sexta-feira, 15 de abril de 2011

Vergílio Ferreira (15 de Abril de 1989)

15 - Abril (sábado). Hoje o (ainda me parece) jovem João de Melo, recente premiado da APE, traz no Europeu uma longa entrevista. Não li tudo, que era longa. Mas houve um pormenor, que é já tema batido e me chamou a atenção. Foi o caso que ele e um membro do júri, Teresa Rita Lopes, se insurge contra os romances pouco legíveis, enroscados de artifícios, que se não podem entender – ao contrário do dele que era legível e corredio. Não tenho objecção a fazer. Excepto esta: porque é que estes senhores se não insurgem nunca contra a poesia, que tem muito mais roscas de ininteligível? Porque é que a Rita Lopes, doutora no Pessoa, nunca pôs objecções à ininteligibilidade de certos poemas seus? Porque é que o amigo João de Melo não proclama publicamente que os poemas do Helder ou do Rosa são pura treva para a inteligibilidade? Não senhor. A poesia é assim, é feitio, não se lhe pode levar a mal. Quanto ao romance, mais votado à costureira e ao magala, tem de estar ali muito claro, muito inteligível como um bocado de broa. Ora bem: uma obra de arte não é para «entender», mas para «compreender». Uma coisa dificilmente hoje pode ir com a outra, porque de romances para sopeiras estamos já um pouco cansados. E assim hoje, para verdadeiramente «entender», há o anúncio do Diário de Notícias e o boletim meteorológico.
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Num campo de futebol inglês um grupo de «hooligans», vadios aventureiros que já há anos na Bélgica provocaram uma razia, desencadearam uma desordem que lhes rendeu 87 mortos. (Foram 93. Na TV um «psicólogo» veio explicar que a causa última do desastre foi a «morte dos valores» no nosso tempo. Finalmente. Há dezenas de anos que o venho proclamando. Gargalhavam-me na cara. Eram sobretudo os que tinham de reserva o valor comunista. Mas agora a reserva esgotou-se.) Foi o Lúcio que ouviu na rádio. As pessoas, naturalmente, ficam horrorizadas. Mas é porque pressupõem que uma vida é um valor. E é o que ela não tem para os rufiões. Porque se isso lhes perguntassem, eles diriam «mas valores em nome de quê?» Há tempos um dos gorilas, um jovem de aparência transaccionável, proclamava com muita calma de pessoa sensata e consciente que gostava de se sentir inserido num grupo e sobretudo de ser temido e admirado. Um urso ou um jacaré teriam a mesma opinião. E acalmados na nossa cólera e indignação, iríamos descendo de degrau em degrau até à nascente de toda a desordem do Mundo e que é já quase ridículo nomear.
 conta-corrente - nova série I (1989), p. 68 e s.

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