quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Rapazes na praia (1898)


Autor: Max Liebermann
Localização: Neue Pinakothek. Munich

CARNETS II

     Roman. Quand la soupe du soir tardait, c'est que le lendemain était un matin d'exécution.
*
     V. Ocampo va à Buckingham Palace. À l'entrée le garde lui demande où elle va. « Voir la reine. » - « Passez. » Le suisse ( ? ). Id. « Passez. » Les appartements de la reine. « Prenez l'ascenseur. » Etc. Elle est reçue sans autre forme de procès.
*
     Nuremberg. 60 000 cadavres sous les décombres. Défense de boire l'eau. Mais on n'a pas envie de s'y baigner non plus. C'est l'eau de la Morgue. Au-dessus de la pourriture le procès.
     Sur les abat-jour en peau humaine on aperçoit une très ancienne danseuse tatouée entre les deux mamelles.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Guillaume Morlaye - Gaillarde du Premier Livre

29 de Agosto

Naoto Kan renuncia como primeiro-ministro do Japão.

• Sabia que as aranhas não são insetos?

• 1966 - Os Beatles fazem seu último show, em San Francisco.

• A 29 de Agosto [?] de 1499, o rei D. Manuel I recebe, em Lisboa, o navegador português Vasco da Gama, de regresso da sua primeira viagem marítima à Índia.

O CALHAMBEQUE


As voltas que o mundo dá... As voltas que eu hoje dei em Montalegre em busca dum lugarzinho onde estacionar o carro…
Antes tivesse ficado cm casa, ou ido a pé, como antigamente.
Comecei a romper cardas de socos pela Rua Direita há uns bons setenta anos. Nesses prístinos e áureos tempos do arroz de pataco e das estrumeiras e dos porcos na rua, não se via um automóvel em Montalegre. Era terra de burros, salvo seja. Os carros eram a excepção. Havia o Ford do Dr. António, um calça arregaçada de raios de metal nas rodas, como as bicicletas, o Peugeot, ou coisa que o valha, do Dr. Landeiro, um dois lugares cuja traseira lembrava a dum pato pintado de preto, três ou quatro chanfalhos de carga, num dos quais, o do Pascoal, homem da Rosária, eu me estreei como passageiro numa viagem nocturna e inolvidável de Gralhós às Casas Novas.
Lembro-me também dum calhambeque do António Ferreiro, pelo menos era ele que o guiava, espécie de burro vadio em que os rapazes gostavam de cavalgar. Digo cavalgar porque o chaço não tinha tejadilho e os rapazes que não coubessem nos assentos iam a cavalo nos ladrais.
Disseram-me que, para o porem a trabalhar, tinham de lhe acender uma fogueira debaixo do motor. De início não acreditei. Mas depois de assistir a uma discussão entre vizinhos numa taberna, fiquei na dúvida, Dizia um deles:
– Tenho lá um touro que é o raminho. Seja a turrar, seja a cobrir, não há no concelho boi para ele.
– Cala-te para aí que o teu boi não presta para nada.
– Ai sim? Mas outro dia bem mo vieste pedir para a tua almalha?
– E sabes o que aconteceu? Chegou lá e nicles.
– Não acredito!
– Podes acreditar. Para que ele se resolvesse, tive de lhe aquecer os tomates com um fachuco de palha aceso.
Donde se infere que, para um bom arranque, não há como um bom aquecimento. Com os tomates quentes, o boi do meu vizinho atirava-se às vacas. Com o motor quente, o calhambeque do António Ferreiro atirava-se às estradas.
Mas aí é que os trabalhos começavam. O bólido não tinha buzina nem travões. Para darem sinal nas curvas, os rapazes, adrede munidos cada qual com sua tranca, batiam nas latas. Para travar nas descidas, fincavam os paus no macdame, à maneira de remos que ciam.
Mas nem sempre a manobra dava resultado. Um ano resolveram ir à Festa de S. Mateus a Fírvidas. Ao passarem em Gralhós, onde a estrada desce um pouco, atropelaram um porco e seguiram. Mas o Zé Cabra, dono da vítima, não esteve pelos ajustes:
– Deixa que à volta...
– À volta o quê? – retrucou-lhe o Joaquim da Venda.
– Obrigo-os a parar.
– Vê lá no que te metes. Olha que o carro não tem travões...
– Eu arranjo-lhos.
E o Zé Cabra, que explorava uma taberna, mobilizou os vizinhos, tudo gente nova e reinadia e disse-lhes que, se queriam beber um copo, fossem à eira, carregassem um carro de palha e lho trouxessem.
Os rapazes assim fizeram. Carregaram um carro de palha, muito trazeiro, e colocaram-no à esquina, rente com a valeta, de redacu para a estrada.
– E se escurece? Como é que nós vamos distinguir o automóvel? – lembrou o Pinhão.
– Eles têm de vir de dia, porque a capoeira não tem luzes – esclareceu o Terré.
– Lá vêm eles, catano.
Num ápice, os rapazes de Gralhós empurraram o carro da palha para o eixo da estrada e empinaram-no, de modo a que os da Vila se não enfiassem debaixo dele.
– Travai! – gritou o António Ferreiro, desligando o motor.
Os passageiros meteram trancas a fundo. Mas não puderam evitar que o calhambeque mergulhasse em cheio no palhuço. Saíram de lá como bichos-palheiros, a sacudir as praganas dos olhos e o sangue das ventas.
Apanharam tal susto que, durante muito tempo, não quiseram saber do carro para nada.
Quando o foram a pôr de novo a trabalhar, por mais fogueiras que lhe acendessem debaixo do motor, não pegou. Então o António Ferreiro pôs-lhe um burro à frente e fez dele uma carroça...
Bons tempos em que Montalegre era terra de burros...

