entre essas duas margens,
Um rio de silêncio.
Um rio largo, onde se espelha, baça,
A paisagem severa de uma vida,
A que faltou a graça
Dessa remota hora repetida.

MIGUEL TORGADIÁRIO XIII

quarta-feira, 7 de maio de 2014

SE TE NÃO PODES DESFAZER DOS INIMIGOS, JUNTA-TE A ELES


Se os dias, como os substantivos, se classificassem pelo género, incluiria o de hoje entre os neutros. De manhã choveu e de tarde fez sol. Embora não seja homem de grandes afazeres, só pela noitinha pude sair de casa. O Outono está quase no fim, as árvores quase nuas e os caminhos atapetados de folhas. Gosto de as sentir debaixo dos pés. Criam-me a ilusão de passear por sobre as alfombras das salas, corredores e jardins privativos do sultanesco palácio que um dia o génio da lâmpada de Aladino me prometeu e até hoje ainda não cumpriu.
A quinhentos metros da aldeia, caí na solidão absoluta. Apenas um leve pipilar de aves que dir-se-ia vir ou fazer parte da terra. O poente enrubescia e a lua navegava alta por entre nuvens cor de chocolate com pinceladas laranja. Um fim de tarde de pastores enamorados, cavaleiros andantes, menestréis a dedilhar a tiorba e princesas elanguescidas ao balcão.
Vinha já de regresso, a pensar na morte da bezerra ou na minha, já me não lembro, surge-me pelas costas o Anacleto.
— Que andas por aqui a fazer a esta hora? — perguntou.
— Nada que me envergonhe. E tu?
— Venho ali do lameiro. E sabes o que fui lá fazer?
— Tornar a água.
— Mandinga aos porcos-bravos.
— Algum laço?
— Roupa velha.
— Restos de comida? É isso?
— Não.
— Homem explica-te por uma vez.
— Os tipos levam-me o lameiro virado. Vêm ao vezo dos niscros e da bolota e viram tudo. Se eu lá esconder umas peças de roupa usada, os gajos cheira-lhes a homem e fogem.
— Ora aí está um truque que eu desconhecia.
— Ficas a saber.
— Por falar em porcos. Já mataste?
— Eu agora já não mato. Os filhos estão todos para a França. A mulher não come carne de porco. Eu também não.
— Não gostas?
— Gostar, gosto. Mas o médico proibiu-ma. E olha que bem saudades tenho das matanças de antigamente. Aquilo é que eram festas! Ainda me lembro da primeira vez que matei. Como sabes, eu era um criado de servir. Não tinha onde cair morto, como se costuma dizer. Mas era apaixonadiço, namorei a minha Rosa e não tive outro remédio se não casar com ela. Fomos viver para uma corte cedida de esmola pela Viúva, boa mulher, Deus a tenha em bom lugar, que bem o mereceu. O espaço não era muito, mas a minha Rosa tanto insistiu que eu improvisei lá um cortelho para ela criar um reco. À força de leitugas e labrestos apanhados por esses lameiros de pasto e terras de centeio, castanhas, bolotas e batatas do rebusco, erva dessas bordas e o suprimento dumas malgas de grão e outras de farelo mendigadas pela minha Rosa por casa das lavradeiras a quem ajudava nas lides de casa, pudemos chegar ao São Martinho em condições de matar o nosso porquinho. Convidámos os meus sogros e quatro amigos para a matança. Fizemos tudo o que havia a fazer da parte da manhã e, ao meio-dia, estávamos à mesa. Julguei que os tipos, barba untada, barriga cheia, se fossem embora. Mas não. Só os meus sogros é que se retiraram. Os outros quatro puseram-se a jogar as cartas. Veio a merenda, veio a ceia, e os tipos não largavam. Acabaram-se as filhós de sangue, o sarrabulho, a coiracha, o fígado, os rins, o gorgomilo, tudo o que era do dia, e os tipos sempre a reclamar: «Então não há mais nada que se coma?» Comecei a desmanchar no porco. Lá para a meia-noite, rosnei ao ouvido da minha Rosa: «Vamo-nos deitar a ver se os alarves ganham vergonha e se vão embora.» E depois, em voz alta: «Bem, rapazes, desculpai lá, mas eu e a Rosa vamo-nos deitar.» «Ide. Ide, que nós cá nos arranjamos» — respondeu o que embaralhava. A minha Rosa, coitada, morta de fadiga, adormeceu logo. Mas eu não havia maneira de pregar olho. De golpe, saltei da cama, fui para junto deles e toca a dar ao dente... Não carai... E com esta me vou. Até logo.


Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas de Barroso (p. 122 e ss.)

sexta-feira, 18 de abril de 2014

O PÉ DESCALÇO


Há dias, estando eu a arrumar uns livros na estante, deparei com um datado de 1956 e o seguinte título: «O PÉ DESCALÇO — Uma Vergonha Nacional que Urge Extirpar». Fiz com ele o que as máquinas de contar dinheiro fazem com as notas de cem euros. Premi-o de encontro ao dedo e deixei deslizar as páginas. O suficiente para ficar a saber que, à data do meu nascimento, dois terços dos portugueses andavam descalços. E que, em 1928, a «Liga Portuguesa de Profilaxia Social», com sede no Porto, lançou uma campanha com o título supracitado.
Os argumentos eram de peso. Que «só em 1927 foram socorridas na Cruz Vermelha da Cidade Invicta, 600 pessoas com ferimentos nos pés», grande número das quais veio a morrer de tétano.
Que o vergonhoso hábito de andar descalço estava tão arreigado, que se viam raparigas com boas roupas, cordões de oiro ao pescoço e arrecadas nas orelhas e os pés nus. O mesmo nos rapazes. Bons fatos, gravata, correntes com grilhão no colete e pata ao léu.
Que o grande número de pessoas descalças por essas ruas e praças causava espanto e comentários desagradáveis nos estrangeiros que nos visitavam. Que só em Portugal e na África se viam coisas destas. Guerra ao pé descalço.
Lentamente, como quem rola um penedo encosta arriba, a «Liga» foi levando a cruz ao Calvário. Primeiro o governador civil do Porto, depois o de Lisboa, a seguir o de Coimbra, proibiram, sob pena de multa e cadeia, o pé descalço na rua. Os tribunais começaram a ficar entupidos com tanta gente levada a juízo. E o mais estranho é que, pelos relatos desses julgamentos, ficamos a saber que nas grandes cidades se andava descalço durante todo o ano.
Eu, por acaso, só andava descalço no Verão. Para o Inverno sempre havia uns tamancos amanhados pelo meu pai, a quem a necessidade obrigava às mais variadas artes, entre elas a de soqueiro. E francamente lhes digo que até gostava de andar descalço. Ao arrepio da sensação de grilheta causada pelo tamanco, a pata ao léu transmitia-me na rua, nos caminhos e nos montes, a sensação de leveza e graciosidade dum bailarino no palco. Só não gostava de duas coisas. Esborrachar o dedo grande de encontro às pedras e abrir gretas nas pregas interdigitais. Já viram o que era andar sobre lameiros de feno cortados de fresco? Os caules, rijos e feros como as cerdas da escova de ferro com que o Tomé da Volta, picador de burros afamado, almofaçava o fouveiro, enfiavam-se-me pelas gretas e punham-me a dançar o saricoté num pé. Valia-me então uma vizinha de porta a quem eu suplicava que me fizesse chichi nos pés. Ardia mas aliviava.
Chamava-se ela Marcelina e era dada na cédula de nascimento como nascida no mesmo ano que eu, e filha de pai incógnito e da cabaneira Ana Garcia, mais conhecida por Descalça.
Esta Descalça tinha apenas a casita, um hortejo, meia dúzia de galinhas e uma burra parideira.
