quinta-feira, 28 de abril de 2011

SILÊNCIO

Uma das coisas que mais aprecio em Peireses é o silêncio. Principalmente pela manhã, quando acordo num mar de bonança, e nele deslizo, e volto a mergulhar, para de novo emergir, na tranquilidade da casa.
Acabo de acordar com gritos ao longe. Suspendo a respiração e apuro o ouvido: os grunhidos dum porco. Temos matança...
Confesso que hoje a matança tradicional me parece uma coisa bárbara...
Devo ter sido influenciado pela campanha dos "Protectores dos Animais». Ainda gostava que me dissessem, esses corações enternecidos, como é que o homem ia sobreviver sem matadouros e sem talhos? Como é que os Barrosões de há cinquenta anos iam sobreviver sem a matança do porquito?
Cá na minha, o que esses supostos «Amigos dos Animais» são é uns ateus. Que, se fossem crentes, sabiam que todos os Deuses gostam de matanças. A começar por Javé. Leiam a Bíblia. Lá vem logo nas primeiras páginas. A quando da 10.ª Praga do Egipto, Deus recomenda aos Filhos de Israel que, em determinado dia do mês, matem um cordeiro dum ano, macho, sem mazela: agnus absque macula, masculus, anniculus: e, ao escurecer, pintem a padieira da porta com o sangue do dito, e, de seguida, rins cingidos e bordão em punho, como quem vai de viajem, o comam assado. Não o quer frito nem cozido. Assado! O que prova que o Deus de Abraão, no tocante a carnes, tinha bom gosto.
Mais tarde o Rei David, depois de ter seduzido Bethasebé, mulher casada, cujo marido mandou matar, arrependeu-se e dirigiu a Javé uma veemente súplica em verso de pé cochinho: Miserere mei, Deus: na qual, depois de muita lágrima e murros no peito, Lhe promete uma boa meia dúzia, se não mais, de vitelas no altar: Tunc imponet super altare tuum vitulos.
Como sou profundamente religioso, visceralmente judeu, adoro sacrifícios de animais. Super omnia, de porcos. Portanto, que os da «Protectora» vão pregar a outra freguesia e me deixem em paz com as minhas recordações da infância.
Este mês de Dezembro traz-me duas das mais gratas: a matança dos porcos e o Natal. Bem sei que o porco não é animal de presépio. Mas acreditem que ficava lá bem. Se um dia fizer um presépio, mandarei lá pôr um porquinho. Nem que seja o de Santo António.
Seja como for, matança e Natal (estou a referir-me aos meus tempos de infância) tinham uma coisa em comum: a fartura. Dias de um cristão tirar a barriguinha de misérias.
Como o Natal ainda vem a caminho, hoje fico-me pela matança, a grande festa.
Os espanhóis chamam às corridas com touros de morte a Fiesta. A Festa. Na minha infância, a grande Festa era a matança dos porcos.
Com que saudades a recordo...
Os gritos cessaram. Voltou o silêncio.
Vou dormir mais um bocadinho.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 69 e s.)

Sem comentários:

Enviar um comentário