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 156 e ss.)

domingo, 28 de agosto de 2011

Alonso Mudarra - Fantasi­a X

Miguel Torga – DIÁRIO (XIII)

S. Martinho de Anta, 28 de Agosto de 1979 – Cada vez mais propenso ao silêncio. Nele, ao menos, posso escutar o que a própria voz me não deixava ouvir. Passou o tempo em que toda a minha infelicidade se resolvia na felicidade de um verso.
p. 110

28 de Agosto

• 1511 - Os portugueses conquistam Malaca, na Malásia.
• 1481 - Rei D. Afonso V de Portugal (n. 1432).

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Mark Knopfler & Chet Atkins - Instrumental Medley

26 de Agosto

• A 26 de Agosto de 1595, morre, em Paris, D. António, Prior da Ordem do Crato. Era filho do Infante D. Luís e, como tal, neto do rei D. Manuel I. Após o desaparecimento, sem deixar descendência, do rei D. Sebastião na Batalha de Alcácer Quibir, foi pretendente ao trono de Portugal.

Miguel Torga – DIÁRIO (XIII)


S. Martinho de Anta, 26 de Agosto de 1979 – Domingo. Dez horas. O sino da torre começa a chamar os fiéis e, como que num reflexo condicionado ao nível de toda a aldeia, as casas vão-se esvaziando. De blusa lavada e camisa passada, mulheres e homens sobem a rua, atravessam o largo e perdem-se em direcção à igreja, numa rotina religiosa paralela às outras, de semear e colher. O mesmo Deus adorado com as mesmas orações vidas inteiras, sem a mínima inquietação, sem o mínimo estremecimento de dúvida. A fé, alheia a qualquer metafísica, pragmática, saudavelmente natural e optimista. Quando muito, um argumento subentendido, que já nem é preciso formular: se a vida eterna é melhor do que esta, vale a pena acreditar nela. E basta, embora pareça pouco. Em matéria assim melindrosa, nem Pascal foi muito mais longe...
p. 110

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Paco de Lucia & Al Di Meola - Mediterranean Sundance/Rio Ancho ( Reunion...

A MATANÇA DOS PORCOS

Neste fim-de-semana matei o porco. Ou antes: mandei-o matar. Eu vim apenas à desmancha. Ao vezo da assadura, das filhós de sangue, do sarrabulho, do fígado, da coiracha, dos rojões do redenho e da costela, do cozido com pernil, chouriço e salpicão do ano passado e, delícia das delícias, a tronchuda barrosã, nesta época do ano, coisa divina.
Outrora, a matança dos porcos era um espectáculo. Uma espécie de tourada, onde a praça era o pátio e, em vez de touros, se lidavam porcos.
Pegar um cevado de cento e cinquenta a duzentos quilos, não era para rapazes. Requeria habilidade e muito pulso. Se não, em vez de aplausos, vinham os apupos e as gargalhadas do público.
Hoje a matança perdeu toda a espectaculosidade. É feita por mercenários que chegam, deitam um aziar ao focinho do bicho e levam-no para onde querem. Perdeu-se o melhor da festa que era agarrar o porco à saída do covil.
Montava-se desta maneira o cenário. Dois, a que poderíamos chamar o porteiro e o rabejador, iam dentro. Os outros postavam-se fora em duas filas paralelas uma à outra e perpendiculares à porta, perna à frente perna atrás, mãos em garra, respiração suspensa, olho atento. Junto ao banco, mangas arregaçadas, faca de três palmos em punho, o sangrador.
Quando tivesse o porco bem seguro pela cauda, o rabejador fazia sinal ao porteiro. Este abria a porta de golpe. O porco investia.
Os cabeças de fila filavam-no pelas orelhas. Os restantes por ronde podiam.
A ovação aos pegadores media-se pela rapidez com que domavam a fera e a estendiam no banco. A do sangrador, pela rapidez com que o porco morria.
Se conseguissem uma boa marca, todos punham cara de páscoa. Se algum dos pegadores fosse cuspido, o porco se escapulisse ou demorasse a morrer, todos punham cara de enterro.
Num caso ou noutro, havia sempre gargalhadas, comentários, chistes.
Divertimento que era, a matança prestava-se a brincadeiras, algumas de mau gosto, como aconteceu comigo.
Andava eu nos estudos, pedi a meu pai que fizesse coincidir a matança dos porcos com as férias do Natal. Passei o primeiro período a sonhar com a matança. E, no dia, tirei o casaco e fiz questão de participar.
– Está quieto que ainda te aleijas – disse minha mãe.
– Qual aleijo, qual carapuça. Venham de lá os bichos.
E peguei, ali, como os homens. Quero dizer: como os aselhas.
Eram seis os cevados naquele ano. Faltava o último, por sinal um dos mais taludos.
– Agora, o do rabo, é o Banto – disse o meu tio António, Deus lhe perdoe (ou agradeça) as pirraças que me fez.
Lisonjeado com a promoção, fiz peito e entrei na corte. O porco, excitado com os gritos dos companheiros que o haviam precedido, farrancava bravo. Vi-me perdido para lhe deitar a unha. Foi preciso o meu Tio ir dentro e orientar a manobra:
– Isso mesmo. Agora faz um laço à volta da mão.
Dei duas voltas de rabo à mão esquerda, pus a direita por cima e disse:
– Podeis abrir.
Eles abriram... mas não pegaram...
O suino investiu comigo a reboque pátio fora, rua acima. E toda a malta atrás, a surriar-me, a rir-se, à espera que eu largasse ou me estendesse ao comprido. Mas eu não larguei nem me estendi.
O ti Carancho, que vinha descer a rua com um carro de lenha para aquecer o forno, viu aquilo e correu, aguilhada em varrimenta:
– Eh! Eh ! Lá p'ra trás! Ou julgavas que fugias à faca?
O porco deu meia volta, rua abaixo, pátio dentro, decerto no instinto de se refugiar no covil. Mas, de tanto correr e rebocar-me, vinha cansadinho de todo. Foi só tombá-lo no banco.
E só então eu consegui desfazer a laçada do rabo do porco à volta da mão, que sangrava e doía.
– Sim senhor!
– Homem de pulso!
– E de perna! Julguei que afocinhava, mas aguentou-se bem...
– Uma vantagem de que nem todos seriam capazes...
O que eles não sabiam, e que eu só hoje confesso, é que não larguei o cevado porque, nos apertos em que me vi, não fui capaz de desfazer o laço de rabo à volta da mão.
E assim nascem os heróis...
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 153 e ss.)

