domingo, 17 de abril de 2011

Cadernos de Lanzarote (Diário – I): 17 de Abril [1993]

Carta de agradecimento a uma professora de Filosofia, e seus alunos, da Escola Secundária do Padrão da Légua, em Matosinhos, por um trabalho feito sobre o artigo «Contra a tolerância», que saiu há tempos no Público. O divertido é terem-me posto a dialogar com Kant, o que, sendo um abuso intelectual de que estou inocente, pode compreender-se e aceitar-se, se pensarmos que o dito Kant, ao longo da sua vida, teve necessidade de dialogar com muitíssima gente, alguma sublime, outra não tanto, a maior parte assim-assim, e todos esses poderiam dizer: «Kant falou comigo...» Graças ao Padrão da Légua, falei eu com Kant.
Vieram visitar-nos Jaime Salazar Sampaio e Raquel, sua mulher. A ela não a conhecia, a ele pouco, por isso a conversa foi difícil ao princípio. Não se falou de literatura, e ainda bem. Há muito tempo que não leio nada dele, e não queria recorrer às antiguidades que aí tenho: de poesia, Em Rodagem, 1949 (que é o seu primeiro livro), e Poemas Propostos, 1954; de teatro, Os Visigodos e Outras Peças, 1968, e A Batalha Naval, de 1970. O tema perfeito – Lanzarote – estava, por assim dizer, à mão de semear, e graças a ele fizeram-se as despesas da conversa. Sinal da idade que tenho é esta preocupação nova de buscar na cara dos outros os estragos que suponho ainda não terem marcado a minha: quando voltei a casa, depois de os acompanhar à estrada que vai para Yaiza, fui ver em que ano nasceu o Salazar Sampaio: 1925. Pois não há dúvida: para os poucos anos que tem, o Jaime está um bocado estragado.
José Saramago

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