sábado, 30 de julho de 2011

Ilha do Fogo

Fogo, Cape Verde Islands.jpg
Ilha do Fogo, parte do arquipélago de Cabo Verde.

PÁSCOA DA RESSUREIÇÃO

Hoje, 31 de Março, dia de Páscoa, tive uma alegria. Acordei com o sol na janela. Abri-a e ouvi cantar o cuco.
Segundo me dizem, o flautista já por aí anda há uns dias. Mas eu cheguei ontem, já de noite, e só hoje é que o ouvi. Empoleirado num fio telefónico, a escassos metros da minha janela.
Desde a fundura das minhas reminiscências que a imagem do cuco anda associada à de Páscoa, Sol, Primavera.
Quando o ouço pela primeira vez, alegro-me.
Quando ele se vai embora, entristeço.
Um dia mestre Saias passou por mim e disse-me:
– Pareces triste, rapaz?
– E estou.
– Porquê?
– O cuco foi-se embora.
– Estás enganado. Há cucos que passam aí o Inverno, debaixo de telha.
– Você parece os da Ponteira, que pensam que os cucos recolhem à Roca no Outono e saem de lá na Primavera.
– Fia-te em mim. Há cucos que passam aí todo o ano.
Homem sabido, o mestre Saias.
Outra imagem da minha infância ligada à Páscoa, é a da roupa nova.
Rapazes e raparigas passavam a Quaresma a perguntarem uns aos outros:
– Então que é que vais estrear na Páscoa?
Quem não estreasse nada na Páscoa, era desclassificado no jogo das vaidades humanas.
Se hoje me perguntarem quantos fatos tenho e de que feitio e cor eles são, não sei responder.
Mas lembro-me perfeitamente do feitio e cor de todas as farpelas da minha infância e juventude, desde um fatinho à marinheiro, logo ao sair da puerícia, a umas pantalonas estreadas pela Páscoa dos meus quinze anos.
Da costureira do fatinho à marinheiro, não me lembro. Mas devia ser mestra no ofício, porque a fardeta me ficava a malar. Tanto que a Aldina, uma rapariga de Medeiros a servir em nossa casa, de visita pascal à família, resolveu levar-me com ela.
Recordo-me de subir a rua ao colo da Aldina e conhecidos e amigos perguntarem:
– Ai! De quem é este menino tão bonito e tão asseado?
Na opinião dos de Medeiros, eu, em menino, era um rapaz bonito. Que pena ter envelhecido.
Das pantalonas dos meus quinze anos não guardo tão boas recordações.
Foi a obra encomendada ao supracitado mestre Saias, homem dos sete ofícios, que topava a tudo e nada lhe saía perfeito.
A minha mãe disse-lhe:
– Ó Zé? Deixa as calças folgadas, porque o rapaz está a crescer.
Ele deve ter entendido: a crescer e a alargar: porque talhou umas perneiras com dois palmos de largo, a cobrir os butes, a varrer o chão.
Quando vi aquilo, protestei:
– Não saio com isto à rua.
– Não saias. Outras não tens.
Mas eu ia lá perder a missinha da Páscoa?
Deixar de ver o que os rapazes, e, principalmente, as raparigas, estreavam naquele dia?
Na intenção de minha mãe, as calças axadrezadas destinavam-se a fazer conjunto com o casaco liso com que me apresentei a exame da quarta classe.
Confesso que isto de combinar cores não é o meu forte. Saber se esta gravata combina bem com esta camisa ou este casaco, não é comigo. Para mim, é tudo igual.
Mas, sinceramente. Que raio de combinação podia haver entre um casaco de há quatro ou cinco anos, de mangas a fugir para os cotovelos, abotoadura para as costas e abas para o umbigo, e umas calças que em cima me chegavam aos sovacos e em baixo varriam o chão? Devia parecer um palhaço.
Fui tirar satisfações ao xastre.
– Olhe para isto, que porcaria de calças.
– Que têm as calças?
– Você não vê? Cobrem-me os pés, varrem os caminhos.
– Não te amofines, rapaz. Poupa-as, que, qualquer dia, as calças compridas e largas estão na moda.
– Vá-se lixar.
– Espera e verás.
Agora, quando vejo a juventude, principalmente as raparigas, com essas pantalonas compridas e largas, sem qualquer festo, a cobrirem os sapatos, a desfazerem-se em fiapos, a varrerem o cisco das ruas e dos passeios, penso para comigo:
– Afinal, mestre Saias tinha razão. Como ele foi capaz de prever, com mais de sessenta anos de antecedência, a evolução da moda no século XXI. Um pioneiro, um desses génios contestados no tempo deles e reconhecidos um século depois.
VIVA O MESTRE SAIAS!
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 137 e ss.)