25 de Agosto

• A atmosfera de Júpiter é a maior atmosfera planetária do Sistema Solar.

• A 25 de Agosto de 1988, em Lisboa, eclodiu um violento incêndio que deixou o Chiado em ruínas.

• 2007 - Eduardo Prado Coelho, escritor e professor universitário português (n. 1944)

Miguel Torga – DIÁRIO (XIII)


S. Martinho de Anta, 25 de Agosto de 1979.
           
                           ECO

Desatei o nó cego do silêncio
E ouvi a minha voz.
Tão velha, tão cansada!
Como pode ser ela, assim desfigurada,
A que um dia se ergueu num desafio
E cantou a revolta,
A liberdade
E o amor?!
Grande senhor
Fantasioso,
O tempo dá e tira.
Afina
E desafina
A lira
Dos poetas.
E quando se aproxima
A barca de Caronte,
Num último capricho de os negar,
Reduz a fonte
À sede de a lembrar.
p. 109

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

24 de Agosto

• 2006 - A União Astronómica Internacional atribui a característica de planeta anão a Plutão, deixando de considerá-lo um planeta principal.
• Morreu, em 1666, D. Francisco Manuel de Melo.
O Factor Humano, de Graham Greene.
• A ler a máquina de fazer espanhóis, de valter hugo mãe.

The Lovers (1928) - René Magritte


Sonata piano nº 14 (1801), de Beethoven

Miguel Torga – DIÁRIO (XIII)


Garganta, 24 de Agosto de 1979 – Festa de S. Bartolomeu numa das povoações pastoris mais arcaicas da Montanha, celta até nos monumentos megalíticos que a cercam, berço de antepassados meus. Mas o santo não conseguiu estar à altura da missão de que a Igreja, na sua sabedoria profunda, o incumbiu. O espírito do mal, nome cristão da violência, que foi encarregado de manter submisso aos pés e que como tal figura na imagem entronizada no altar, desprende-se, em cada romaria, da argola do bem. E aí o temos nós à solta, terrífico, a obrigar a aldeia em peso a tingir os seus lajedos com sangue sacrificial. Sangue outrora certamente humano, mas agora de inocentes vítimas de substituição. Um ror de ovelhas e vitelas imoladas numa carnificina expiatória, depois ritualmente devoradas em todos os lares, transformados em santuários de exorcização. E o forasteiro que se recusa a entrar e a comungar no ágape idolátrico, mesmo que seja reconhecidamente, como eu, um parente longínquo do anfitrião, ofende-o de tal modo, e, através dele, à comunidade inteira, que passa no mesmo instante de amigo a inimigo, de bem-vindo a indesejado. Sem unanimidade de valores não há paz colectiva. Ninguém pode, pois, lavar as mãos do crime propiciatório. O próprio abade tem de esquecer momentaneamente os preceitos e paganizar a gula canónica, se quer que, durante o ano, aquelas almas bárbaras lhe escutem pacientemente as homilias. Mais atentas à voz obscura do passado do que à palavra catequética do presente, nenhuma pregação as faz esquecer as suas verdades primordiais. Só quem se lembra se identifica. O instinto de conservação sabe que a morte é perder a memória.
p. 107 e s.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Cogumelo

Mycena interrupta.jpg
Mycena interrupta, espécie de cogumelo encontrada na Austrália.

Miguel Torga – DIÁRIO (XIII)


S. João da Pesqueira, 23 de Agosto de 1979 – Olho mais uma vez de um dos seus altos mirantes este meu Doiro, único rio emblemático de Portugal, e a sucessão tumultuosa de montes que vai sulcando. E dou íntimas graças ao destino por me ter feito nascer num cenário assim, tão naturalmente grandioso e onde tão naturalmente me sinto poeta. Não há bardo sem palco próprio. O meu não podia ser outro. A minha voz é também uma levada barrenta de esperança que tenta rasgar e reflectir a majestosa e tormentosa orografia da vida.
p. 107

The Blue Room (1923)


Autor: Suzanne Valadon
Localização: Centro Georges Pompidou. Paris 

23 de Agosto

• Opositores de Muammar al-Gaddafi tomam a cidade de Trípoli, em plena guerra civil que ocorre no país.
• A apreender inglês: "Concord Hymn" by Ralph Waldo Emerson (poetry reading)

