terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

DIÁRIO (XIII)

Coimbra, 28 de Fevereiro de 1980 – Atravesso a vida sem lhe dar tréguas, implacável nas palavras e nos sentimentos.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

D. Manuel Clemente, bispo do Porto

Póvoa de Varzim, CORRENTES D’ESCRITAS, 23 de Fevereiro de 2012
A corrente descrita
(ou Portugal e os portugueses, em 2008 e depois)

“Onde estamos, afinal? Simbolicamente, não num sítio muito diverso do que era o nosso há vinte anos, mas desta vez e para sempre não sós” (Eduardo Lourenço, Vence, 23 de Outubro de 2 000)

Agradeço o convite para estar aqui convosco, na 13ª edição do CORRENTES D’ESCRITAS, embora sinceramente algo me custe, sobretudo por mim. Com o vosso convite, só posso ganhar e ganhar muito. Significa-me um misto de oportunidade e deslocação, não geográfica, que é curta, mas pessoal, por não ser propriamente um escritor. Escritor, que para o Dicionário da Academia é a “pessoa que escreve obras literárias ou científicas”. Isto não sou nem nunca fui bastantemente, ainda que tenha escrevinhado e poetado alguma vez, ou seguido um percurso académico discente e docente, com os respetivos encargos de investigação e redação. Nada que justifique o título.

