quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Coimbra, 28 de Fevereiro de 1981

Há ocasiões em que os sentimentos valem como argumentos. E ca1ei-o assim: sabia perfeitamente que a liberdade não é a mola real do homem. Que outras forças mais poderosas o solicitam a todo o instante. O fanatismo religioso, os mecanismos económicos ou as paixões políticas, por exemplo. Que não ignorava a que extremos de servidão podem chegar nações inteiras, cegas pela fé ou rendidas a qualquer ideologia. Que a ideia de que a liberdade é uma força incoercível tem muito de romântico. Simplesmente acontecia que tal romantismo, mesmo exautorado, nunca deixou de fazer frente à opressão, até quando tudo parece perdido. E é essa vontade insofrível de quebrar todas as cadeias que desde rapaz sinto também no âmago da alma, embora tristemente convencido pela dura experiência da vida que este baixo mundo de ilusões não passa de uma redonda clausura. 
Miguel Torga

28 de Fevereiro de 1978


Tudo corre o pior que se pode esperar neste melhor dos mundos possíveis! (s/d)
Alguém propôs – a brincar, como é de ver – para cartaz do dia 10 de Junho (Dia das Comunidades), a imagem do velho Portugal, de armadura amolgada, viseira caída e espada torta, com a mão estendida a pedir esmola a estranhos, aos emigrantes e turistas, que não há muito tratávamos de imperialistas, fascistas e parasitas. Com o dístico seguinte: Dia Nacional da Mendicância.
Como tu elogias igualmente toda a gente – todos os teus conhecidos são génios, sábios, elegantes, honradíssimos, etc.! –, elogio na tua boca torna-se impropério!
«Personne ne m’aime!», chorava-se há longos anos esta personagem de Elsa Triolet. Mas, ó desgraçada!, não sabes tu que quem diz amar-te, pretende, deseja ou sonha apenas apoderar-se de ti, e dominar-te de alma e corpo?!
JRM 

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

27 – Fevereiro (terça). [1990]