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Ragnarök

O portal norte da Igreja de madeira de Urnes do século XI tem sido interpretado como contendo representações de serpentes e dragões que representam o RagnarökNa mitologia nórdica, Ragnarök (nórdico antigo "destino final dos deuses") é uma série de eventos futuros, incluindo uma grande batalha anunciada para por fim resultar na morte de um número de figuras importantes (incluindo os deuses Odin, Thor, Týr, Freyr, Heimdallr e Loki), a ocorrência de vários desastres naturais e a submersão subsequente do mundo em água. Depois, o mundo vai ressurgir de novo e fértil, os sobreviventes e os deuses renascidos se reunirão e o mundo será repovoado por dois sobreviventes humanos. Ragnarök é um evento importante na cânone nórdica e tem sido o tema de discurso acadêmico e teórico.
O Ragnarök é o tema de muitos discursos e controvérsias para determinar a verdadeira origem da história escrita mais tarde, após a cristianização do mundo nórdico. Muitos especialistas argumentam que os textos fazem referências ao fim do mundo e são inspirados em histórias bíblicas do Juízo Final, especialmente o Apocalipse e o fim do mundo do Milenarismo, e do Eclesiastes. Há também algumas comparações com outras histórias das mitologias indo-europeias, o que poderia indicar uma origem comum de mitos ou de influências pagãs externas. Para muitos estudiosos, essas influências emprestadas de outras culturas e reescritas por clérigos cristãos são erroneamente atribuídas à mitologia viking, e têm distorcido o conhecimento que temos da fé escandinava. (leia mais...)

Rare Guitar Video: Andreas Segovia plays Guardame Las Vacas by Luis de N...

domingo, 21 de agosto de 2011

Luys de Narváez - "Baxa de Contrapunto & 22 Diferencias de Conde Claros"

As religiões orientais

O contexto a partir das origens
Expressão moderna que se refere a um conjunto de cultos, originários do Oriente, e que se difundiram por Roma, e pelo Império durante os primeiros séculos da era cristã.

Os cultos orientais, mesmo os de origem muito antiga, tiveram uma forma e um significado novos no momento em que, a partir do século I, se difundiram pela bacia do Mediterrâneo. Em muitos casos, adoptaram a feição de cultos com mistérios e rituais de iniciação, e a sua mensagem incidia sobre a salvação individual para os iniciados e a promessa de uma vida feliz após a morte. Caracterizavam-se geralmente pela complexidade da sua mitologia e dos seus rituais, frequentemente centrados sobre a morte e a ressurreição da sua principal divindade como é o caso do Adónis fenício e do Osíris egípcio. Mesmo quando se difundiram por todo o Império, os cultos orientais podiam, contudo, ser reconhecidos em função da sua procedência: cultos de Osíris e de Ísis, originários do Egipto; culto de Mitras, originário da Pérsia; e o culto de Cibele, originário da Frígia. Os ritos em honra de Osíris fundiram-se com os que se praticavam para a sua irmã-esposa Ísis: à possibilidade de prosseguir a vida no além oferecida por Ísis vieram associar-se outros traços que transformaram a sua figura numa divindade cósmica dispensadora de todos os bens, asseguradora e salvadora. Introduzido pela primeira vez em Roma em 204 a.C., I e logo rejeitado, o culto de Cibele, a Grande Mãe frígia, permaneceu vivo durante toda a época imperial; era caracterizado pelo taurobóleo (sacrifício de um touro) e por ritos violentos praticados pelos seus sacerdotes, como o da auto-castração.

Difundido principalmente entre as legiões romanas, baseia-se no culto ao deus persa Mitras, adorado no Ocidente sob o nome Sol Mitras. Tratava-se de um culto esotérico reservado exclusivamente aos homens, cujas celebrações tinham lugar num pequeno templo, o mithraeum («santuário do culto mitríaco»), geralmente uma gruta ou um espaço subterrâneo. A iniciação previa uma hierarquia de sete degraus, cada um deles colocado sob a protecção de um astro. O Mitraísmo conheceu uma considerável difusão, atestada pelas descobertas arqueológicas e pela epigrafia.

A grandeza e a pujança de Ísis são celebradas em inúmeros hinos compostos para cantar a suas virtudes de curandeira e de salvadora. Os Antigos tinham já tendência a ver naquela Ísis com mil nomes uma única divindade, capaz de proteger e dar assistência a quem a invocasse.
O culto de Ísis, que se contava entre os mais estendidos pela bacia do Mediterrâneo, ilustra bem duas características fundamentais das religiões orientais: as suas profundas raízes nas tradições religiosas mais antigas – neste caso, a história milenar do Egipto – que voltam a ter uma vida nova, e o fascínio que o Oriente, carregado de mistério e detentor de saberes e sabedoria desconhecidos, exerceu ao longo da época imperial.

* Mithra taurochtone, cópia de um original de Lísipo, sécs. III-IV
   Nápoles, Museu Arqueológico Nacional
   Karanis (Egipto)
Giovanni Filoramo, Origem e difusão do Cristianismo

21 de Agosto

• A 21 de Agosto de 1986, faleceu o poeta português Alexandre O'Neill.

sábado, 20 de agosto de 2011

20 de Agosto

• Sabia que o cérebro de Albert Einstein foi removido e preservado após sua morte, sendo usado posteriormente em pesquisas que tentam determinar a correlação entre neuroanatomia e inteligência?