Mas tinha de aceitar, dada a simpatia e a insistência do convite, bem como a ocasião de homenagear a iniciativa. Era irrecusável e aqui estou, pedindo-vos desculpa pela breve ocupação do tempo. E o que aqui apresento, com adiantada escusa, não é alguma visão geral do momento português no que à vida literária diz respeito - coisa que não saberia fazer -, mas a rápida descrição de algo que tenho mais à mão e ao pé, ou seja da minha própria vida como “corrente”, palavra esta que, no mesmo Dicionário, significa “água que flui, que não está estagnada”.
Pode ter algum interesse, pelo jogo de circunstâncias internas e externas que me canalizaram sessenta e tal anos de vida – o Dicionário junta esse significado de “água canalizada” –, por entre grandes mudanças de civilização e cultura, da minha terra a Lisboa e de Lisboa ao Porto, da Universidade dos anos sessenta – setenta ao que ela é hoje; como ação e interrogação, e, muito especialmente dentro e bem dentro da mais antiga instituição do nosso território, talvez a mais marcante do seu devir, por adesão ou contraste – o catolicismo português.
Uma “corrente”, de facto, e como era o Douro antes das barragens, entre larguezas e estreitezas, entre calmas e rápidos, entre vidas e mortes, músicas e choros, riquezas e misérias, mas correndo sempre para um mar ao fundo. Pelo conjunto das circunstâncias, a corrente da minha vida foi ganhando o meio do rio e do seu fluxo, encontrando-me com outras mais certas e profundas, que verdadeiramente lhe definem o caudal. Um caudal que vem de muito longe, correndo para Ocidente como a nossa história portuguesa, enquanto havia terra a sulcar, treinando-se para lavrar o mar. Uma corrente que nos transporta a todos e, só por isso, também a mim. Esta posso descrever-vos brevemente: será “uma corrente descrita”.
Começou onde geralmente se começa, na família e em duas mulheres viageiras. Uma viajava por dentro e quase só por dentro; outra também por fora, sempre que podia ser, sendo muito menos do que quereria. A minha avó materna viajou neste mundo mais de cem anos e chamava-se “Aurora”; de Lisboa para o Porto e depois novamente, longamente, no sul. A minha mãe nasceu no Porto e foi cedo para o sul onde eu nasceria, ia ela pelos trintas. Chegou aos noventa e cinco e chamava-se “Sofia”.
A minha avó não gostava de viajar por fora. Enviuvou cedo e demorou depois numa quinta pacata, ao ritmo da noite e do dia, do dia e da noite, das estações do ano e dos ciclos agrícolas. Viajava sim por dentro, por dentro da sua grande casa e das constantes reparações que gostava de fazer, reduzindo os países e continentes aos espaços domésticos que remodelava à vez, assim pudesse. Morando numa casa cheia de recordações geracionais, não gostava de velharias, nem se entretinha com elas, aderindo de bom grado às novidades do tempo, viajando com o século - ou entre séculos, pois nascera em 1890 e falava de D. Carlos e D. Manuel II, Afonso Costa ou Sidónio Pais, como nós falamos de personagens de agora. Mas sem saudades pesadas, porque a viajem continuava.
A minha mãe cultivava mais a memória e lembrava espontaneamente episódios históricos. Sobretudo nossos, pois era medularmente patriota, sem ser minimamente chauvinista, bem pelo contrário. E tinha o maior gosto em viajar para fora, assim também pudesse. E pôde pouco, porque se espraiava em atividades domésticas, religiosas, cívicas e culturais; e porque acompanhou dedicadamente os últimos anos do seu marido e da sua longeva mãe. Mas com que alegria – dela e minha – percorremos o país em curtas viagens de Verão, ficando eu ainda mais intimamente conjugado entre mátria e pátria. E já nos seus oitenta, aí foi ela contente, como a revejo em fotografias que vão da Noruega à Índia… E ai dos mais novos, bem mais novos até, que não lhe acompanhassem a passada.
Esta a minha “corrente” mais próxima, entre chegadas e partidas, princípios concretos e fins almejados. Uma alusão ainda, do que dizia a minha avó à minha mãe: “ – O que queres tu ver, que não tenhas já aqui: casas, estradas, rios e pontes?”. E também: “Viajar, tendo mesmo de ser, só pela alegria que terei ao voltar para casa”. A minha mãe sorria e largava. Por isso uma se chamava Aurora e a outra Sofia.
Posso entrever nisto mesmo a corrente mais larga do nosso Portugal comum. Digamos que as identificações acontecem geralmente assim, pois ganhamos em casa o que seremos depois, caseiramente aliás. De pequena para grande, assim cantava Camões a “casa lusitana”, não podendo ser doutra maneira. Entre ficar e partir, entre partir e regressar, estamos sempre nós, particularmente nós, os portugueses.
Talvez não tenha sido só por moda “renascente” que se ligou Lisboa a Ulisses, quando a Grécia e as coisas gregas ainda gozavam de “boa imprensa”, muito justificadamente gozavam. Pode ter sido por vislumbrar no lendário viajante antigo o bom emblema dum Portugal que entretanto se fizera assim, partindo, aventurando e regressando…
Há muito que me fizeram pensar deste modo. Apontei-o também, ocasionalmente, como em Portugal e os portugueses (Assírio & Alvim, 2008), ou em Isto realmente somos, os portugueses (In Porquê para quê? Pensar com esperança o Portugal de hoje, Assírio & Alvim, 2010). Tudo por insistência externa ou surpresa minha, mas com alguma aceitação dos outros, que só pode significar coincidência de espíritos e análises. E, isto sim, é culturalmente relevante.
No primeiro dos textos, lembrava a nossa matriz judaica, como “povo da promessa”, que assim mesmo se sentiu messiânico para o mundo. Não é algo exclusivamente nosso, mas foi-o muito especialmente, pela realização geográfica que lhe demos e pela desproporção do feito, de tão poucos para tanto: “Digo, por isso, que a relação que mantemos com Portugal é, fundamentalmente, bíblica. Olhamos Portugal como uma personalidade coletiva portadora de uma alma, no sentido romântico do termo, ainda que referido a algo muito anterior ao Romantismo. E a relação que mantemos com esse gostoso e custoso coletivo vem na esteira de um outro povo, que se descobriu eleito e portador de uma missão universal” (Portugal e os portugueses, p. 10).
No segundo texto, lembrei como António Vieira assinalou o destino prévio de Santo António, muito propositadamente para indicar o nosso. António de Lisboa, entre Portugal, Marrocos e a Itália; António Vieira do Tejo ao Amazonas e do Amazonas ao Tibre, nos seus sermões de Roma; os portugueses sempre, querendo ou não querendo, mas obrigatoriamente assim.
A 22 de Maio de 1670, Vieira ainda dizia o seguinte, de Santo António, dele mesmo e de nós todos: “Bem pudera Santo António ser luz do mundo, sendo de outra nação; mas uma vez que nasceu português, não fora verdadeiro português se não fora luz do mundo, porque o ser luz do mundo nos outros homens é só privilégio da Graça; nos Portugueses é também obrigação da natureza” (cit. in Porquê e para quê?, p. 15).
Era preciso algum arrojo para dizer tal coisa num sermão pregado tão fora. Mas isso nunca faltou a Vieira, mesmo para insinuar que os portugueses, para brilharem em todo o lado, nem esperariam pela graça… E hiperboliza, em Santo António e por nós todos: “Saiu como luz do mundo e saiu como português. Sem sair ninguém pode ser grande […]. Assim o fez o grande espírito de António, e assim era obrigado a o fazer, porque nasceu português” (ibidem, p. 16). Ou ainda: “Por isso nos deu Deus tão pouca terra para o nascimento, e tantas para a sepultura. Para nascer, pouca terra; para morrer, toda a terra; para nascer, Portugal; para morrer, o mundo” (ibidem).
Nisto era expansão natural; mas com o grave revês de não suportarem tanta luz, uns dos outros e ao perto. Mais: natureza tão luminosa em si mesma, além de irresistivelmente expansiva, seria inevitavelmente exilada, para se re-encontrar à larga. Daí que escrevesse no ano seguinte, sempre em Roma: “… assim como Santo António foi obrigado a deixar Portugal, para ser Português, assim foi necessário que se tirasse dentre os Portugueses, para ser tão grande homem, e tão grande santo como foi” (ibidem, p. 17). Até aqui o tom parece heroico; mais abaixo, o remate nem tanto: “… luzir português entre portugueses, e muito menos luzir com a sua luz, é cousa muito dificultosa na nossa terra. Com a luz alheia vi eu lá luzir alguns; mas com a própria, […] nem santo António, quanto mais os outros” (ibidem). E a aceitação geral deste juízo, que quase adivinho em todos, evidencia bem que ainda somos nós, agora aqui, os portugueses.
Ao que vai dito, acrescentarei algo, dantes ou depois de Vieira. Como é o caso do célebre poema em que D. Dinis ironiza com os provençais, que trovavam muito bem, mas só pela Primavera; sinal de que a “coita”, o cuidado amoroso, não era tão grande neles como no próprio. Vale a pena citá-lo: “Proençaes soen mui bem trobar / e dizem eles que é com amor; / mais os que trobam no tempo da frol / e nom em outro, sei eu bem que nom / am tam gram coita no seu coraçom / qual m’eu por mha senhor vejo levar”.
É um trecho muito coincidente com o que os portugueses pensam em geral de si mesmos. Recebem de fora as modas e os motivos – como era então o caso do canto provençal -, mas tudo se mergulha aqui noutra fundura, com os significados agridoces que sempre acrescentamos às saudades.
Recortado pela espada dum rei meio-borgonhês, expandido pela visão dum príncipe meio-inglês, regenerado de oitocentos para novecentos por vagas meio-francesas, quando não francesas de todo, das militares e políticas às literárias e ideológicas, Portugal foi e é ainda uma importação inculturada, nunca tendo terra nem recursos para ser doutro modo.
Isto mesmo poderíamos dizer também de outros e até generalizar. Mas a nossa geografia terminal ou o grande cais em que nos (re)tornámos, trouxeram-nos tanta terra e tanto mar que ganhámos esta atual condição de pátria de todos e ninguém – ou de ninguém para renascer de todos. Creio que Vieira e Pessoa aceitariam a caracterização. Sendo aqui profético o Romeiro de Garrett (Frei Luís de Sousa), como Portugal perdido e no entanto ali, quase pedindo um reconhecimento que o salvasse, passando do “ninguém” que se chamava ao merecido “alguém” que o despertasse, muito merecidamente despertasse. Estamos nisto tão perto dos últimos versos da Mensagem pessoana: “ … (que ânsia distante perto chora? / Tudo é incerto e derradeiro. / Tudo é disperso, nada é inteiro. / Ó Portugal, hoje és nevoeiro… / É a Hora!”.
Sim, saberiam trovar os poetas provençais, mas aqui trovava-se sempre; poderiam outros fazer algo em suas terras, mas daqui só se podia adivinhar tudo; poderiam outros manter grandes impérios, mas aqui só do nada se renasceria enfim.
Portugal culturalmente é uma teima, como geograficamente é uma praia, feita cais de partir e chegar, chegar e partir. Não é esta uma realidade unívoca, longe disso, e nem sempre foi positivamente considerada. Não foi só o século XIX que avaliou em baixa o desprezo da terra pelas miragens do mar. Do século XVI chegam-nos os lamentos bem reais de Sá de Miranda, por Lisboa nos despovoar os campos ao cheiro da canela das Índias. Ou as increpações poéticas do Velho do Restelo, contra as trocas do certo pelo incerto e do longe em vez do perto, por poder ou ganância, como não é de mais evocar em contraponto: “Ó glória de mandar! Ó vã cobiça / Desta vaidade a quem chamamos fama! / Ó fraudulento gosto que se atiça / C’uma aura popular que honra se chama! / Que castigo tamanho e que justiça / Fazes no peito vão que muito te ama! / Que mortes, que perigos, que tormentas, / Que crueldade nele experimentas!” (Os Lusíadas, IV, 95).
Todos com razão certa e sabida. Mas teríamos certamente desaparecido, se não tivéssemos partido.
As coisas são diferentes agora, até onde o podem ser no mesmo povo e língua. Diferentes demais para que uma “forma mentis” de há seis décadas – voltando à corrente pessoal – as possa facilmente perceber. Porque se trata de “cultura”, e não apenas de mais informação, embora marcada pelo acrescento desta. Cultura, como aquilo que sabemos antes de aprender tudo o mais e continuamos a saber depois de esquecermos tudo o resto. Isso mesmo que faz cada um do seu tempo, mesmo que o calendário nos faça conviver enquanto estamos, diversos por dentro mas sincrónicos por fora.
Refiro-me a uma experiência de há poucos dias, que me despertou tal sentimento. Assistia a uma conferência sobre impossibilidades e possibilidades de emprego jovem. Intervenientes vários, todos entre os vinte e os trinta anos, com licenciaturas e mestrados. Um gestor, entre o Porto e Londres, agora cá sem deixar de estar lá, casado com uma psiquiatra e entusiasmado com o que faz e sobretudo inova. Uma jovem bióloga, inteiramente votada à cura da doença de Alzheimer, e por isso passando de escolas portuguesas para inglesas, mas voltando à sua terra com a frequência que as viagens aéreas de baixo custo hoje permitem: tem de estar lá, mas não deixa de vir cá. Um jovem empresário que, por maior expansão, se mudou daqui para Curitiba, onde está com a esposa e já três filhos, deslocando-se no Brasil como nos desafiava a viver na Europa, isto é, continentalmente. Este e o seguinte – um jovem produtor cinematográfico, a trabalhar em Londres com sucesso – intervinham diretamente no debate através do Skype...
Quando me coube a mim concluir algo, foi para constatar que o ficar e o partir se equacionam agora de modo muitíssimo diferente do que ainda há poucos anos nos caracterizava em geral. Mentalmente, ficámos marcados com os êxitos (alguns) e os traumas (muitos) das emigrações forçosas para o Brasil de Oitocentos ou para a França e Alemanha de há meio século e depois. Atualmente, sem com isso descuidar a indispensável viabilidade interna para as novas gerações, somos realmente surpreendidos por novidades grandes que, em termos de comunicação e informação, alteram profundamente as vidas, os trabalhos e as mentes.
E é por tanto ineditismo que o nosso tradicional “a ver vamos” ganha hoje outro palco e outro sonho, atualizando os versos de Sophia: “Navegavam sem o mapa que faziam / […] No silêncio das zonas nebulosas / Trémula a bússola tateava espaços / Depois surgiram as costas luminosas / Silêncios e palmares frescor ardente / E o brilho do visível frente a frente” (Navegações, VI).
Aliás, um dos jovens intervenientes no debate dizia que o trabalho português era geralmente apreciado “lá fora”, em especial pela capacidade de improvisar e resolver problemas inesperados. Dizia até que a anglofonia não tinha tradução exata para o nosso plebeíssimo “desenrascanço”. Mais uma originalidade lexical, para juntarmos ao que se diz sobre a “saudade”. E é possível que entre estas duas originalidades, tão prática uma, tão poética a outra, vá singrando a barca portuguesa, nas partidas e regressos que hoje somos.
É esta a corrente que me leva e tão singelamente vos descrevo. Vou singrando, entre auroras e sofias. Vamos.
Manuel Clemente

