terça-feira, 19 de novembro de 2013

Honoré Daumier: LES GENS DE JUSTICE.

- Vous avez perdu votre procès c'est vrai... mais vous avez du [sic] éprouver bien du plaisir à m'entendre plaider

domingo, 17 de novembro de 2013

António Gedeão : Pedra filosofal

António GedeãoEles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

A TIA CHAMORRA E O LAMPIÃO

Tenho as recordações da minha infância catalogadas por meses. Agosto é o das malhadas.
Não cheguei a tomar o gosto ao malho. Quando principiava a endireitar-me com ele, tentou-me o diabo para deixar a aldeia. Fiz bem? Fiz mal? O diabo que responda, que eu não sei. Enquanto aguardo resposta, vou vivendo de recordações, de preferência alegres. Hoje tenho uma relacionada com as malhadas.
As malhadas eram trabalhos de entreajuda. Hoje malhas para mim, amanmalho para ti.
Aí com dois dedos de sol-nado acima da linha do horizonte, o dono da messe subia à meda e gritava, a plenos pulmões: «À ei... ei... ei... ei... ra, a, al!» Aqui tomava fôlego à laia de tenor de ópera e concluía: «Que já está o vinho no pipo e a cabra na caldeira!»
Esta da «cabra na caldeira» não era flor de retórica nem exigência de rima. Fraca a malhada que não metesse um ou dois richelos cozidos. «Carne esfoladia», como lhe chamavam.
Quanto a vinho, nem é bom falar. Bebiam como vacas no carrejo. Que isto de lidar com as palhas, faz uma sede danada.
Durante o dia não, por causa dos desastres. Mas à noite, vizinhos havia que gostavam de ver tudo bêbado. Dava nome à casa. «Em casa de fulano é que foi beber! Vinho com açúcar, cerveja, laranjada, café, bagaço, rebuçados para as mulheres, cigarros para os homens. Não faltou ali nada.»
No último eirado, «prendia-se»[1] o patrão e disputava-se a «anha»[2]. Noite dentro, namorava-se a coberto das medas de palha e das rimas de colmos.
Nós, os pastores, gostávamos daquilo. Metíamos o gado às cortes e, em vez de irmos para a rua correr o rou-rou, íamos para as eiras fazer que ajudávamos. Mas o que nós queríamos era brincadeira.
Um dia fomos para o ti Chamorro.
O ti Chamorro tinha mulher e três filhas. A mais nova estava connosco na eira. As duas mais velhas e a mãe, na cozinha a tratarem dos potes.
Quando lhe pareceram horas, o ti Chamorro ordenou à mais nova:
Vai dizer à tua mãe e irmãs que me tragam um lampião e apertem com a ceia.
A cachopa foi e voltou a correr, muito aflita:
Ó pai? Ó pai?
Ele que foi, rapariga?
Elas...
Tinham-se embebedado e estavam a dormir cada qual para seu canto...
O ti Chamorro correu em direcção à cozinha, decerto no bom intento de acordar mulher e filhas a pontapé. Nisto, surde a tia Chamorra ao cimo das escadas de lampião aceso em punho. Tropeça numa palha e vem por ali abaixo aos trambolhões ao longo de vinte e tal degraus de pedra. Acode o ti Chamorro de braços estendidos:
– Ou nabo! Ou nabo, que lá me partes o lampião...
Naquela noite e dias seguintes, muito nos rimos: «Ou nabo! Ou nabo que lá me partes o lampião...»
Quem não achou graça nenhuma foi a tia Chamorra a qual além do lampião, partiu um braço e não sei quantas costelas...
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 104 e ss.)



[1] Segundo a praxe, ao findar o último eirado, o patrão tinha de ter vinho pronto na eira. Se o não tivesse (por vezes escondiam-lho) «prendia-se». Consistia a pantomina em deitá-lo no panal (um lençol encabado num pau com que se evitava que o grão, ao saltar dos malhos, fosse para longe) e dar com ele uma volta à eira, em grande algazarra, uns a acusar, outros a defender. Coisas de gente bem disposta.
[2] Como toda a gente sabe, os malhadores malhavam em duas alas, frente a frente. No fim do dia desafiavam-se a ver qual delas arrancava maior estrondo na eira. Os vencidos «ficavam com a anha». É provável que, noutros tempos, houvesse mesmo uma anha, ou ovelha, em disputa. No meu tempo havia apenas um manipanso de palha a simbolizar a derrota.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Pulo do Lobo, Serpa, 1 de Novembro de 1975.

ALEGORIA

Aqui, um rio manso enlouqueceu.
Torrencial, desceu
Aos infernos mortais da inquietação
E, lá do fundo, ergueu,
Crucificado,
Um demorado
E trágico lamento,
Que é o tempo acordado
Na carne do Alentejo sonolento.

Miguel Torga: DIÁRIO (XII)