segunda-feira, 11 de abril de 2011

Vergílio Ferreira (11 de Abril de 1989)

11 – Abril (terça). A primeira vez que fiz teatro tinha seis anos. Era no salão da Misericórdia, em Melo, mas não havia palco nem sequer estrado, suponho. E o que eu teatrei foi um monólogo. E lembra-me ainda a primeira frase – a única: «Eu sou o doutor Panfúcio da Cana Verde». Que coisa miraculosa. Uma frase assim isolada e absurda, erguida do fundo da memória. Quase um símbolo do irrisório, incompreensível, mas por isso mesmo também quase fascinante. Não quer dizer nada, mas é uma frase inteira que deve levar a qualquer lado. É um fragmento do que se não pode reconstituir. É belo na sua estupidez como aquela letra sem sentido de certas músicas. E é ainda intrigante por ter ficado só ela presa à recordação. Depois fui para o seminário e não sei porquê imediatamente me empolgaram para os espectáculos que se realizavam pelo Carnaval. Desempenhei o papel de Tarcísio, menino mártir m perseguição dos romanos aos cristãos. Mas não me lembro de outros papéis que terei desempenhado. Lembro-me é dos rebuçados que da plateia nos atiravam no fim da representação. Depois entrei no liceu. E no espectáculo do 1.º de Dezembro, estava eu no 6.º ano que era aí o meu primeiro, o actor de um papel cómico foi-se abaixo não sei porquê. Era um papel cómico e na ameaça do desastre da falha do actor em vésperas do espectáculo ofereci-me eu para o substituir. Gargalhada geral. Como é que um tipo macambúzio e enegrecido ainda da compostura eclesiástica podia fazer rir? Deixem-me experimentar, disse eu. Deixaram. E no ensaio toda a gente riu em enorme gáudio mas não de mim e sim da personagem que eu incarnava. Veio o espectáculo e foi um sucesso. Repetimo-lo na Covilhã e foi um sucesso. Lembro-me do meu professor de Filosofia – o Duque de Vieira que era bom mestre e estava na primeira fila – e vi eu muito bem que se ria exuberantemente. A personagem chamava-se Abreu e eu fiquei Abreu para muitos colegas, mas já não lembro porque é que ele era de fazer rir. Depois fui para a Faculdade e a minha carreira acabou. Havia lá o TEUC (Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra), mas aquilo era uma sociedade quase fechada de um certo elitismo político e que me fazia grandes gastos de tempo e saúde. De modo que nem tentei. Agora o que é curioso é que escrever teatro foi uma sedução juvenil. Quase tanto como a lira. Escrevi, perdeu-se tudo, quero dizer desapareceu, porque na realidade não se perdeu nada. Voltar ao teatro, ou seja à sua escrita, acenava-me às vezes, a ver se ia no aceno. Não fui. Houve apenas um «breve ensaio dramático» publicado na Vértice e por fim incluído nos Contos para ter poiso certo. E foi tudo. Definitivamente o teatro privava-me da «palavra», obrigava-me a estar em público, onde nunca soube estar, e é de todas as formas de arte a que me parece mais artificiosa. Se calhar é também por isso que sofre de doença grave. Ou se calhar já morreu e falta só a certidão de óbito.
*
Há dias realizou-se aí o congresso dos escritores de língua portuguesa. Não fui. Porquê? Não interessa, não fui. Mas as brasileiras Lygia Fagundes Telles e a Nélida Piñon mostraram um interesse simpático de me verem. Fui ao hotel delas, perto da Gulbenkian, e palrámos. E falando-se de Clarice Lispector, aludi a uma certa identidade de temática de certos livros dela com a de Aparição. Eu enviara-lhe o livro aí por ‘60/’61, mas ela não me deu troco. Nélida replicou-me vivamente que Clarice não lia nada de ninguém. Trepliquei que não aludia a «influências», mas a um «encontro». Aí Nélida foi mais complacente. Um destes dias recebo da minha amiga brasileira Maria Spassal (que fez um estudo sobre mim) mais um livro de Clarice Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Belo no seu senso de mistério com que sobretudo a personagem feminina olha o Mundo e se interroga a si. Todo o livro é a experiência de uma ascese; para a absorção em (de) Deus. E o grande passo para isso é a descoberta do «eu» e a angústia disso. O livro é de ’69. Como Água Viva, está também muito próximo de Aparição. Marquei as páginas 12-18-19-75-77-143-169-172/3. Não sei se Clarice leu Aparição. Mas sei de certeza certa que se teria encontrado com ele, se o lesse. Para lá do problema mísero das «influências», que é mísero em afirmá-las ou negá-las, há o facto maravilhoso de uma afinidade entre mim e uma escritora que me é admirável – a mais admirável de toda a literatura brasileira modema, até onde a conheço.

conta-corrente - nova série I (1989), p. 64 e ss.

Sem comentários:

Enviar um comentário