Dia 26 [Fevereiro de 2009]

Cão-d’água
Quando Camões apareceu por aqui, vai fazer catorze anos, com a sua pelagem negra e a exclusiva gravata branca que o tem distinguido de qualquer outro exemplar da espécie canina, todos os humanos da casa se pronunciaram sobre a suposta raça do recém-chegado: um caniche. Fui o único a dizer que caniche não seria, mas cão-d’água português. Não sendo eu especialmente entendido em cães, não seria nada surpreendente que estivesse equivocado, mas enquanto os demais teimavam em declará-lo caniche, eu mantinha-me firme na minha convicção. Com a passagem do tempo, a questão perdeu interesse: caniche ou cão-d’água, o companheiro de Pepe e Greta (que já se foram ao paraíso dos cães) era simplesmente o Camões. Os cães vivem pouco para o amor que lhes ganhamos e Camões, final depositário do amor que dedicávamos aos três, já leva catorze anos vividos, como ficou dito acima, e os achaques próprios da idade começam a ameaçá-lo. Nada de grave por enquanto, mas ontem apanhámos um susto: Camões tinha febre, estava murcho, metia-se pelos cantos, de vez em quanto soltava um ganido agudo e, coisa estranha, ele, que tão falto de forças parecia, desceu ao jardim e pôs-se a escavar a terra, fazendo uma cova que a imaginação de Pilar logo percebeu como a mais funesta das previsões. Felizmente, o mau tempo passou, pelo menos por agora. A veterinária não lhe encontrou nada de sério, e Camões, como para nos tranquilizar, recuperou a agilidade, o apetite e a tranquilidade de humor que o caracteriza, e anda por aí feito uma flor com a sua amiga Boli, que passa uns tempos em casa.
Por coincidência, foi hoje notícia que o cão prometido por Obama às filhas será precisamente um cão-d’água português. Trata-se, sem dúvida, de um importante trunfo diplomático de que Portugal deverá tirar o máximo partido para bem das relações bilaterais com os Estados Unidos, subitamente facilitadas graças à presença de um nosso representante directo, diria mesmo um embaixador, na Casa Branca. Novos tempos se avizinham. Tenho a certeza de que se Pilar e eu formos aos Estados Unidos, a polícia das fronteiras já não sequestrará os nossos computadores para lhes copiar os discos duros.
José Saramago, O CADERNO

Dia-a-dia

Sabia que... Proxima Centauri, apesar de ser a estrela mais próxima da Terra depois do Sol, é invisível a olho nu?

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Dia 25 [Fevereiro de 2009]

Justiças
No dia de 22 de Julho de 2005, um cidadão brasileiro, Jean Charles de Menezes, de profissão electricista, foi assassinado em Londres, numa estação de metro, por agentes da polícia metropolitana que o confundiram, diz-se, com um terrorista. Entrou numa carruagem, sentou-se tranquilamente, parece que chegou mesmo a abrir o jornal gratuito que havia recolhido na estação, quando os polícias irromperam e o arrastaram para o cais. Não o detiveram, não o prenderam, derrubaram-no violentamente e dispararam-lhe dez balas, sete das quais na cabeça. Desde o primeiro dia, a Scotland Yard não fez outra coisa que criar obstáculos à investigação. Não houve julgamento. A procuradoria impediu que os polícias fossem incriminados e o juiz proibiu o jurado de pronunciar uma sentença condenatória. Já sabem, se algum dia lhes aparecer por aí uma peruca branca, dessas que aparecem nos filmes, digam ao portador o que as pessoas honestas pensam destas justiças.
José Saramago, O CADERNO

Girassóis

Coreopsis July 2011-2.jpg
Girassóis (da espécie Coreopsis grandiflora), no Jardim das Plantas de Paris, na França.

CORRENTES D’ESCRITOR – Póvoa de Varzim

dia 25 sábado
10h30 6ª MESA: Da crise da escrita não se pode fugir
Sandra William Junqueira
AUDITÓRIO MUNICIPAL

12h30 Lançamento de livros
Humilhação e Clória, Helena Vasconcelos, Quetzal
Rostos na Multidão, Valeria Luiselli, Bertrand
CASA DA JUVENTUDE

16h00 7ª MESA: "As ideias são fundos que nunca darão juros nas mãos do talento”
Maria Flor Pedroso – moderadora
AUDITÓRIO MUNICIPAL

18h00 Lançamento de livros
Nova Teoria do Mal, Miguel Real, D. Quixote
Um Piano para Cavalos Altos, Sandra William Junqueira, Caminho
CASA DA JUVENTUDE

18h30 Encerramento
Entrega dos Prémios Literários Casino da Póvoa; Correntes d'Escritas/Papelaria Locus; Conto Infantil Ilustrado Correntes d'Escritas/Porto Editora; Correntes d'Escritas/Fundação Dr. Luís Rainha
AUDITORIO MUNICIPAL
Anúncio dos vencedores dos Prémios de Edição Ler/Booktailors
AUDITÓRIO MUNICIPAL
Intervenção poética pelo Varazim Teatro
AUDITÓRIO MUNICIPAL

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Dia 24 [Fevereiro de 2009]

Esquerda
Temos razão, a razão que assiste a quem propõe que se construa um mundo melhor antes que seja demasiado tarde, porém, ou não sabemos transmitir às pessoas o que é substantivo nas nossas ideias, ou chocamos com um muro de desconfianças, de preconceitos ideológicos ou de classe que, se não conseguem paralisar-nos completamente, acabam, no pior dos casos, por suscitar em muitos de nós dúvidas, perplexidades, essas sim paralisadoras. Se o mundo alguma vez conseguir ser melhor, só o terá sido por nós e connosco. Sejamos mais conscientes e orgulhemo-nos do nosso papel na História. Há casos em que a humildade não é boa conselheira. Que se pronuncie bem alto a palavra Esquerda. Para que se ouça e para que conste.
Escrevi estas reflexões para um folheto eleitoral de Esquerda Unida de Euzkadi, mas escrevi-as pensando também na esquerda do meu país, na esquerda em geral. Que, apesar do que está passando no mundo, continua sem levantar a cabeça. Como se não tivesse razão.
José Saramago, O CADERNO

Dia-a-dia

CORRENTES D’ESCRITOR – Póvoa de Varzim
dia 24 sexta-feira
10h30 2ª MESA: "O fim da arte superior é libertar"
João Gobern – moderador
AUDITÓRIO MUNICIPAL
12h30 Lançamento de livros
A Cor da Memória, Care Santos, Planeta
O Murmúrio do Mundo, Almeida Faria com ilustrações de Bárbara Assis Pacheco, Tinta da China
CASA DA JUVENTUDE
15h00 3ª MESA: A Poesia é o resultado de uma perfeita economia das palavras
Ivo Machado – moderador
AUDITÓRIO MUNICIPAL
17h00 Lançamento de livros
Últimas Notícias do Sul, Luis Sepúlveda e Daniel Mordzinski, Porto Editora
CASA DA JUVENTUDE
17h30 4ª MESA: Toda a literatura é pura especulação
Bia Corrêa do Lago – moderadora
AUDITÓRIO MUNICIPAL
AUDITÓRIO MUNICIPAL
22h00 5ª MESA: A escrita é um investimento inesgotável no prazer
Henrique Cayatte – moderador
AUDITÓRIO MUNICIPAL