As galinhas andavam por aí à vontade. A burra apascentava-a a filha pelos baldios da povoação. Eu, na altura pastor de vacas, repartia com ela a merenda e os brinquedos. Corríamos por aqueles campos, rebolávamo-nos na relva, riamo-nos muito. Não sei como é que os pardais escolhem companheira. Mas deve ser por qualquer coisa muito parecida com aquilo que me atraía para a Lina, a Descalça, antonomásia herdada da mãe, mas que na filha assentava a primor, uma vez que, da minha lembrança, nunca lhe conheci qualquer espécie de calçado. E o que ainda hoje me causa espanto é nunca ter visto nos pés da minha companheira de infância qualquer dedo esborrachado ou greta interdigital. À força de andar sempre descalça, criara na planta dos pés uma verdadeira sola, que lhe permitia correr por cima das pedras, tojos, silvas, ou qualquer outro obstáculo, sem se magoar.
O livro citado afirma que o pé da mulher descalço se esparrama, alarga, masculiniza, se torna nodoso, feio. Não é verdade. Pelo menos a meus olhos, o pé da Lina continuava bonito, harmonioso, elegante, feminino a mais não poder ser.
Com ele a minha amiga se sentiu feliz até aos catorze anos. Por essa altura sobreveio-lhe uma doença muito comum nas mulheres: a inveja. Via as filhas dos lavradores de sapatos na missa e nas festas e meteu-se-lhe na cabeça que também tinha direito a uns. Pediu-os à mãe:
— Oh, filha! E dinheiro?
— Deixe-me ir às segadas.
— Vou falar com o Marcelino.
O Marcelino era tio materno da Lina e capataz de seitoiras. Comprometeu-se a levar a sobrinha à Terra Quente. Partiram em fins de Maio e regressaram em meados de Julho. Graças à protecção do tio, a jovem Descalça foi e veio sem ter perdido a inocência e a alegria.
Juntara à volta de 500$00 de jeiras. Comprou sapatos, meias de vidro, vestido, arrecadas e deu o resto à mãe. Entretanto chegou a Senhora da Livração e Lina resolveu ir à festa e estrear os sapatos. Fui com ela. À pata e descalços, ela com os sapatos numa saca, à cabeça, e eu com os meus enfiados num pau, ao ombro. Entre Peireses e as Boticas medeiam uns bons quinze quilómetros de caminhos poeirentos. Chegámos num estado lastimável.
— Calçamo-nos Lina? — perguntei eu à entrada da vila.
— Mas eu queria lavar os pés para não sujar os sapatos. Não sabes onde haja por aí um tanque ou um rego?
Levei-a lá para uma represa onde, durante a festa, costumam colocar um São Cristóvão gigante com uma tranca nas unhas e o Menino Jesus ao ombro.
Desencardimos os pés, enfiámos os sapatos, corremos para o arraial. De repente a Lina levou as mãos ao peito e disse:
— Ai Jesus!
— Que foi?
— Falta-me o ar...
— Não me digas que respiras pelos pés?!
— Ai Jesus! — voltou ela, sentando-se no passeio.
Estava coberta de suores frios, lívida, mesmo aflita. Afligi-me também:
— Queres que te vá buscar um copo de água?
— Liberta-me dos sapatos se não abafo.
Retirei-lhe rapidamente os sapatos e as meias. Ela respirou fundo:
— Ai que alívio! Deus te pague.
Ficou um momento a olhar para mim com aqueles seus olhinhos garços, tão luminosos, expressivos e promissores como as mais belas manhãs de Abril. Depois começou a chorar.
— De que choras?
— Lá se foi a festa...
— Porquê?
— Já viste a figura? Tu de sapatos e eu descalça?
— Isso tem bom remédio.
Descalcei-me também e estendi-lhe a mão:
— Anda.
E começámos de novo a correr de mãos dadas, alegres, felizes e inocentes como dois pardais acabados de sair do ninho.

