sexta-feira, 15 de abril de 2011

ALTURAS DE BARROSO

Onde se fala de viajantes ilustres
No último fim-de-semana de Maio levei os meus colegas de curso (Curso Médico da Universidade de Coimbra – 1948/55) à Serra das Alturas. Pelo caminho fui-lhes falando de dois viajantes ilustres que nos precederam na jornada.
Primeiro: D. Frei Bartolomeu dos Mártires, o qual, segundo Frei Luís de Sousa, «fez o milagre» de subir à Serra das Alturas aí por 1564.
Segundo: Camilo Castelo Branco, o qual «também fez o milagre» de subir às Alturas de Barroso em 1843 – segundo afirma.
Esta de só por milagre e pela mão do Anjo do Senhor ser possível subir às Alturas de Barroso, é uma piedosa e subtil invenção de Frei Luís de Sousa. Este santo frade e admirável prosador, queria, à viva força, canonizar o arcebispo. À falta de milagres autenticados, tentou convencer os cardeais e o papa de que só por milagre o Primaz das Espanhas teria partido para Barroso com numerosa comitiva de azémolas e lacaios e regressado a Braga com tudo a são e salvo.
Para isso, vá de carregar nas tintas. Que «Barroso é um sítio tão intratável de serras e penedias, quase sempre cobertas de neve, de picos que vão às nuvens, de brenhas temerosas, de vales profundíssimos e passos perigosos, que mais parecem moradas de feras e selvagens, que de homens capazes de razão e juízo».

O milagre
«Andava o Arcebispo no mais trabalhoso da serra. E passava um dia de Covas de Barroso para onde chamam Alturas, ou Salto: era o caminho uma vereda muito estreita, e costa arriba por uma serra íngreme e altíssima, e de uma e outra banda quase como talhada a pique, e os vales tão fundos que metiam medo. Caminhavam todos enfiados um trás outro e com assaz pavor, e como dizem com o credo na boca. Diante iam sete azémolas de carga que levavam camas e mantimentos, como se fazia conta que era o caminho por deserto. (...) Se não quando, ao tempo que iam no mais alto da costa, e quase vencendo o cabeço do monte, resvala uma das azémolas de carga, e em resvalando tudo foi um, resvalar e ir em tombos pela costa abaixo. Ia nesta paragem o carreiro, ou vereda que seguiam, em volta; vinham abaixo as outras azémolas; dá sobre elas a que vinha em tombos, com o ímpeto que trazia derruba a primeira que encontrou e a outra que a seguia.
Assim se foram encontrando, empuxando e derribando até darem nos que vinham a cavalo, que sem remédio, como não havia nenhum para se desviarem, vieram quase todos a terra, dando voltas sobre os penedos. (...) E ainda que alguns deram muitas voltas sobre penedos agudos e troncos de árvores, onde só o peso e a força da queda era bastante para matar, nem cavalgadura nem homem ficou ferido, nem mal tratado, excepto um que só estroncou um pé, cousa muito leve. Assim deram todos o caso por milagroso...»1
E nós também, Laus Deo.

Quem tem burro e anda a pé...
Duzentos e oitenta anos depois, Camilo Castelo Branco escrevia deste teor, muito orgulhoso da façanha:
«Eu também fiz o milagre de ir às Alturas de Barroso, (…) Subi quatro léguas de encosta com a mula à rédea».
Apetecia-me retrucar-lhe: quem tem burro e anda a pé...
Eu e os meus colegas cobrimos as oito léguas que separam Chaves das Alturas numa hora, comodamente sentados num autocarro da Câmara Municipal de Montalegre. O tempo suficiente para admirar a paisagem, que essa sim, é que está um milagre – de perfume, de música, de movimento, de cor.
O perfume dos mil e um turíbulos quantas as flores cujas corolas se abrem ao beijo das auras que passam; a música dos pássaros, tão numerosos e variados quão alegres e canoros; o movimento suavemente ondulado dos lameiros de feno e das leiras de centeio; a cor aurifulgente da capa de asperges que, nesta época do ano, reveste montes e vales.
Embevecidos neste espectáculo, depressa atingimos as Alturas, a terra mais alta de Portugal. A este propósito ficou célebre o dito duma velha aqui nada, criada e amadurecida, que, num dia de grande nevão, exclamou para as vizinhas:
– Ai raparigas! Quando aqui neva, o que fará nessas terras altas...