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Dia-a-dia

Fui ontem, à noite, às “correntes d’escritas” da Póvoa de Varzim, assistir ao:
22H00 Lançamento de livros
Balada dos Homens que sonham – breve antologia do conto angolano, VVAA, Clube do Autor – presença de vários autores, com as Batucadas da Rogue a marcarem o ritmo Palavra, versos, textos e contextos: Elos de uma corrente que nos une, VVAA, Literate
Secção de Leituras
HOTEL AXIS VERMAR
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Hoje, 11h00 
Sessão Oficial de Abertura do Encontro Correntes d’Escritas, com a presença do Exmo. Sr. Secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas
Anúncio dos vencedores dos Prémios Literários 2012: Casino da Póvoa, Correntes d’Escritas/ Papelaria Locus, Canto Infantil Ilustrado Correntes d’Escritas/ Porto Editora e Correntes d’Escritas/ Fundação Dr. Luís Rainha
CASINO DA PÓVOA
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15H00
Conferência de Abertura
D. Manuel Clemente, Bispo do Porto
AUDITÓRIA MUNICIPAL  
*
17h00
1ª. MESA: "A Escrita é um risco total"
AUDITÓRIO MUNICIPAL
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19h30
Inauguração da Exposição Aproximações, Fotografias de Jorge Barros
Lançamento do Álbum As Ilhas Desconhecidas – notas e paisagens, textos de Raul Brandão e fotografias de Jorge Barros
Participação do grupo A Capella
BIBLIOTECA MUNICIPAL ROCHA PEIXOTO
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21h45
Alex Drástico, performance teatral com Walter Lemos – Varazim Teatro
HOTEL AXIS VERMAR
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22h00
Lançamento de livros
Às Vezes o Mar não Chega, Sofia Marrecas Ferreira, Porto Editora
Cinzas de Abril, Manuel Moya, Sextante
Lágrimas na Chuva, Rosa Montero, Porto Ed.
Travessa d'Abençoada, João Bouza da Costa, Sextante
Uma Fazenda em África, João Pedro Marques, Porto Editora
HOTEL AXIS VERMAR
*
23h30
Sessão de Poesia – com poetas convidados
HOTEL AXIS VERMAR

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Dia 22 [Fevereiro de 2009]

Carta a António Machado
António Machado morreu hoje há setenta anos. No cemitério de Collioure, onde os seus restos repousam, um marco de correio recebe todos os dias cartas que lhe são escritas por pessoas dotadas de um infatigável amor que se negam a aceitar que o poeta de «Campos de Castilla» esteja morto. Têm razão, poucos estão tão vivos. Com o texto que se segue, escrito por ocasião do 50.º aniversário da morte de Machado, e para o Congresso Internacional que teve lugar em Turim, organizado por Pablo Luis Ávila e Giancalo Depretis, tomo o meu modesto lugar na fila. Uma carta mais para Antonio Machado.
Lembro-me, tão nitidamente como se fosse hoje, de um homem que se chamou António Machado. Nesse tempo eu tinha catorze anos e ia à escola para aprender um ofício que de pouco me viria a servir. Havia guerra em Espanha. Aos combatentes de um lado deram-lhes o nome de vermelhos, ao passo que os do outro lado, pelas bondades que deles ouvia contar, deviam ter uma cor assim como do céu quando faz bom tempo. O ditador do meu país gostava tanto desse exército azul que deu ordem aos jornais para publicarem as notícias de modo que fizessem crer aos ingénuos que os combates sempre terminavam com vitórias dos seus amigos. Eu tinha um mapa onde espetava bandeirinhas feitas com alfinetes e papel de seda. Era a linha da frente. Este facto prova que conhecia mesmo António Machado, embora sem o ter lido, o que é desculpável se levarmos em conta a minha pouca idade. Um dia, ao perceber que andava a ser ludibriado pelos oficiais do exército português que tinham a seu cargo a censura à imprensa, atirei fora o mapa e as bandeiras. Deixei-me levar por uma atitude irreflectida, de impaciência juvenil, que António Machado não merecia e de que hoje me arrependo. Os anos foram passando. Em certa altura, não me lembro quando nem como, descobri que o tal homem era poeta, e tão feliz me senti que, sem nenhuns propósitos de vanglória futura, me pus a ler tudo quanto escreveu. Por essa mesma ocasião, soube que já tinha morrido, e, naturalmente, fui colocar uma bandeira em Collioure. É tempo, se não me engano, de espetar essa bandeira no coração de Espanha. Os ossos podem ficar onde estão.
José Saramago, O CADERNO

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Dia 20 [Fevereiro de 2009]

Paco
Ibañez, claro. A esta voz reconhecê-la-ia em qualquer circunstância e em qualquer lugar onde me afagasse os ouvidos. A esta voz conheço-a desde que, no princípio dos anos 70, um amigo me enviou de Paris um disco seu, um vinilo que o tempo e o progresso tecnológico puseram materialmente fora de moda, mas que guardo como um tesouro sem preço. Não exagero, para mim, naqueles anos ainda de opressão em Portugal, esse disco que me pareceu mágico, quase transcendente, trouxe-me o resplendor sonoro da melhor poesia espanhola e a voz (essa inconfundível voz de Paco) o veículo perfeito, o veículo por excelência da mais profunda fraternidade humana. Hoje, quando trabalhava na biblioteca, Pilar pôs-nos a ouvir a última gravação dos poetas andaluzes. Interrompi o que estava a escrever e entreguei-me ao prazer do momento e à recordação daquele inesquecível descobrimento. Com a idade (que alguma coisa há-de ter, e tem, de bom) a voz de Paco tem vindo a ganhar um aveludado particular, capacidades expressivas novas e uma calidez que chega ao coração. Amanhã, sábado, Paco Ibañez cantará em Argelès-sur-mer, na costa da Provença, em homenagem à memória dos republicanos espanhóis, entre eles seu pai, que ali sofreram tormentos, humilhações, maus tratos de todo o tipo, no campo de concentração montado pelas autoridades francesas. A douce France foi para eles tão amarga quanto o seria o pior dos inimigos. Que a voz de Paco possa pacificar o eco daqueles sofrimentos, que seja capaz de abrir caminhos de fraternidade autêntica no espírito daqueles que o escutem. Bem o necessitamos todos.
José Saramago, O CADERNO

domingo, 19 de fevereiro de 2012

O mito da "Europa"

Vasco Pulido Valente - 19-02-2012
A "Europa" nasceu de uma situação histórica irrepetível: da crise industrial na França (por falta de carvão que só a Alemanha lhe podia fornecer); de uma guerra em que, com a excepção da Inglaterra (e alguns neutros), do Báltico ao Mar Negro e da Roménia à França toda a gente perdera; da reconstrução urgente de um mundo em ruínas; do Plano Marshall; da garantia militar da América contra a URSS; do interesse ocidental na estabilidade política dos países que o Exército Vermelho ainda não ocupava; de milhões de homens temporariamente sem casa e sem trabalho; e da ineficácia (relativa) do bombardeamento aliado da indústria francesa e, principalmente, alemã. O extraordinário crescimento a partir de 1947-1949 não se compreende sem estas circunstâncias de excepção.
Quando apareceu, a CEE já encontrou a "Europa" em expansão e, para se legitimar, prometeu mais crescimento: um crescimento contínuo, capaz de assegurar o pleno emprego e desenvolver um Estado Social nessa altura embrionário e frágil. Enquanto o "milagre" económico durou, ou seja até à volta de 1970, a CEE, sob sucessivos nomes, pareceu a solução para os problemas que desde 1918 tinham afligido o continente. Pareceu, mas não era. E não o era principalmente como a entidade, há tanto tempo sonhada, que iria por fim constituir a unidade "europeia" e assegurar a paz (que, de facto, dependia da América). O mito que foi crescendo à volta de um arranjo circunstancial justificou passo a passo a instalação de um enorme aparelho burocrático e, com o tempo, produziu mesmo a ideia absurda que da vontade comum nasceria eventualmente uma grande potência.
Mas, disfarçado e discreto, o domínio da Alemanha estava lá desde o primeiro dia. E, depois de 1989, a Alemanha teve de escolher entre a "Europa", por assim dizer, democrática e "ordenada" da margens do Atlântico e do Mediterrâneo e a sua velha hegemonia na "Europa" central ou, se preferirem, oriental, que o colapso soviético punha de repente à sua mercê. Com a agravante de que o dinheiro desaparecia de um lado e não existia do outro. Enquanto se tornava óbvio que a estagnação do Ocidente não permitia a prazo a sobrevivência do Estado Social, o velho império do comunismo russo, agora "livre", batia à porta da imaginária riqueza da "União". E da Roménia ou da Hungria de Viktor Orbán a Portugal e à Grécia o poço da dívida aumentava. Para a Alemanha, que se decidira pelo "alargamento", ficava um único caminho: submeter a Europa inteira às suas regras. A realidade substituía para sempre a fantasia. 