Gardame las vacas - NARVAEZ

FIÉIS DEFUNTOS


Graves filósofos têm demonstrado a influência dos astros no comportamento do homem. Eu, que não sou grave nem filósofo, descobri a influência do homem no comportamento dos astros.
Digo isto porque hoje, dia dos Fiéis Defuntos, chove, se não copiosa, pelo menos insistentemente.
Não sou grande fouce em silogismos. Mas a priori, se a natureza chora, é porque está triste. E, se está triste, é porque tem saudades. Saudades daqueles a quem primeiro deu a vida e depois a morte. Por isso se diz que «nascer e morrer são fenómenos naturais».
Apesar da chuva, fiz uma longa visita ao cemitério. Um profundo e doloroso mergulho no passado. Quantos dos que eu amei, ou com quem simplesmente convivi, ali «descansam em paz...» A todos avoquei à minha saudosa lembrança. A todos dirigi uma breve e comovida saudação.
– Dizei-me, entes queridos. Afinal, que se passa do outro lado?
Nenhum deles me respondeu. Nem sequer a minha tia catequista, outrora tão segura daquilo que afirmava. Querida tia: afinal sempre recebeste na outra o prémio dos sacrifícios que fizeste nesta vida? Da virgindade, de que tanto te orgulhavas? Das quaresmas jejuadas a pão e água? Das longas horas de joelhos ou de terço na mão? Dos longos anos de catequista, de «Filha de Maria», de zeladora de altares? Afinal como é? O Sedielos sempre caiu «vestido e calçado no Inferno», como tu lhe vaticinavas, ou conseguiu salvar-se?
– Vai-te embora incréu, que já te não enxergo bem...
– Claro que não enxergas, querida tia. Nisso acredito eu. Mas não te zangues nem me dês com o fuso na cabeça, como tantas vezes fizeste enquanto me ensinavas a doutrina. Eu vou.
E retirei-me a pensar na minha tia catequista. Os terrores com que ela azedou a doçura da minha infância. Para ela, não havia escapatória possível. Ou penitência nesta vida, ou fogo eterno na outra.
À força de ouvir a minha tia a falar de penitência e morte, materializei estes dois conceitos em dois trastes que, ao tempo, adornavam a capela da minha aldeia: um esquife às cavalitas dum confessionário.
O esquife era do mais simples que imaginar se possa: quatro paus aparelhados em forma de catre. Mas o confessionário, com a sua rija estrutura de carvalho, base sólida, cornija trabalhada, meia porta com bambinela de veludo roxo e grade lateral, impunha respeito.
Lembro-me vagamente do último vizinho a ir para o cemitério de esquife. E guardo comigo a impressão de que um morto num esquife tem muito mais dignidade do que numa urna. Se fossem todos da minha ideia, repunha-se o uso do esquife.
Primeiro, acabava a vergonhosa especulação, para não dizer roubalheira, das funerárias. Segundo, a soberba rivalidade entre famílias, a ver qual delas arranja melhor «casaco de pau» para a última viajem do seu defunto. Se, como por aí se diz, «no nascimento e na morte, todos somos iguais», íamos todos igualitariamente de esquife. Aqui fica a proposta.
A ela ser aceite, os de Peireses tinham de arranjar outro esquife. Que o da minha infância, por falta de uso, não resistiu ao caruncho e foi parar à fogueira. Ficou apenas o confessionário, coisa sólida e soturna, destinada a coisas íntimas e sórdidas.
Como não tenho residência permanente em Peireses, na prática, só vou à capela em dias de funeral. E foi num desses dias que dei pela falta do confessionário.
– Agora as velhas já se não confessam? – perguntei.
– Confessam, porque não?
– O confessionário desapareceu...
– Agora as mulheres confessam-se à maneira dos homens: ajoelham-se ao pés do padre e despejam o saco.
– Ainda bem que a «igualdade entre os sexos» vai chegando à igreja. Mas que fizeram ao confessionário?
– Leiloaram-no. Creio que o arrematou o Sedielos.
Dias após este diálogo em família, entra-nos de rompante a nossa tia catequista porta dentro. Vinha esbaforida, congestionada, a benzer-se com ambas as mãos.
– Que lhe aconteceu, tia?
– Deixai-me que eu nem venho em mim. Acabou-se o respeito, o temor de Deus e da santa religião. Estamos na fim do mundo.
– Porquê, tia?
– Sabeis o que o Sedielos, esse hereje, fez ao santo confessionário de Deus?
– Que eu saiba, pô-lo na horta.
– E sabes tu para quê?
– Se resguardar da chuva, talvez.
– Para se resguardar da chuva, dizes bem. E sabes tu quando? Quando vaI a campo... Vede só que pecado, que profanação... Transformar o santo confessionário de Deus numa cagadeira... Aquele homem está vestido e calçado no Inferno...
– Discordo. O Sedielos limitou-se a manter na horta as funções para que o confessionário foi criado. Na capela aliviava a má consciência dos pecadores. Na horta alivia outra coisa...
– Cala-te pagão. Mal empregado o tempo que passei a ensinar-te a doutrina.
Por falar em tempo. Continua a chover. E que bem me está a saber a lareira.

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 150 e ss.)

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Luys Milán - Pavana 6

Miguel Torga – DIÁRIO (XIII)


Régua, 19 de Agosto de 1979 – Conheço os meus lugares comuns e, naturalmente, evito repetir-me. Mas não tenho medo de correr esse risco sempre que se trata de ser fiel às raízes e de as exaltar. Como escritor, prefiro fazê-lo no papel. Mas não hesito em expor-me aos quatro ventos da oralidade se porventura esse devotado amor a tanto me obriga. Foi o que aconteceu hoje aqui.