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Dia 29

* Fomos hoje, mais uma vez, almoçar à Taberninha "O Chico", em Alívio, Perelhal, entre Esposende e Barcelos. Como de costume, uma boa refeição.

Horseshoe Bend

USA 10187 Horseshoe Bend Luca Galuzzi 2007.jpg
Horseshoe BendRio ColoradoEstados Unidos

O Pastor de Bensafrim - Zeca Afonso



Ó ventos do monte

Ó brisas do mar

A história que vou contar

Dum pastor Florival

Meu irmão de Bensafrim

Natural rezava assim


Passava ele os dias

No seu labutar

E os anos do seu folgar

Serras vai serras vem

Seu cantar não tinha fim

O pastor cantava assim


Ó montes erguidos

Ó prados do mar em flor

Ó bosques antigos

Trajados de negra cor

Voa andorinha

Voa minha irmã

Não te vás embora

Vem volta amanhã

Dizei amigos

Dizei só a mim

Todos só de um lado

Quem vos fez assim


Dizei-me mil prados

Campinas dizei

A história que não contei

Serras vai serras vem

O seu mal não tinha fim

O pastor cantava assim


Ó montes erguidos

Ó prados do mar em flor

Ó bosques antigos

Trajados de negra cor

Voa andorinha

Voa minha irmã

Não te vás embora

Vem volta amanhã

Dizei amigos

Dizei só a mim

Todos só dum lado

Quem vos fez assim


Seu bem que ele vira

Num rio a banhar

Ao vê-lo vir espreitar

Nunca mais apareceu

Ao pastor de Bensafrim

Sua dor chorava assim


Ó montes erguidos

Ó prados do mar em flor

Ó bosques antigos

Trajados de negra cor

Voa andorinha

Voa minha irmã

Não te vás embora

Vem volta amanha

Dizei amigos

Dizei só a mim

Todos só dum lado

Quem vos fez assim


PASTOR DE BENSAFRIM (Letra e música de José Afonso)

Ouvi uma criança cantando:

                                         "Num dia corri o mundo

                                         Aqui cheguei à tardinha..."

Estes dois versos motivaram a síntese que fez nascer Bensafrim e o seu pastor. Levei tempo a concluir o texto para a melodia que já estava feita. O povoado existe, com efeito, lá para os lados de Aljezur mas o pastor é um subproduto bucólico roubado aos zagais das éclogas de Bernardim e Cristóvão Falcão. Um pouco levianamente fui levado pelo jogo das rimas à reconstituição do velho drama pastoril cujo nome, "Bensafrim", os montes e as ervinhas repetem até aos mais humildes recantos da Serra Algarvia.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Sol

The Sun by the Atmospheric Imaging Assembly of NASA's Solar Dynamics Observatory - 20100819.jpgSabia que no núcleo do Sol temperatura é de aproximadamente 15.000.000 °C?

Busto de Nefertiti

Nofretete Neues Museum.jpg
Busto de Nefertiti

Dia 28

* Será que a ignorância também é efeito da avareza?