Dia 19 [Fevereiro de 2009]

Susi
Pudesse eu, e fecharia todos os zoológicos do mundo. Pudesse eu, e proibiria a utilização de animais nos espectáculos de circo. Não devo ser o único a pensar assim, mas arrisco o protesto, a indignação, a ira da maioria a quem encanta ver animais atrás de grades ou em espaços onde mal podem mover-se como lhes pede a sua natureza. Isto no que toca aos zoológicos. Mais deprimentes do que esses parques, só os espectáculos de circo que conseguem a proeza de tornar ridículos os patéticos cães vestidos de saias, as focas a bater palmas com as barbatanas, os cavalos empenachados, os macacos de bicicleta, os leões saltando arcos, as mulas treinadas para perseguir figurantes vestidos de preto, os elefantes mal equilibrados em esferas de metal móveis. Que é divertido, as crianças adoram, dizem os pais, os quais, para completa educação dos seus rebentos, deveriam levá-los também às sessões de treino (ou de tortura?) suportadas até à agonia pelos pobres animais, vítimas inermes da crueldade humana. Os pais também dizem que as visitas ao zoológico são altamente instrutivas. Talvez o tivessem sido no passado, e ainda assim duvido, mas hoje, graças aos inúmeros documentários sobre a vida animal que as televisões passam a toda a hora, se é educação que se pretende, ela aí está à espera.
Perguntar-se-á a que propósito vem isto, e eu respondo já. No zoológico de Barcelona há uma elefanta solitária que está morrendo de pena e das enfermidades, principalmente infecções intestinais, que mais cedo ou mais tarde atacam os animais privados de liberdade. A pena que sofre, não é difícil imaginar, é consequência da recente morte de uma outra elefanta que com a Susi (este é o nome que puseram à triste abandonada) partilhava num mais do que reduzido espaço. O chão que ela pisa é de cimento, o pior para as sensíveis patas destes animais que talvez ainda tenham na memória a macieza do solo das savanas africanas. Eu sei que o mundo tem problemas mais graves que estar agora a preocupar-se com o bem-estar de uma elefanta, mas a boa reputação de que goza Barcelona comporta obrigações, e esta, ainda que possa parecer um exagero meu, é uma delas. Cuidar de Susi, dar-lhe um fim de vida mais digno que ver-se acantonada num espaço reduzidíssimo e ter de pisar esse chão do inferno que para ela é o cimento. A quem devo apelar? À direcção do zoológico? À Câmara? À Generalitat?
José Saramago, O CADERNO

sábado, 18 de fevereiro de 2012

O novo herói

Vasco Pulido Valente - 18-02-2012


O Partido Socialista não tem nada para dizer a ninguém e, para espanto dos poucos portugueses que se continuam a interessar por ele, resolveu agora ir buscar inspiração a Washington, mais precisamente a Obama. Primeiro foi o dr. Mário Soares, que fala da reeleição de Obama como quem fala da salvação do mundo. Depois, veio uma apologia ao homem de Francisco Assis, que parecia tirada de um livro de santinhos. Obviamente, falta a França ao PS. Os nossos políticos, como, até há pouco tempo, os nossos literatos, sobretudo se eram de esquerda, viviam da França. Soares, nas memórias, confessa que se educou num velho jornal chamado Observateur, que a seguir se tornou no France-Observateur e a seguir no Nouvel Observateur, que dura ainda com o mesmo arcaico director.

Esta preferência pela França não custa a perceber. Durante a ditadura, os jornais portugueses não existiam e a oposição não lia inglês. Mas, fora essas considerações práticas, que pesavam bastante, o minúsculo universo da esquerda indígena que se afastara do PC via no socialismo francês - já nessa altura fraco, dividido e confuso - um reflexo de si próprio e dos seus tormentos: como se distinguir do PC sem, pouco a pouco, deslizar para o anticomunismo do regime? Como colaborar com ele sem ser absorvido (e usado) por organizações putativamente "unitárias"? E como se afirmar contra a sua esmagadora força e o mito, quase intacto, da URSS? Para muita gente, as respostas chegaram de França. Mas não se compreende que espécie de esperança ou de ideias chegam hoje de Obama.

Obama não fez grande coisa, excepto evidentemente conseguir ser eleito. Por causa do Congresso, a reforma da saúde acabou por sair truncada e em parte inútil. A política económica falhou ou, se quiserem, como se queixou Ben Bernanke, teve, ao contrário do que se esperava, um efeito "frustrante" e "lento". A América lá retirou as tropas do Iraque, mas para as meter no Afeganistão e, o que é pior, no Paquistão. E Guantánamo funciona, imperturbável como sempre. Em balanço, não se compreende o amor do PS por Obama, excepto pela balbúrdia em que a UE se tornou e pela sua iminente desagregação. O antiamericanismo da esquerda portuguesa e francesa começa a desaparecer à medida que morrem os sonhos da "terceira via" e da utopia do "modelo europeu". No meio do desastre, não ficou Hollande. Ficou Obama. 

O fim das livrarias

José Pacheco Pereira - 18-02-2012
A livraria tradicional caminha para uma dimensão de "culto" e isso permite algumas pequenas livrarias de "autor"


O fim anunciado da Livraria Portugal, a decadência penosa da Sá da Costa, o fim da Buchholz, assim como de várias livrarias na província, ou de pequenas livrarias temáticas em Lisboa, mostra a dimensão de uma crise que afecta directamente o livro, mas, mais ainda, aquilo que se pode chamar o "mundo dos livros". A mesma decadência se nota em livrarias que ainda sobrevivem, cuja aproximação do fim um olho treinado percebe, como sejam as mudanças que pouco a pouco se percebem com a falta de renovação dos stocks, a invasão de títulos de "papel pintado" de uma só editora, a crise nas distribuidoras e modo como a consignação de livros é hoje feita, a caótica distribuição dos títulos, tudo isto mostra uma mudança que não é só provocada pela crise, ou pela concorrência das grandes superfícies como a Fnac, ou com as compras pela Internet. 

A livraria tradicional caminha para uma dimensão de "culto", e isso permite algumas pequenas livrarias, livrarias de "autor", se se quiser, livrarias especializadas, livrarias que combinam os livros novos com os antigos, que são dirigidas por livreiros no sentido nobre do termo, pessoas que conhecem muito bem os livros, os seus leitores-clientes, o modo como o mercado, mesmo neste nicho evolui, e que usam o seu know-how para sobreviver. Mas, enquanto antes este sector, que sempre existiu, era entendido como especializado e funcionando em complemento com as grandes livrarias generalistas clássicas, agora estamos perante um dualismo entre as livrarias de supermercado, ou as Fnac - que faça-se justiça não são livrarias de supermercado -, e os espaços de "culto" dos livros. A grande livraria clássica está a desaparecer.