«Quando fui abordado para falar sobre o homem duriense no encerramento desta feira, fiquei indeciso. Tudo o que em mim há de esquivo, de informal e de desencantado mandava-me recusar. Outras razões ainda mais profundas, porém, teimavam que sim, que aceitasse o convite. O tema corria-me nas veias. E não é impunemente que se faz orelhas moucas aos argumentos do sangue. Filho, neto, bisneto e tetraneto de obscuros cavadores, carreiros e almocreves, que séculos a fio saibraram, sulcaram e palmilharam as encostas do Doiro, criado a ouvir a crónica deles e a de quantos os acompanhavam na via-sacra – e Deus sabe até que ponto ela era dolorosa –, atento, por conta própria, a um destino que sempre me pareceu exemplar no seu dramatismo, como poderia eu escusar-me a depor no tribunal severo do presente, pondo no meu testemunho letrado, o único a que me obriguei na vida, todo o calor e sinceridade de que sou capaz? Não tinha na mão nenhum lenitivo para suavizar o sofrimento que as palavras só podem denunciar, nenhum epíteto para acrescentar à nobreza de um nome que se basta na sua grafia. Mas tinha a ocasião de celebrar publicamente um Sísifo ao natural, que, ao invés do mitológico, símbolo infausto do eterno desespero, fez da esperança a justificação do seu martírio. E aqui estou a meditar em voz alta na história trágico-telúrica desse herói singular, escrita nas fragas com a tinta do suor. Herói modesto, despretensioso e proteico que, mal comido, mal bebido e mal agasalhado, aos rigores de um inverno de gelo e de um verão de fornalha, surriba, planta, enxerta, tesoura, poda, ergue, enxofra, sulfata, vindima, pisa e trasfega num afã sem descanso. Protagonista de um drama milenário, que já nos tempos de Roma representava, o seu palco é largo e majestoso. Basta olhá-lo do miradoiro de S. Brás, de S. Domingos da Queimada, de S. Leonardo de Galafura, do alto da quinta das Carvalhas, de Vilarinho de Cotas ou de S. Salvador do Mundo. Só quem não tiver sensibilidade e humanidade dentro de si é que ficará indiferente à beleza de panoramas sem comparação possível e à grandeza de um esforço incansável e criativo que os cultiva e arquitecta jardins suspensos na mais agreste paisagem de Portugal.
A hipocrisia capitalista, ardilosa como sempre tenta de há muito desfigurar o perfil verdadeiro desse titã hirsuto e esfarrapado que a todas as horas se desmede. Nos cartazes folclóricos, que cobrem as paredes turísticas e comerciais, os vindimeiros atestados levitam a caminho das dornas, as croças de colmo aquecem o corpo, não há sono nem cansaço nas lagaradas, ninguém morre abafado dentro dos tonéis, a espadela do barco rabelo é um leme sem peso, as cardenhas têm colchões de sumaúma, o magro caldo de feijões e abóbora rescende, as jornas são generosas. E quem neles bebe o cálice de vinho fino, que mesmo pintado apetece, julga que o néctar doirado mana das cepas por obra e graça da mãe natureza. Mas a verdade é bem outra, e a própria realidade se encarrega de desmascarar a mistificação. É ela, na sua crueza, que grita aos quatro ventos que o milagre é feito por quem, na fome e na miséria, mal a filoxera acabava de o prostrar se ergueu de ferro e pá na mão a repor os mortórios, mal a trovoada esbarronda a parede do socalco a levanta de novo, mal uma queima destrói a novidade começa a granjear a vindoira. Sem essa pertinácia obstinada, que a força dos elementos não vence nem a incompreensão dos poderes desanima, secariam as cubas nos armazéns de Gaia.
O Doiro necessita de ser finalmente olhado pela nação como o seu Olimpo sagrado, o chão bendito que produz a única riqueza de que somos senhores exclusivos: o Porto, que o mundo assim conhece e saboreia e imita em todas as latitudes sem nunca igualar. Mas esse carinho pátrio tem de começar pelo obreiro do prodígio, pelo oficiante de mãos calosas que espreme os xistos até os fazer ressumar. É ele, nunca presente nos salões dos congressos, nunca farto nos banquetes oficiais nunca tido nem achado nas reformas e nos decretos, que deve ser chamado à ribalta para expor as suas necessidades e formular as suas queixas. Para desdobrar diante dos olhos da justiça o sudário da sua crucificação. Porque se nas Santas Escrituras tudo começa pelo Verbo, no livro de pedrada nossa região bem amada a lição é outra. Aqui, no princípio era o homem. O homem duriense».

DIÁRIO (XIII), p. 103 e ss.

19 de Agosto

• 293 a.C. - O mais antigo templo romano dedicado a Vénus é fundado no monte Esquilino.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

John Dowland - Melancholy Galliard

Miguel Torga – DIÁRIO (XIII)


S. Martinho de Anta, 18 de Agosto de 1979 – Mal cheguei, minha irmã, depois do relato das mazelas, alargou o rol das notícias e pôs-se a falar da morte recente de um graúdo local que andou connosco na escola. No seu estilo imaginativo, capaz de sugerir numa metáfora um começo de primavera (– Já parecem bem as camisas dos homens a reluzir na veiga… –), foi contando. E, quando dei por mim, estava a assistir compungido a toda a duração da tragédia, desde a hora fatídica do passamento até à solenidade das exéquias. Em dado momento a narradora desmediu-se:
– E olha tu que ia mais bonito do que era ao natural...
Com duas lágrimas sinceras dá por acabada a descrição. Recolhe apenas a moral da história:
– Qualquer dia...
Sem querer averiguar se insinuava a proximidade do seu próprio fim ou do meu, limitei-me a uma breve meditação contrita. Sempre lhe censurei asperamente a curiosidade insaciável, o vício inveterado de conhecer em todas as minudências as novidades da terra. E só agora me apercebia da injustiça cometida. Sem outras solicitações mentais, anos a fio à janela da solidão e observadora realmente excepcional de tudo onde punha os olhos, a única maneira de dar largas aos seus dons naturais era exercê-los naquele apertado espaço de vida, devassar até ao tutano a minguada realidade que a cercava. E o certo é que, nesse particular, não tinha rival. Nem o padre a batia, apesar do confessionário. Com a vantagem de o relato depois feito dos acontecimentos ser uma obra-prima de finura e pitoresco. Além disso; por quem Deus lhe mandava a verdade! Por mim! Bem vistas as coisas, que diferença havia entre nós dois? Que sou eu, afinal, senão um impenitente bisbilhoteiro do mundo, sempre confrontado com a existência das coisas e dos seres?
DIÁRIO (XIII), p. 101 e ss.