Mulher com um cão branco (1952)


Autor: Lucian Freud
Localização: Tate Gallery, Londres

Narciso Yepes - Recuerdos de la Alhambra

Coimbra, 28 de Julho de 1979

                   PURIFICAÇÃO

Não é propositado o meu silêncio.
São as próprias palavras que não querem
Dizer nada de mim.
Cansaram-se do uso
E do abuso
Que fiz delas
A vida inteira.
Prostituídas na minha voz,
Que o tempo corrompeu,
Mentirosas nas horas mais sinceras,
Regressaram de novo à virgindade
Que lhes roubei.
E aguardam servir outra humanidade
Que comece por onde comecei.

DIÁRIO (XIII), p. 99

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Dia 27

• O que será mais útil: interrogarmo-nos sobre as antigas paixões, ou os factos da própria vida?

Duarte Costa


Duarte Costa plays guitar transcriptions and fado

Qumram

Localidade sobre o mar Morto, onde, a partir de 1947, foram encontrados manuscritos que continham livros bíblicos e outros textos pertencentes a uma comunidade judaica que vivia nas redondezas.

File:Qumran Caves.jpgOs manuscritos de Qumram constituíram urna das mais importantes descobertas documentais do século XX. As obras encontradas nas grutas de Qumram e as escavações arqueológicas levadas a cabo no sítio revelaram a existência de uma comunidade, geralmente identificada com os Essénios dos quais falam algumas fontes contemporâneas, como Fílon de Alexandria e Flávio Josefo. No início do séc. II a.C., os Essénios romperam relações com o Judaísmo oficial do Templo de Jerusalém e os seus representantes, tachados de impureza e acusados de não observarem a Lei, retiraram-se para o deserto do mar Morto. Guiados por uma figura carismática, o Mestre de Justiça, fundaram ali uma comunidade da qual existem achados na estação arqueológica que testemunham a vida que ali decorreu e da qual se perdem os traços após o ano 68 a.C. Os Essénios viviam dentro de uma normativa rígida: regras de pureza, de partilha de bens em comunidade, celibato. O manuscrito do Manual de Disciplina expõe as etapas inerentes ao processo de iniciação à vida comunitária. Os textos da comunidade apresentam algumas particularidades: dualismo rígido, espera escatológica, determinismo, messianismo duplo (espera de um Messias sacerdotal e de um Messias laico). Diferentes elementos da teologia esseniana implicaram o pensamento cristão nas suas origens, embora seja improvável que João, o Baptista, o precursor de Jesus Cristo, tenha feito parte desta comunidade, e fica excluído que o próprio Jesus tenha pertencido a ela.

Os manuscritos de Qumram
A Regra da Comunidade ou Manual de Disciplina, contém os preceitos pelos quais se regia a vida comunitária. Uma colectânea de Hinos, ou Hodayot, composta em parte pelo Mestre de Justiça e em parte pelos seus discípulos, servia para a liturgia. O Pesher («comentário») Habacuc interpreta as profecias de Habacuc (séc. VII a.C.) em função de personagens e de eventos contemporâneos. A Regra da Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas descreve a batalha final contra as forças do mal.

O contexto a partir das origens
Entre os traços mais característicos que distinguem a comunidade de Qumram figuram a vida comunitária e o celibato, uma novidade no contexto do Judaísmo. Junto dos Essénios vocacionados para o celibato, havia outros que, apesar de comungarem com as mesmas ideias, se casavam para salvaguardar o princípio da procriação. A iniciação à vida comunitária que implicava a partilha de bens, fazia-se gradualmente após um período de noviciado, que podia durar vários anos.
As escavações arqueológicas trouxeram à luz as dimensões monásticas da comunidade que se podia sustentar a si própria graças a um sistema de recolha de águas e de produção de víveres que satisfazia as suas necessidades essenciais. O habitat comunitário era composto por um refeitório, onde eram servidas as comidas em comum e que, ao mesmo tempo, era utilizado como sala de reuniões, um scriptorium como nos futuros mosteiros cristãos onde se copiavam os manuscritos, umas oficinas, cisternas e grandes pias que serviam para os banhos rituais.

Giovanni Filoramo, Origem e difusão do Cristianismo
Ver os números anteriores: 1 e 2.