Veja-se o caso da Livraria Portugal, localizada num espaço privilegiado, e cuja cobiça certamente lhe acelerou o fim, para além da perigosa proximidade com a Fnac do Chiado. A livraria existia há 70 anos, fundada em 1941 em plena Segunda Guerra Mundial. A data não é irrelevante, porque em 1941 era difícil ver-se o presente sem muito receio. Portugal podia a qualquer altura ser sugado para o conflito, e, se virmos o passado com os olhos de hoje, os livros deveriam parecer bem pouco necessários e importantes. Os três amigos que a fundaram, bibliófilos que mereciam este nome, tinham um programa simples: Levar a toda a parte e a cada um o livro necessário." A livraria cumpria-o pelos livros que oferecia, pela qualidade do seu serviço (os velhos empregados da livraria conheciam mesmo os livros), como pelo seu Boletim Bibliográfico, que não só divulgava as novidades como tinha artigos originais.

Conheço a livraria há cerca de 40 anos. Como em todas as livrarias que crescem connosco, obrigam a um trajecto próprio. Na Livraria Portugal, onde as mudanças sempre foram muito lentas, esse trajecto representava a apreensão do "corpo" e da identidade da livraria. As livrarias conhecem-se como as pessoas, e a única mudança substancial no meu trajecto interior foi ter deixado de ir ao andar de cima e ficar apenas pelo andar térreo. Mas o andar de cima era, já há muitos anos, único, porque a livraria tinha o exclusivo das publicações de uma série de instituições internacionais, a UNESCO, a OCDE, a ONU, e outras, que faziam do andar de cima uma livraria técnica muito especial. Mas o "meu andar" foi e é, até ao fim do mês de Fevereiro, o de baixo.

Entrava-se pela rua, depois de ver as montras, em particular a da direita e as vitrinas junto da porta, porque, como a livraria tinha muitos livros únicos, os que estavam expostos ou se viam à porta ou não existiam lá dentro. A primeira mesa à direita passava-a apenas com um olhar rápido: eram publicações de direito e algumas especializadas de arte, sem serem álbuns de mesa de chá. À direita - o meu trajecto fazia-se sempre pelo "corredor" da direita -, começava a animar-se, e a tornar o meu bolso mais leve, a partir da segunda mesa, onde havia uma série de publicações académicas que não se encontravam em nenhuma outra livraria. Depois havia uma terceira mesa com publicações de pequenos editores ou de autor, também sem paralelo noutras livrarias "generalistas". Começavam aí as compras. Depois fazia o mesmo corredor para trás, para a zona direita das mesas centrais. Aí, também, não sei por que mistério, apesar de estarem livros das grandes editoras, havia sempre alguma coisa de história ou política, que nunca tinha visto noutro sítio. É isso que torna uma livraria única: descobrem-se livros que nunca se viram, e essa é também a grande vantagem das livrarias. Pegar e folhear um livro, ler o índice, ou, para um incorrigível bibliógrafo, dar uma vista de olhos às referências e às citações. Com o actual panorama da distribuição, em que o "papel pintado" ocupa o espaço todo, encontrar livros diferentes "faz" uma livraria diferente.

Chegado ao fundo, onde arrancavam as escadas para o andar de cima, havia uma pequena montra de revistas, que com o tempo foi tendo cada vez menos coisas, mas na qual a Seara Nova, a Política Operária e a revista de emigrados Latitudes permaneciam valentemente até ao fim. Era na Livraria Portugal que as comprava, com excepção da Política Operária que, depois de mudar de formato, passei a comprar na Letra Livre.

Estou agora a dirigir-me à porta, do outro lado do U. Aí havia uma outra banca única, com revistas em formato livro, monografias, estudos históricos, com um número significativo de livros estrangeiros, brasileiros, franceses e ingleses. Era também aí o único sítio em que passava para trás das mesas acedendo às estantes, porque os fundos especializados da livraria eram também únicos. História, geografia, genealogia, monografias locais, portuguesas e "ultramarinas", eram já uma sobrevivência do tempo em que a livraria servia de novidades os departamentos das universidades americanas, que usavam o Boletim Bibliográfico para as suas encomendas. Olhava para o lado esquerdo das mesas do meio, mas aí já era raro encontrar alguma coisa e passava por cima da última mesa que tinha livros médicos. Estava junto da caixa, e era aqui que normalmente conversava com quem trabalhava na livraria, gente, como já disse atrás, muita sabedora que conhecia o mundo dos livros como ninguém. Numa entrevista dada ao jornal i, quando se soube do encerramento, um deles disse: "Nunca tive outra vida senão esta."

Não foi por minha falta que a livraria fechou, sempre lá comprei muitos livros e mesmo já com a Fnac em vida, fiz sempre questão de passar pela Livraria Portugal antes de subir a rua e de lá ir comprar mais uns livros. Mas o fim da livraria estava já anunciado há muito tempo. Ainda o discuti com os seus empregados, chamando a atenção para que em Lisboa não havia (e não há) uma única livraria inglesa decente, e que isso oferecia um "nicho de mercado" que ninguém ocupava. Mas sabia, como sabiam os meus interlocutores, que para arrancar um projecto deste tipo era preciso investir muito dinheiro e ninguém o tinha.

Vai pois acabar a Livraria Portugal e juntar-se às minhas memórias da velha Leitura no Porto, da Buchholz sob a férula alemã "não se pode mexerrr" e de mais alguns fantasmas. Eram livrarias de pessoas, feitas de pessoas e para as pessoas, em que os livros não eram instrumentais, mas eram um "mundo" em que todos participavam. Esse mundo está a desaparecer para o comum dos portugueses e a deslocar-se para os consumidores "de culto" ou para os consumidores de "papel pintado" e capas todas iguais, ou para aqueles que dizem que lêem no iPad e não lêem coisa nenhuma.

Parte desta mudança é inevitável, e não é má em si porque para muita gente significa que vai continuar a ler: não faço parte dos nostálgicos do cheiro dos livros, nem das más livrarias, mesmo com cem anos. Mas das boas livrarias tenho pena que despareçam e prescindo que me dêem lições de mercado e da "destruição criativa" schumpeteriana. Não é isso que está em causa, mas aquilo que, num balanço geral, feito por qualquer Deus que veja tudo, significa mais pobreza, menos qualidade, mais deserto afectivo como os "likes" do Facebook, mais tijolos da moda, e menos livros que sejam livros na mão de quem os vende e na mão de quem os compra. 

Historiador

Dia 18 [Fevereiro de 2009]

Que fazer com os italianos?
Reconheço que a pergunta poderá soar de maneira algo ofensiva a um ouvido delicado. Que é isto? Um simples particular a interpelar um povo inteiro, a pedir-lhe contas pelo uso de um voto que, para gáudio de uma maioria de direita cada vez mais insolente, acabou por fazer de Berlusconi amo e senhor absoluto de Itália e da consciência de milhões de italianos? Ainda que, em verdade, quero dizê-lo já, o mais ofendido seja eu. Sim, precisamente eu. Ofendido no meu amor por Itália, pela cultura italiana, pela história italiana, ofendido, inclusive, na minha pertinaz esperança de que o pesadelo venha a ter um fim e de que a Itália possa retomar o exaltador espírito verdiano que foi, durante um tempo, a sua melhor definição. E que não me acusem de estar a misturar gratuitamente música e política, qualquer italiano culto e honrado sabe que tenho razão e porquê.
Acaba de chegar aqui a notícia da demissão de Walter Veltroni. Bem-vinda seja, o seu Partido Democrático começou como uma caricatura de partido e acabou, sem palavra nem projecto, como um convidado de pedra na cena política. As esperanças que nele depositámos foram defraudadas pela sua indefinição ideológica e pela fragilidade do seu carácter pessoal. Veltroni é responsável, certamente não o único, mas na conjuntura actual, o maior, pelo debilitamento de uma esquerda de que chegou a apresentar-se como salvador. Paz à sua alma.
Nem tudo foi perdido, porém. É o que nos vêm dizer o escritor Andrea Camilleri e o filósofo Paolo Flores d’Arcais num artigo publicado recentemente em El País. Há um trabalho a fazer conjuntamente com os milhões de italianos que já perderam a paciência vendo o seu país a ser arrastado em cada dia que passa à irrisão pública. O pequeno partido de Antonio di Pietro, o ex-magistrado de Mãos Limpas, pode tornar-se no revulsivo de que a Itália necessita para chegar a uma catarse colectiva que desperte para a acção cívica o melhor da sociedade italiana. É a hora. Esperemos que o seja.
José Saramago, O CADERNO