18 de Agosto

• 1908 - O escritor Trindade Coelho, autor de Os Meus Amores (n. 1861).
• 1850 - Honoré de Balzac, escritor francês (n. 1799).
• 1842 - João Domingos Bomtempo, compositor português (n. 1842).

terça-feira, 16 de agosto de 2011

16 de Agosto

• 1867 - António Nobre, poeta português (m. 1900).
• No ano de 1900, morreu, em Neuilly, o escritor Eça de Queirós, após prolongada doença. No mês de Setembro, o corpo do escritor foi trasladado para o cemitério do Alto de S. João, em Lisboa.

Laverca

Skylark 2, Lake District, England - June 2009.jpg
Laverca (Alauda arvensis).

Narciso Yepes - Recuerdos de la Alhambra


Francisco TÁRREGA (1852-1909)
RECUERDOS DE LA ALHAMBRA
Hommage à l'éminent artiste Alfed Cottin
Révision de Jean-François Delcam

OS GAIOS

Pelo-me por uma sestinha.
Após o almoço, bem ou mal regado, nada para mim melhor que uma boa soneca no silêncio da casa – neste silêncio abençoado das nossas aldeias.
Hoje levantei-me bem disposto. Pronto para uma grande caminhada.
Saí em direcção ao norte, o que, em Peireses, significa em direcção ao Crasto, no enfiamento da Estrela Polar.
Estava calor, as searas quietas, as aves amodorradas à sombra das árvores.
Subi uma veiga de centeios, nesta época do ano a pedirem fouce, e ataquei uma encosta de mato maninho.
A minha intenção era ir até Fontelixandre, onde tive a alegria de ver, pela primeira vez, uma raposa aos grilos. Há que séculos isso vai.
Mas a encosta empina e o sol da tarde pesava.
A pedido das pernas, desisti de Fontelixandre e refugiei-me numa touça de carvalhos seculares.
Fui recebido pelo mau humor dos gaios:
– Gah, gah, gah!
– Cheira-vos a pólvora, gandaieiros?
– Na gandaia andarás tu. Nós ganhamos honradamente a nossa vida.
– Como pode isso ser, se vós, segundo os Evangelhos, não semeais nem colheis?
– Lérias. Quem nos faz o ninho? Quem nos choca os ovos? Quem nos cria os filhos? Quem os ensina a voar? Quem nos veste?
– Olha a grande coisa. Andais sempre com esse capote de pobre, mosqueado de remendos.
– E tu, velho cairrão que trazes as calças rotas de andares ao carvão?
– Oh, insolentes?
E agachei-me a uma pedra.
– Ora atira! Atreve-te!
– Se calhar, bicais-me?
– Põe-te a andar, velho cairrão, que já nos estás a assustar os filhotes.
– E onde estão eles?
– Isso querias tu saber.
– Se calhar como-os.
– Não seria a primeira vez. Sabes como ficaste conhecido nas crónicas dos nossos avoengos? O Papa Gaios.
– Papagaio? Essa tem graça. Não sou tão papagueador como isso.
– Deixa-te de trocadilhos e desaparece. Vá! Gah! Rah! Gai!
– Vou porque quero, não por vos ter medo. Ouviste, praguentos?
E voltei costas direito a um portal onde outrora eu sabia existir um caminho.
Esbarrei num tapume compacto de rascalhos, giestas, urzes, silvas.
Fui examinar a parede, dum lado e doutro.
No meu tempo de pastor, as paredes estavam sempre impecáveis. Agora, tudo no chão.
Hoje, para arrebater o gado, os lavradores limitam-se a lançar uns cordéis coloridos de inteira em inteira ou de árvore em árvare. As vacas tocam nos cordéis e recuam.
Para os humanos, os cordéis não são grande obstáculo.
Pior é o arame farpado, essa praga dos tempos modernos. Se um homem se descuida, deixa lá os fundilhos das calças, e, quando o Diabo está atrás da porta, retalhos da pele das nádegas.
Lá estava o maldito arame farpado.
Retrocedi, a examinar o tapume.
E foi então que reparei que a um canto, rente com o tranqueiro, havia uma espécie de túnel.
– Ora aí está – disse para comigo – Faço como os soldados em treino. Deito-me de ventre e rastejo.
Dito e feito, pus-me de gatas e enfiei a cabeça.
Primeiro, senti uma coisa fria na orelha. De seguida, qualquer coisa a apertar-me o gasganete.
Quis recuar. Tarde demais. Estava preso pelo pescoço.
Fui com as mãos, consegui libertar-me do cabresto, retroceder.
E, de barriga por terra, examinei atentamente a engenhoca: um arame de aço solidamente preso a um tronco por uma das extremidades e, na outra, arteiramente dependurada, uma ansa de nó corredio.
Sim senhor. Tinha ouvido dizer muita vez que este ou aquele vizinho apanhara um coelho, uma lebre, uma raposa, um porco-bravo, até um lobo, ou um veado, no laço. Mas nunca o tinha visto.
– Se alguém sabe que caí num laço de caçador furtivo, vai ser uma risota – murmurei.
Para já, os gaios batiam as asas e esvoaçavam de carvalho em carvalho numa grande galhofa:
– Ah, ah, ah! Gah, gah, gah!
Ameacei-os com a bengala:
– Atrevidos, insolentes, antipáticos! Nunca simpatizei convosco. Doravante, nem pintados...
Isto disse eu, num momento de mau humor.
No fundo, gosto de todas as aves que dão vida e alegria à nossa terra.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 147 e ss.)