Abala-me sempre de emoção encantada ouvir uma balada de Coimbra (ou um «fado», como se diz e como não gosto, por ter para mim uma ressonância carrasqueira – de «carrascão»). Mas nada há que mais me arrepie e confranja do que ouvir falar de Coimbra e dos «tempos da mocidade» e do mais que constitui a retórica coimbrã. Aliás, para se medir a distância que vai de uma coisa a outra, basta reparar na letra de tais «fados». Porque de um modo geral é detestável. As pessoas que me sabem doente de Coimbra incitam-me às vezes a assistir a espectáculos de antigos estudantes, saudosas elas – as que assistem de uma realidade que é um irreal de que não fazem ideia. E eu às vezes lá vou. Ouço comovido as guitarradas e um ou outro cantor – de um modo geral mau. Porque a balada de Coimbra é como o violino – comovente ou detestável se bem ou mal cantado ou tocado. Óptimo. Mas que queria eu dizer? O que eu queria dizer é que da emoção sentida ao dizê-la vai a distância enorme da arte. É o caso vulgar de ouvirmos dizer «a minha vida dava um romance». Como se um romance começasse na «vida» seja de quem for. Porque começa justamente não no romance que dava, mas no romance que for. Falar (ou escrever) sobre uma emoção não é dala, se a arte a não transfigurar no irreal que ela é. O Almada Negreiros talvez tivesse razão em falar dos «palermas de Coimbra» – ressalvando que palerma era ele também. Um coimbrão investe-se normalmente de uma legenda que é do encantamento de quem por lá passou, mas esquece-se de que tal legenda tem de ser recriada na sua irrealidade para que os outros a aceitem – mesmo os que a viveram. Coimbra é a máxima sublimação de um passado, porque esse passado é o da juventude. Mas um passado não existe senão quando deixou de existir – não quando existiu, justamente porque nunca existiu. Se uma fada nos reconstituísse esse passado tal como existiu, sofríamos uma tremenda decepção. Para que a não sofrêssemos seria necessário realizar-se o paradoxo de existir como existiu e como agora o transfiguramos, com o que foi e o que é no nosso encantamento de agora. Ora quem fala habitualmente de Coimbra em termos saudosos, fala dela como foi e não como a transfiguramos no que não podia nunca ser. E então o que sobra disso tudo é um ridículo execrável e insuportável.
Lembrou-me isto ao ouvir a gravação de um desses espectáculos evocativos que me ofereceu o meu amigo Costa Santos (Tito), que foi – e é – um belo cantor da balada coimbrã. Enquanto se ouvem as guitarradas e (alguns) fados, a música emociona-me. Mas quando o apresentador se põe a palrar do Penedo e do luar e da Lapa e do Mondego e todo o mais instrumental da clássica evocação, corto-lhe o pio para me não nausear e apagar a emoção que me tomou.
Senhores promotores de uma reinvenção do passado: cantem e guitarreiem, mas calem-se no mais, porque esse mais não é para se dizer em linguagem pedestre, mas na da arte, de que vocês não fazem ideia o que seja.
*
Há dias o semanário O Jornal trazia o retrato do Carlos de Oliveira numa fila de outros retratos já não sei porque enfileirados e dizia dele que era hoje um autor «quase esquecido». Imagine-se. Ele que foi o senhor da praça literária. Governava o mundo das letras do seu poiso no Montecarlo e daí decretava o génio e mediocridade de quem ousasse literatar. E os seus missi dominici partiam para a literatura a executar os seus decretos. O P. dizia-o Mestre (também disse que O Barranco de Cegos do Redol era o maior romance do século xx), o G. C. executou o Palma-Ferreira por ter posto em causa a genialidade do nosso Carlos, o B. B. disse ao Serafim Ferreira que uma das razões por que me detesta era eu duvidar do génio oliva, o P. C. sempre que o génio se produzia em escasso romance, em poema gotícula ou texto sumário, desfazia-se em estudos mais extensos do que a obra em causa (mas nunca mais escreveu uma linha sobre o gigante do Montecarlo, depois que a morte o subtraiu). E agora vem o Jornal, tão docemente inclinado ao progressismo, anunciar-nos que o génio era hoje um homem quase esquecido. Jamais, portanto, o P. o chamará seu Mestre, jamais o G. esgalhará possíveis Palmas-Ferreira, jamais o assomadiço B. B. dirá como disse e repetiu, que Uma Abelha na Chuva era o seu «livro de cabeceira». Aliás, esta história de livros de cabeceira faz-me pensar. Porque um livro de cabeceira tem por força de ser um livro de cabeceira (de sono). Pois se é para ficar excitado, o melhor é lê-lo fora da cama. Ou se não é para estar desperto, melhor é ler o dicionário.
Mas o «esquecimento» de C. Oliveira. Ele não está esquecido, está é naturalmente mais reduzido ao seu tamanho. E esse, se se pretende que seja de gigante, corre o risco do famoso Ceausescu que era o «gigante dos Cárpatos». Não, o Carlos de Oliveira, como romancista, não nos entusiasma já muito, embora tenha uma escrita de preço. Mas os versos são bons, jeitosos, tipo «bibelot», que fica sempre bem na nossa emoção leve e (um pouco) distraída. É pouco? É o bastante para a gente o reler em momentos de um discreto apetite poético. Eu, pelo menos, releio-o com suficiente prazer, apesar da sua mania (por erro de escola) de os polir – como à prosa – com polirina para brilharem um pouco mais do que há neles de razão para isso. E não me insultem, por favor. Insultem O Jornal, que apesar de ser «dos nossos», disse essa coisa nefanda de que era um autor «quase esquecido»…
*
E a propósito de o P. C. não ter nunca mais escrito uma palavra sobre o Oliveira: é o seu tique. Na verdade, ele nunca escreveu nada sobre autores já defuntos (exceptuando Pessoa, por se aguentar vivo com a sua modernidade). Assim jamais gastou uma linha sobre Camões, Gil Vicente, Garrett, Camilo, Eça, etc. Estão mortos. Não é gente que ele encontre na sua filosofia do imediato, do presente. É o caso. E já lho disse.
*
Daniel Ortega, o Fidel ditador em ponto ainda mais pequeno da Nicarágua contra todas as sondagens prévias, perdeu estrondosamente as eleições. Menos um. Falta o dito Fidel. E a China – que não é um país, mas um continente. Óptimo. Mas à noite na TV Miguel Urbano Rodrigues, pessoa discreta, aliás, inteligente e culta, veio dizer que o desastre se deveu à pressão económica dos Estados Unidos, não é verdade? Só que o patarata do locutor não teve a ideia fácil de perguntar a Miguel Urbano como é que os Estados Unidos fizeram pressão sobre todos os estados de Leste para caírem de cambulhada os seus partidos comunistas. Ou essa pressão não pressionou até lá? Miguel Urbano Rodrigues imaginará que os seus compatriotas são atrasados mentais? Ou tudo isto é ainda efeito do desaforo com que os seus camaradas nos fazem de toupeiras, negando que o sol brilha? Arre, que é de mais. (Desculpem, mas a paciência está muito cara.)
*
O Cesariny disse que o Pascoaes é o maior poeta do século. Gracinha surrealista que já não se usa. O Pascoaes? Que ideia. Arrasta muito os pés da poesia.
VF 