Dia-a-dia

• Sabia que... o Zoológico de Copenhague é o único lugar fora da Austrália onde exemplares de diabo-da-tasmânia podem ser encontrados?
• Em 1930, Clyde Tombaugh descobriu o nono planeta do Sistema SolarPlutão.
• Feriado municipal da cidade de Valença.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Dia 17 [Fevereiro de 2009]

A morte à porta de casa
À porta de Lanzarote, à porta da casa que, se a sorte ajudasse, talvez pudesse vir a ser a sua nova casa. A vinte metros da costa, em Costa Teguise, quando certamente já trocavam uns com os outros risos e palavras de alegria por terem conseguido chegar a bom porto, a rebentação fez virar o caiúco. Haviam atravessado os cem quilómetros que separam a ilha da costa africana e vieram morrer a vinte metros da salvação. Dos mais de trinta imigrantes a quem a necessidade extrema tinha obrigado a enfrentar os perigos do mar, em sua maioria jovens e adolescentes, vinte e quatro morreram afogados, entre eles uma mulher grávida e algumas crianças de poucos anos. Seis salvaram-se graças à coragem e à abnegação de dois surfistas que se lançaram à água e os livraram de uma morte que sem a sua intervenção teria sido inevitável.
Este é, nas palavras mais simples e directas que pude encontrar, o quadro do que aconteceu aqui. Não sei que mais poderia dizer. Hoje faltam-me as palavras e sobram as emoções. Até quando?
José Saramago, O CADERNO

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Dia 16 [Fevereiro de 2009]

Maus tratos
Sou em geral conhecido como pessimista. Ao contrário do que alguma vez possa ter parecido, dada a insistência com que afirmo o meu radical cepticismo sobre a possibilidade de qualquer melhoria efectiva e substancial da espécie dentro do que em tempos não muito distantes se chamou progresso moral, preferiria ser optimista, mesmo que fosse apenas por ainda conservar a esperança de que o sol, por ter nascido todos os dias até hoje, nasça também amanhã. Nascerá, mas lá chegará também o dia em que ele se acabe. O motivo destas reflexões de abertura é o mau trato conjugal ou paraconjugal, a insana perseguição da mulher pelo homem, seja ele marido, noivo ou amante. A mulher, historicamente submetida ao poder masculino, foi reduzida a algo sem mais préstimo que o de ser criada do homem e simples restauradora da sua força de trabalho, e, mesmo agora, quando a vemos por toda a parte, liberta de algumas ataduras, exercer actividades que a vaidade masculina presumia de exclusivas do varão, parece que não queremos dar-nos conta de que a esmagadora maioria das mulheres continua a viver num sistema de relações pouco menos que medievais. São espancadas, brutalizadas sexualmente, escravizadas por tradições, costumes e obrigações que elas não escolheram e que continuam a mantê-las submetidas à tirania masculina. E, quando chega a hora, matam-nas.
A escola finge ignorar esta realidade, o que não pode surpreender se pensarmos que a capacidade formativa do ensino se encontra reduzida ao zero absoluto. A família, lugar por excelência de todas as contradições, ninho perfeito de egoísmos, empresa em falência permanente, está a viver a mais grave crise de toda a sua história. Os Estados partem do exacto princípio de que todos teremos de morrer e de que as mulheres não poderiam ser excepção. Para algumas imaginações delirantes, morrer às mãos do esposo, do noivo ou do amante, a tiro ou à facada, talvez seja mesmo a maior prova de amor mútuo, ele matando, ela morrendo. Às negruras da mente humana tudo é possível.
Que fazer? Outros o saberão embora não o tenham dito. Uma vez que a delicada sociedade em que vivemos se escandalizaria com medidas de exclusão social permanente para este tipo de crimes, ao menos que se agravem até ao máximo as penas de prisão, excluindo decisivamente as reduções de pena por bom comportamento. Por bom comportamento, por favor, não me façam rir.
José Saramago, O CADERNO

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Titânia

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Titânia é o maior satélite de Urano e o oitavo maior doSistema Solar, com um diâmetro de 1578 km. Foi descoberto por William Herschel em 1787 e recebeu o nome da rainha das fadas da obra de Shakespeare A Midsummer Night's Dream.
Titânia consiste de quantidades aproximadamente iguais de gelo e rocha, e pode ser diferenciada em um núcleorochoso e um manto de gelo. Uma camada de água líquida pode existir na divisa entre o núcleo e o manto. A superfície de Titânia, que é relativamente escura e um pouco avermelhada, parece ter sido moldada por impactos e processos endógenos. É coberta por várias crateras de impacto alcançando 326 km de diâmetro, mas possui menos crateras que Oberon. Titânia provavelmente já passou por um evento endógeno que apagou sua superfície antiga e cheia de crateras. Sua superfície é cortada por um grande sistema de cânions e escarpas. Como todas as outras grandes luas de Urano, Titânia provavelmente se formou a partir do disco de acreção em volta do planeta logo após sua formação.
Urano só foi estudado de perto uma vez, pela sonda espacial Voyager 2 em janeiro de 1986. Ela tirou várias fotos de Titânia, que permitiram o mapeamento de cerca de 40% de sua superfície. (ler mais)

