terça-feira, 12 de abril de 2011

Vergílio Ferreira (12 de Abril de 1989)

12 – Abril (quarta). Escrevi umas piadas para servirem de comentário a umas fotos salazaristas. Celebra-se este ano o centenário do grande homem e eu colaboro na festa a pedido do Francisco Bélard do Expresso. Mas não me senti bem. Porque o Salazar se redimiu para mim? É óbvio que não, embora em perspectiva retroactiva a nitidez do que foi se atenue. E atenua-se porque o seu grande inimigo, que era o comunismo, vai-se revelando como razão de o ser. Mas além de que Salazar se não esgota aí no seu odiar, além de que o seu modo de ser em política é muito mais complexo do que essas linhas rectas em direcção às correntes políticas, ele tinha para o seu projecto político uma filosofia ou prática que implicava um modo atrasado de se ser em arte, costumes, economia e o mais. Simplesmente tudo isso recuou já muito no tempo e ter piadas para isso é tê-las para os amuos de D. Tareja ou de Helena de Tróia. Salazar está morto e não se dizem pilhérias sobre o Costa Cabral ou o Marquês. E foi esse mal-estar que me fez mal ao estômago e à alma. Mas, a comentar as fotos, havia de ir para uma especulação de alturas? Joguei na chalacice, saiu assim. Aliás, num lance ou noutro não deixei de ter laracha. Seja pelos meus pecados, que não tenho, e pelos de Salazar, que se foi bem abastecido. Em PS. Quero anotar que os salazaristas na orfandade andam todos azafamados a glorificar o falecido. Eu que detestei a fauna horrível que nesse tempo se saracoteava no poder, mesmo provinciano, eu que conheci alguns desses abjectos serventuários como um cevado (com perdão dos cevados) que foi governador civil de Évora, eu que fui agredido bestialmente e publicamente ainda em Évora por um cónego Alegria que exercia num jornal eclesiástico a função de ser malcriado até à javardice sob o pseudónimo de Carlos Maia, eu que tremi anos e anos ameaçado pelos senhores da PIDE, eu que tinha o nome nos seus cadernos tenebrosos, só porque ouvia a BBC e já no fim da guerra, eu que vivi só até meio na minha condição de ser humano e fui denunciado à mesma PIDE por um colega do Camões, de que tive conhecimento após a 25 de Abril – eu não tenho ainda a alma em paz com o odiento salazarismo. Diz-se: Pois sim. Mas se V. vivesse quando foi do 28 de Maio, dava palmas à revolução que pôs termo ao forrobodó republicano. Talvez. Mas nunca à certeza, se a pudesse ter, de que o sossego ia ser de morte e durante cinquenta anos. Pois. Mas e se tivéssemos tido o comunismo? Mas em primeiro lugar não sabíamos se teríamos – a França não teve. Em segundo lugar, não se parte de um mal hipotético para se preferir um mal certo. De resto, o comunismo por aqui, desligado da teta da mãe, seria muito difícil que se criasse.
conta-corrente - nova série I (1989), p. 66 e s.

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