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas de Barroso (p. 118 e ss.)

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Coimbra, 16 de Abril de 1979.


ROGO

Não, não rezes por mim.
Nenhum deus me perdoa a humanidade.
Vim sem vontade
E vou desesperado.
Mas assinei a vida que vivi.
Doeu-me o que sofri.
Fui sempre o senhorio do meu fado.

Por isso, quero a morte que mereço.
A morte natural,
Solitária e maldita
De quem não acredita
Em nenhuma oração
De salvação.
De quem sabe que nunca ressuscita.

MIGUEL TORGADIÁRIO XIII 

segunda-feira, 14 de abril de 2014

O XAQUIM E A LIBRA

Antigamente, cá pelas nossas aldeias, tal dia como hoje, 11 de Novembro, aceivavam-se os castanheiros. Quer isto dizer que, a partir do S. Martinho, as cabaneiras podiam rebuscar à vontade nos soutos dos lavradores.
Os dicionários de português de que disponho, não registam o termo aceivar. Mas admitem ceive, no sentido de livre, sem vedações.
Já os Galegos, a ajuizar pelo nome de numerosas associações cívicas, tais como: «Fala Ceive», «Asociación Cultural de Fala Ceive», «Exército Guerrillero do Povo Galego Ceive», «Galiza Ceive», «Aparcamento Ceive»: o utilizam muito. E eu sou levado a crer, embora me recuse a pôr as mãos no lume pelo meu juízo, que em Barroso se dizia aceivar por influência galega.
E digo dizia, porque hoje já ninguém diz. A castanha perdeu o peso que outrora tinha nos hábitos alimentares dos barrosões. Tal era ele, que eles, não contentes com os castanheiros de Barroso, adquiriam soutos na Ribeira. Passavam o ano a rilhar castanhas. Cruas, cozidas, assadas, secas, no caldo, com o presigo, ao postre. No fundo, a castanha era o substituto do pão. Em vês de saírem para a rua, para o monte ou para a feira com os bolsos cheios de broa, saíam com eles cheios de bilhós.
Hoje, com a abundância, para não dizer desperdício, de pão que por aí vai, ninguém se preocupa com as castanhas. Apodrecem por aí ao Deus dará debaixo dos castanheiros.
Outrora dizia-se: “A castanha tem manha; quem a vê apanha-a». Hoje podíamos dizer: “Para a castanha, todos se queixam das costas, ninguém a apanha.» O mais absurdo de tudo isto, é que ela se vende no Porto a 4 e 5 euros o quilo e em Peireses ninguém dá um cêntimo por ela. Venha o Diabo e explique o que se passa, que eu não sei.
Mas vinha eu dizendo, e, decerto, asneando, que os barrosões empregavam o verbo aceivar e o adjectivo aceivado, influenciados pelos galegos, com quem diariamente conviviam nos campos, nas feiras, nas romarias e, acima de tudo, no contrabando. Desta convivência diária se engendravam, com relativa frequência, casamentos transfronteiriços.
Dos galegos casados na minha aldeia, não digo o mais famoso, mas pelo menos o mais falado, foi o Xaquim, do qual ainda hoje se contam histórias de ouvir e pasmar. Estou a lembrar-me de uma.
O Xaquim era natural de Rubiás dos Mixtos e filho único dum casal cuja fazenda se resumia a um macho.
Pela ordem natural das coisas, o pai foi o primeiro a morrer, pela simples razão de que também era o mais velho. Então a nai mandou dizer ao filho que, se queria o macho, o fosse buscar.
O Xaquim não se fez rogado. Correu ao posto da guarda-fiscal de Padroso e obteve licença para ir buscar a herança.
Era realmente uma estampa, o raio do macho. Apareceram logo meia dúzia de ciganos e alguns lavradores a quererem comprá-lo. O Xaquim, porém, não cedia. Nem que lho pesassem a oiro, jurava.
Mas quando o padre João, o tal que, na voz do povo, que nem sempre é a voz de Deus, media as libras a rasas, lhe alumiou com uma de cavalinho, o Xaquim não resistiu. Entrou em casa aos pulos, olhinhos de riso, moeda ao alto, entre o polegar e o indicador da mão direita:
— Ó Ana? Ó Ana? Mira o que eu aqui che trago!
E a cara-metade, que também era da borga e nunca havia tido uma libra na mão, correu a ele para lha tirar:
— Dá cá.
— Não dou.
— Eu tiro-ta.
— Tiras nada.
E o Xaquim, perdido de riso, passava a libra de mão em mão, de bolso em bolso, até que se lembrou de a meter na boca. No melhor da gargalhada, descuidou-se, engoliu-a. Quedaram ambos aterrados.
— Vês o que tu fizeste? — disse ele.
— Eu?
— Se não fossem as tuas brincadeiras...
— Oh, homem! Não te aflijas. Que eu saiba, uma libra de oiro não é absorvida pelos intestinos. Entrou por um lado, sai pelo outro. Quando é que foste a campo?
— Hoje de manhã.
O Xaquim armava às raposas de três em três dias. Faltavam portanto dois.
Ao terceiro, acordaram ambos expectantes como em casa onde se aguarda o nascimento dum filho. E quando as dores chegaram, o Xaquim correu para a horta e a Ana para o adro da capela que lhe ficava contígua. Ia ela na terceira volta da novena a Santantoninho de Lisboa, grita-lhe o Xaquim do meio das couves:
— Ó Ana? Ó Ana? Xá cá 'stá!
E ainda com uma das mãos a segurar as calças, exibia a libra na outra, feliz da vida. E não obstante a moeda estar a pedir o banho ritual dos recém-nascidos, o Xaquim recomeçava a brincadeira de a meter à boca. Grita-lhe a mulher:
— Está quieto, pantomineiro... «Com coisas sérias não se brinca...»

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas de Barroso (p. 115 e ss.)

sábado, 12 de abril de 2014

Coimbra, 12 de Abril de 1978.

AGENDA

Sonhar que sonho, agora?
Tempo já sem amor,
Ou dele envergonhado,
Tudo é pecado,
Mesmo imaginar.
A vida insiste
Mas a hora é triste.
Crepuscular,
Cansada,
A durar por durar,
Apenas mede
Esta desgraça
Humana,
Baça,
Quotidiana,
De quem da própria sombra se despede.

Miguel Torga, DIÁRIO XIII