quinta-feira, 14 de abril de 2011

Vergílio Ferreira (14 de Abril de 1989)

14 - Abril (sexta). Recebi ontem um convite para um colóquio de vários dias na Gulbenkian sobre «O sagrado e as cultufas». É tema insólito nestas festas mundanas. E estranhamente não fui convidado para o mundanismo. Estou grato por isso e encavacado por isso. Grato, porque me dispensaram da maçada de dizer que não. E intrigado porque. Quem é que neste país, há mais de trinta anos, vem falando do sagrado e levando pedradas por isso? Já em Do Mundo Original de '57. E em Invocação. E em supostas milhentas referências na Conta-Corrente. Li o Rudolfo Otto há imenso tempo e perdi-o na feira da ladra dos meus livros. E a propósito desse livro, que não tenho para saber, dizia eu que o autor fazia uma certa confusão entre «sagrado» e «religioso». Pelos temas dos oradores do colóquio julgo que a confusão continua. A Guida do meu Cântico Final já dizia que «os deuses não são divinos». A religião é o sofá em que se repousa da inquietação. O sagrado interroga, a religião adianta-se para responder. Mas não era para ali chamada. O sagrado não existe na religião mas na arte. Na religião, só quando a crença é retomada desde onde o não é ainda – para dificilmente se manter do lado de cá. Bom. O sagrado. Já anda pela Gulbenkian. Quando sair de lá, já está profano. De todo o modo, fui eu, ó mundanos e pedantes e insensatos, fui eu que vos sacralizei a todos. E vós sois disso apenas os sacristãos (ou – ães? A ver. Mas deve ser sacristãos porque vem de cristianus anu-ão. Mas nisto de uso, nunca fiando.)
conta-corrente - nova série I (1989), p. 67 e s.

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