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

EXCURSÃO AO GERÊS

Após o assalto falhado ao fortim gereseano de S. João da Fraga, pedi ao José Lestra que me levasse à Barragem do Toco.
– É para já – respondeu ele com o entusiasmo e a generosidade que todos lhe reconhecem.
Subimos para o Jeep e, após dois dedos de conversa, tínhamos à frente dos olhos a serena e árida beleza da albufeira de Paradela.
– Deixa-me perguntar se a cancela estará fechada – disse.
E dirigiu-se a uma senhora que regava as flores domésticas dum quintalório:
– Bom dia! Sabe dizer-me se a cancela de acesso ao Toco estará fechada?
– Costuma estar aberta. Mas, por vezes, fecham-na. E hoje anda por aí o Engenheiro. Ponham-se a pau com ele.
Afinal a cancela estava aberta.
– Será melhor deixarmos um cartão – sugeri.
– Dizes bem.
E o Zé, sacando da pena, escreveu: «Estamos para o Toco. No caso de fecharem a cancela, pedimos o favor de nos avisar.»
E deixou o número do telemóvel, modernice que eu abomino, mas que, em ocasiões destas, se revela de alguma utilidade.
– Assim vamos mais descansados – disse.
E continuámos, a passo e de credo na boca, devido ao mau piso do estradão minado de lacadas. E em breve tínhamos pela frente a serena beleza do rio Cabril. É uma visão irreal, só compatível com as alucinações de Maomé a sonhar com o paraíso. A torrente, duma limpidez de cristal, vem descendo das alturas por um escadório de piscinas naturais escavadas no granito cor-de-rosa polido pela água de milénios. Incomparável!
– Sabes do que me estou a lembrar? – disse eu – Se a serra fosse uma deusa, estas Lagoas do Cabril seriam o seu colar de safiras.
– Estás muito poético.
– O que estou é boquiaberto perante esta maravilha. Esta visão duma beleza primitiva. Dessa beleza que todo o nosso planeta devia ter antes da chegada do bicho-homem, que tudo conspurca. Acho bem que fechem a cancela e ponham lá um letreiro desses que se encontram à porta dos restaurantes: «Reservado o direito de admissão...
– A quem apresentar atestado de bom comportamento moral e cívico.
– E se descêssemos e tomássemos um banho? Estou em crer que um mergulho nestas águas nos faria bem ao corpo e à alma.
– Na volta, lá para o fim da tarde. Por agora, proponho o seguinte: vamos ao Toco, e, no regresso, fazemos uma pausa para almoço e sesta na Lagoa. Que te parece?
– Eis aqui o teu escravo. Cumpra-se em mim a tua vontade.
– Anuncio-te que vamos partir.
– A caminho dos píncaros.
– Que é o que mais há por aí.
Realmente, à medida que íamos subindo, os morros acastelados sucediam-se uns aos outros a um ritmo duma valsa de Johann Strauss. Pelo espelho retrovisor, eu via a fita branca do estradão já percorrido e comparava-o ao trajecto da minha vida. Também ela tem pontos claros e escuros, rectas e torcicolos, curvas e contracurvas, altos e baixos. Um láparo atravessou a picada, à nossa frente.
– Olha! Olha! – exclamámos ambos a um tempo. Hoje em dia, ver um coelho bravo, não é para todos.
Bom conhecedor da serra, o meu companheiro ia-me elucidando:
– Acolá, por detrás daquela ravina, ficam as Minas dos Carris. Ali é o Borrajeiro. Do outro lado, a Pedra-Boi. Agora vou-te mostrar um penedo em forma de seio. Lá está ele. Que te parece?
– Longe vai o tempo em que qualquer outeiro ou penedo mais redondo me lembrava um seio de mulher. Infelizmente, a minha puberdade vai longe e, com ela, as minhas fantasias eróticas. Hoje, tudo me lembra o rosário e a velha da foice.
– Memento, homo.
– Adivinhaste.
– Agora adivinha tu. Porque é que tem aquela cor esbranquiçada no topo?
– Quem?
– O penhasco em forma de seio?
– Se é um seio, é do leite.
– Enganas-te. É do mijo das cabras.
– Não vejo cabra nenhuma.
– Mas, antigamente, eram aos milhares, empoleiradas por esses picos. E como a urina é ácida, imprime esse tom esbranquiçado à pedra.
– Já ouvi falar nisso. As cabras ficavam aí de noite e empoleiravam-se nas rochas inacessíveis aos lobos. Creio que lhe chamavam póios.
– Aos lobos?
– Às rochas onde as cabras dormiam.
– Admira estas vistas – disse o meu companheiro, parando o Jeep.
Descemos. Avista-se dali meio mundo. As serras, os rios, as aldeias, as albufeiras, as estradas, os bosques, os lameiros, as searas, as ermidas, movimentam-se na claridade dos primeiros cem quilómetros e na bruma dos restantes numa sucessão de imagens de caleidoscópio.
– Foi pena não termos trazido um binóculo – disse eu – Com uma boa lente, tenho a certeza de que se avista daqui o Atlântico e a serra da Estrela.
– Isso também seria ver demais. Contenta-te com o que te dão.
– Que não é ele tão pouco.
E fechei aquela visão inesquecível na retina para recordar em noites de insónia.
– Podemos seguir.
Agora a descer, caminho do Toco. O meu cicerone ia recordando:
– Ao longo deste córrego havia uma touça de carvalhos gigantes, alguns com mais de vinte metros de fuste. Coisa bonita. Desapareceram.
– Que lhes fizeram?
– Roubaram-nos.
– Para o lume.
– Para madeira.
Um bando de perdizes atravessou à nossa frente.
– Estamos com sorte.
– Porquê?
– Sobrevoaram-nos da esquerda para a direita. Em sentido contrário dava azar.
– Repara naqueles gravetos, ao cimo do vale. É o que resta duma grande mata de teixos, árvore em vias de extinção.
– Também os roubaram?
– Chegaram-lhes fogo.
– Terra de bárbaros.
– E de víboras.
– Víboras?!
– Em tal quantidade que, aquando da construção da barragem, a empresa exigia aos trabalhadores o uso de grevas.
– Já não saio do carro.
– Não sejas timorato. Aqui há uns anos, eu e o mano batemos todas essas chapadas e não encontrámos nenhuma.
– Aventureiros.
– Inocentes. Aliás, segundo os entendidos, a víbora só ataca se se vir encurralada. Se lhe deixarem caminho livre, afasta-se.
– Nesse caso.
A Barragem do Toco é pouca mais que uma represa de moinho. A grande obra de engenharia deve ser o túnel que, ao longo de muitos quilómetros e das entranhas da serra, traz a água para a albufeira de Paradela. Mas esse não se vê.
– Está visto – disse eu, mortinho por abandonar aquela terra de víboras – e dirigi-me para o carro.
Reparei num arbusto carregado de bagas vermelhas, duma beleza exótica e para mim desconhecida.
– Sabes que arbusto é este?
– Não.
– Bonito.
Regressámos. Vimos mais perdizes. Às tantas o Zé saiu do estradão e meteu o Jeep a corta mato, por um poisio dentro.
– Para onde vamos?
– À Lagoa.
Eu olhava e não via lagoa nenhuma.
– Onde está ela?
– É isto – e indicou-me uma circunferência de terra nua com uns cinquenta metros de diâmetro, onde largas dezenas de vacas, umas de pé outras deitadas, ruminavam e sacudiam a mosca. – Nesta altura do ano e com a estiagem que vai, secou. Mas no Inverno enche. Chega a ter mais de um metro de altura de água. Se reparares bem, a terra ainda está húmida. Por isso é que as vacas a preferem. Gostam de sentir a frescura no ventre. Anda cá que te quero mostrar uma coisa.
E levou-me até junto duma fonte de jorro abundante.
– Queres provar?
– Homem, assim de estômago vazio...
– É só para veres como é fresca.
Era realmente deliciosa.
– Já reparaste nas cabanas dos pastores?
– Estou a ver.
Uma antiga, género caverna de urso, outra mais sofisticada, obra do Parque da Peneda-Gerês. Indiquei a primeira e disse:
– Não era eu que entrava aí!
– Porquê?
– Por causa das víboras.
– Deixa lá as víboras e anda.
– Para onde?
– Junto daquelas árvores. Há lá água e sombra.
– É longe?
– Uns mil e quinhentos metros.
– Devem ser mais.
– Uns dois quilómetros, no máximo.
– Mais que fossem. Avante, compañero de mi vida.
Distribuímos a caravela e pusemo-nos em marcha. Eu via o Zé à minha frente, liteiro pelas costas, lancheira ao ombro, enfiada no rijo bengalão de carvalho cerquinho, passo estugado de contrabandista. De vez em quando voltava-se e dizia:
– Segue as mariolas. As maiores, indicam as auto-estradas; as mais pequenas, as vias secundárias.
Eu via apenas uns carreiritos manhosos, por onde era difícil progredir. Ora punha o pé em falso, ora tropeçava nas raízes. Cheguei a ir de cu nos tojos. Disse mal da minha vida. Da minha vida e das moscas, que largaram as vacas e caíram em mim. Caí nelas à bordoada.
– Ah, suas atrevidas! Lá por ir carregado, não sou nenhum burro.
As excomungadas, porém, não me largavam. Praguejei:
– Porque é que nesta imensidão de luz, silêncio e pedra há-de haver moscas? Nada há perfeito neste mundo.
Sem embargo, de quantas já vi, a do Gerês continua a ser a serra que maior sensação de grandeza me transmite. Vistas do Gerês, o Larouco e a Cabreira parecem serras secundárias. Parei de novo, em êxtase perante a divindade.
– Para aqui – gritou-me o Zé para além dum espesso matagal.
Vi-me e desejei-me para lá chegar.
– Porque não esperaste por mim?
– Oh, rapaz, já não aguentava o peso da bengala no ombro.
Havia ali um carvalho solitário, lanços de água estagnada, uns metros de torrão seco.
O Zé estendeu o liteiro na relva, abriu a lancheira. À vista das loiras coxas dum frango caseiro assado, esqueci as belezas da serra.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 23 e ss.)