Manjar de Anjos
No regresso das Alturas, Camilo pernoitou em Cerigo.2 Já citei e transcrevi mais duma vez trechos desta «Ceia em Barroso». Mas não resisto a fazê-lo mais uma vez. Oiçam, que vale a pena:
«À entrada de Cerigo está uma fonte rente com o chão. Ao pé da fonte, emergindo o cântaro, estava uma grossa e corpulenta moça, com a cabeça tosquiada, pés descalços, saia de tomentos curta pelo joelho, as pernas vestidas nuns canudos de lã hirta e negra, e sobre os ombros um mantéu de baeta escarlate.
Perguntei-lhe se naquele povo haveria quem me desse agasalho por uma noite.
– Venha daí comigo – respondeu ela, pondo o cântaro ao ombro e os olhos no chão. Chegámos junto duma casa térrea como todas: a moça entrou no quinteiro e disse-me:
– Meta a mula naquela corte e entre cá prá cozinha. (...)
O fumo, que nublava a cozinha, enchera-me os olhos de lágrimas. Eu não via ninguém. Luz havia apenas a da fogueira empardecida pelos rolos de fumo. Já tinha o lenço empapado em lágrimas e não podia ainda fitar os olhos no gentio que rodeava a lareira. (...) Eu tinha fome. Farejei o vapor de dois enormes potes cujo conteúdo fervia a cachões. O que quer que era não tinha cheiro que lisonjeasse o meu olfacto. Regalava-se-me, porém, a alma na expectativa de ver sair daqueles potes alguns nacos de presunto, e uma das gordas galinhas, que esvoaçaram sobre mim quando entrei na corte da mula. Nesta prelibação mal agourada ia eu tolerando as dores acres dos olhos.
– Vamos ao caldo – disse uma das seis velhas. (...)
Seguiu-nos para a mesa uma grandíssima gamela de batatas com a tona, e, ao lado das batatas, uma escudela com sal. Mais de cinquenta dedos, incrustados de lama empedrada, convergiram sobre a gamela. Enxerguei esta cousa suja e ignominiosa à luz de dois paus de urze, que ardiam espetados na parede. Fiquei atónito, quando vi aquela gente rolar as batatas na escudela do sal, e comê-las assim!
– Você não come? – disse um dos convivas.
Estendi o braço à gamela, e tirei uma batata que larguei logo, porque me queimava. Riram todos. (...) No entanto, estonei a batata, salguei-a, e soube-me que nem manjar de anjos.»3

Já que vai de Milagres
A ser verdadeira a ida de Camilo Castelo Branco à Serra das Alturas, o glorioso viandante, que se gabava de ter espírito andejo, ainda teve de calcorrear, no regresso, um bom bocado antes de avistar, ao entardecer, a aldeia de Cerigo, onde, segundo magistralmente relata, foi tão bem recebido e tratado a batatas com a tona e caldo de leite. «Caldo de leite, meus amigos que derrancais o paladar e o estômago com pastéis de ostra, e croquettes de carne revelha, e civets de lebre pútrida, e vol au vents de ma risco! Não sabeis o que é este sadio, e talvez primeiro alimento de Abraão, de Jacob, de Matusalém, e de Sara, minhas senhoras, de Sara, que tomava caldos de leite e tinha filhos na idade em que vossas excelências têm bisnetos!
Cada tigela de caldo era um lago de leite, em que eles formavam, a modo de ilhetas, pirâmides de broa, que comiam e revezavam, e eu também, deliciosamente.»
Eu, os meus colegas de curso e o Dr. Mário Carneiro, ilustre Director das Termas de Chaves, que teve a gentileza de nos acompanhar, encontrámos agasalho e pousada muito mais perto: em Vilarinho Seco – Casa do Pedro.
Em casa do Pedro é que se comem hoje verdadeiros «manjares de anjos», sejam eles caldo à lavrador, cozido à barrosã, vitela na brasa, cabrito no forno ou no pote, arroz de espigos, doces caseiros, vinho de colheita própria e muitos outros acepipes, todos eles genuínos, todos eles sadios, todos eles para «comer e revezar, deliciosamente».
Quanto a mim, a cozinha da Casa do Pedro é um milagre muito mais autêntico e palpável do que aqueloutro duma récua de mulas e cavalos resvalarem aos tombos encosta abaixo, sem nenhuma delas ou deles beliscar, sequer, os atafais.
Milagres da nossa terra!

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 55 e ss.)
_________
1 Frei Luís Sousa - Vida do Arcebispo D. Frei Bartolomeu dos Mártires.
2 Se não estou em erro, a aldeia chama-se Cecerigo.
3 Camilo Castelo Branco – Doze Casamentos Felizes – Sexto Casamento.

Sem comentários:

Enviar um comentário