domingo, 14 de agosto de 2011

J.-F. Delcamp - Viviane

14 de Agosto

• Em 1385, ocorreu a Batalha de Aljubarrota entre tropas portuguesas comandadas por João I de Portugal e castelhanas lideradas por João I de Castela, terminando com a Crise de 1383-1385 em Portugal.
  João I de Portugal, que havia nascido em 1357, faleceu neste dia em 1433.

Albufeira, 14 de Agosto de 1979


Não sei que vento o trouxe de terras estranhas. Sei que há muito aportou aqui e que, afortunadamente, criou raízes. Como que a dar-lhes alimento, estuda as várias manifestações da nossa cultura popular, desde a música às danças, aos adágios, à culinária, às próprias mezinhas com que nos curamos. Foi desses tesouros – alguns definitivamente salvos pelo seu carinho – que, de resto, falámos largo tempo, ele a discretear e eu a sentir, emocionado, que tinha diante de mim um livro aberto da pátria. O café era uma Babel. Idiomas de todos os continentes cruzavam-se em todas as direcções. E, na minha aflição nativa, nada me podia dar mais consolo do que encontrar um paroxismo de lusitanidade naquela natureza em boa hora transplantada. Tive a impressão súbita de que o Algarve voltava a ser português.
DIÁRIO (XIII), p. 101

sábado, 13 de agosto de 2011

13 de Agosto

• São de lembrar, o político cubano Fidel Castro, nascido a 13 de Agosto de 1926 em Birán, Holguín.
   E o Marechal António de Spínola, falecido em 1996.

A religião greco-romana

Um grande número de tradições religiosas polimorfas coexistia no Império Romano aquando do nascimento e difusão do Cristianismo (sécs. I-IV).

O mundo religioso da bacia do Mediterrâneo onde se difundiu a mensagem cristã caracterizava-se pelo pluralismo e pela coexistência de cultos antigos e novos em concorrência uns com os outros. Qualquer país subordinado a Roma podia assim, graças à política de tolerância praticada pelo governo imperial, conservar as suas tradições religiosas e os seus cultos ancestrais. Os começos da era cristã viram nascer e afirmarem-se simultaneamente cultos novos que foram denominados religiões orientais. A religião romana, ou melhor dizendo a dos conquistadores e dominadores romanos, soube inserir-se sagazmente neste mosaico. O Império alargou-se, e o édito de Caracalla (188-217) concedeu a cidadania romana a todos os seus habitantes; foi neste contexto que a actividade religiosa destes se desenvolveu num duplo registo: paralelamente às formas de culto ancestrais e privadas, praticava-se uma religião pública, civil e política, centrada na oferenda de sacrifícios de sangue ao génio do imperador para favorecer a pax deorum e a saúde do Império. Esta situação apresenta traços comuns com a da religião greco-romana, a começar pelo politeísmo, que implicava a existência de um panteão mais ou menos harmonioso de diferentes divindades dirigidas por um Deus supremo, o Zeus dos Gregos e o Júpiter dos Romanos. A religião greco-romana tinha conservado numerosas práticas tradicionais  da divinização e dos oráculos até aos rituais mágicos , que permaneceram com vigor até ao triunfo do Cristianismo, que viria combatê-los com dureza.

Notas complementares
A confrontação e a coexistência de diferentes panteões religiosos durante os primeiros séculos da era cristã foram favorecidos pela flexibilidade do sistema politeísta, que permitia o que se denominava de a interpretatio graeca ou romana: os novos deuses eram considerados manifestações de divindades já conhecidas e devido a isso eram venerados e incluídos no panteão mais lato. Além disso, chegou a aparecer uma tendência monoteísta, que privilegiava, sobre os restantes deuses, uma divindade monoteísta.

Graças à interpretatio romana, Jupiter Dolichenus (ou de Dolique), em princípio um deus hitita-hurrita da fertilidade e do trovão, foi venerado na época imperial pelos escravos, pelos soldados e pelos comerciantes de origem oriental, e tornou-se muito popular nas cidades e vilas com forte presença militar. Esta divindade é habitualmente representada por um soldado romano, em pé sobre um touro e que leva na mão um raio e um machado de dois gumes. 
Este culto é um exemplo típico do sincretismo religioso do Império Romano. Os Romanos respeitaram as múltiplas tradições religiosas dos povos submetidos que compunham o seu vasto império, sempre que não representassem uma ameaça para a integridade política do Estado e sempre que os seus devotos se mostrassem leais ao imperador e lhe rendessem devidamente o preito necessário. O politeísmo favorecia, além da adesão a diversas religiões, a possibilidade de identificar os próprios deuses locais com as divindades características da potência dominante.


Cristianismo - Origens e difusão - O contexto a partir das origens

Leitura de Giovanni FiloramoOrigem e difusão do Cristianismo
Ver os números anteriores: 123 e 4