9 – Abril (domingo). Ontem o Expresso, no seu suplemento «Revista», trazia um artigo de João Carreira Bom sobre o meu texto que foi utilizado para o exame de admissão à Universidade. E nesse texto aparecia a frase «Ora a morte, como todas as leis da vida, são para se cumprir». E o comentador dizia que tinha um erro de concordância. Várias pessoas, aliás, me tinham já anotado. Verifiquei no meu exemplar que nas releituras casuais aqui e além, dei com a frase e emendei-a para «é para se cumprir». Mas posteriormente voltei a manter como estava. Mandei uma breve nota a dizer que estava bem, que se tratava de um «sujeito composto», que o Epifânio mandava pôr no plural e propunha um pequeno acrescento para se ver que era assim. E a proposta era «Ora tanto (não só) a morte como todas as leis da vida, são para se cumprir». O problema vem talvez também de a frase ser longa. Por exemplo «a morte como os sonhos são para se cumprirem». Já é menos convidativo o singular, já se não espera «a morte como os sonhos é para se cumprir». Mas ocorre-me agora que o segundo elemento da minha frase em causa («como todas as leis da vida») inclui já o primeiro («a morte») e que portanto não é realmente o segundo elemento de um sujeito composto, que nada deve ter a ver com o primeiro. Mas «todas as leis da vida» são «todas as outras» ou, envolvendo a «morte», também envolve as «outras» leis e portanto é de facto um elemento diferente como competiria ao sujeito composto. Exemplos como «o amor, como todos os sentimentos, são igualmente humanos» não se vê que exija o singular. No caso da minha frase influiu também o facto de o segundo elemento ser muito extenso, deixando mais desapoiado ou desértico ou visível o primeiro. Assim numa frase (pessimista) como «a morte como todas as desgraças, são o que temos mais certo na vida» e não «é o que temos…» Mas agora, de vez em quando, a frase volta-me como obsessão. Será assim que «a morte» não está já contida em «todas as leis da vida»? Será realmente um «sujeito composto»? Em todo o caso uma frase como «Um filho como os seus pais são pessoas humanas». Ora o «filho» não estará implicado nos pais? E será possível então dizer-se «um filho como os seus pais, é uma pessoa humana?» Então acontece-me (como na frase acima me aconteceu) qualquer coisa parecida com certos mosaicos que representam cubos ou paralelipípedos dos quais parecem certas faces ora salientes ora reentrantes conforme a intenção com que os olhamos. Na frase em causa, se eu penso ou intenciono a «morte», parece-me lógico o singular; se viso o «todas as leis da vida», é o plural que se me impõe. E aqui está como a língua e a lógica dela está às vezes menos nela do que em nós. E aqui está como o enigma me massacrou a tarde e a noite. Para no fim, e ainda agora, eu não saber qual a face do cubo a fixar.
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A cabeça, a cabeça. O copo de vinho ao almoço e o toque imediato na minha estabilidade cerebral. O António Magalhães, que hoje foi à Holanda, deixou-me um rol de mezinhas para me tratar. Mas foi-me dizendo que tabaco e vinho – enfim. Como vou ser intelectual só com o que Deus me pôs de miolos? Que tramação, hein?
conta-corrente - nova série I (1989), p. 62 e ss.
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