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

26 de Fevereiro [1966]

Já levantaram o anátema sobre os 13 escritores malditos. Mas continua a funcionar – dizem – uma Comissão de Censura Literária composta por alguns dos nossos ilustres camaradas reaccionários.
Custa-me no entanto a crer na verdade desta notícia… Que haja quem se enlode voluntariamente e se reveja todas as manhãs num espelho de lama – para verificar se está mais pequeno…
JGF

Coimbra, 26 de Fevereiro de 1981

O Sexto Dia da Criação do Mundo finalmente nas montras. Seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo! Era com estas palavras que meu Pai despegava das leiras, e não encontro outras mais apropriadas para esta hora. O Velho, como um Job do enxadão, crente e resignado, enxugava o suor da jorna a exaltar o Altíssimo; eu, Job da caneta, descrente e rebelde, imito-lhe a exclamação a dar apenas voz tutelar ao alívio que sinto. Acabei a longa vessada da minha vida. E quero que seja o honrado exemplo progenitor, assim trazido à lembrança, a autenticar a penitência que cumpri de ter metido setenta anos de sofrimento em mil páginas de disciplina.
Miguel Torga

26 de Fevereiro de 1978

• Do que eu ainda não consegui convencer este idealista que comigo insiste em conviver, é que, seja qual for o regime que nos governe, enquanto as máquinas (autómatos, robôs, ou como queiram chamar-lhes) não tiverem totalmente substituído o trabalho manual dos homens, haverá sempre exploradores e explorados. Quer dizer: de um lado, operários, camponeses, proletários, classes trabalhadoras ou produtoras, ou «estratos inferiores» da sociedade, e do outro, patrões, mandões, burocratas, capitalistas, ditadores, etc. (Ainda que os primeiros sejam mais bem pagos do que os outros.) Porque o facto básico da vida social parece ser que, por muito que lhes façam, as sociedades (humanas e animais) se repartem sempre em duas categorias: a dos que mandam e a dos que são mandados, ou a dos explorados e a dos exploradores. A exploração, enfim, do homem pelo homem! E quem sabe?, talvez mesmo ainda depois do triunfo total da máquina!
«Mas», diz-me ele, «e os intelectuais? Os cerebrais? Onde ficam eles?»
A minha resposta é invariavelmente: «Visto que o seu papel é criar (quando criam!) para o bem geral, os cerebrais serão sempre explorados, quer tomem o partido dos exploradores (o que é sempre o mais provável, dada a sua submissão ou passividade!), quer o dos explorados, com quem eles, aliás, não gostam de ser confundidos!»
JRM 

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Coimbra, 25 de Fevereiro de 1976

     Como eu o compreendo! Aflito com este desmoronar da pátria, compra quantos livros lhe testemunham a configuração passada. Guias dos seus monumentos e das suas estradas, crónicas, rifoneiros, monografias etnográficas, álbuns de cerâmica e de mobiliário. É como quem recolhe os salvados de um naufrágio. Arruma Portugal na estante.
Miguel Torga

25 – Fevereiro (domingo). [1990]

Qual a ciência que domina o nosso tempo? Ou seja a que fundamentalmente a exprime? Porque deve havê-la como houve o tipo de arte cultivado. No século passado creio que foram as ciências naturais. Antes, não sei, as matemáticas? como não sei se houve realmente uma «ciência» mas apenas esboços delas. A ciência dominante no nosso tempo foi a física e mais proximamente de nós talvez a química. Como a arte do século passado foi a literatura, sobretudo o romance e para o fim já a poesia – que dominou o nosso século na literatura. Mas a nossa grande arte foi a pintura. Creio porém que todas elas – ciência e arte – se caracterizaram pela destruição. A expressão maior da física foi o nuclear e aí a bomba atómica. A da química foi, com as armas derivadas dela, a ameaça de desorganização genética. Em todo o caso, a destruição maior da ciência foi a da confiança nela. Não apenas pelo facto da segurança na sua verdade com o acréscimo do mistério proporcional ao que revela, mas ainda pela margem enorme de subjectividade na sua interpretação e desenvolvimento, nos «paradigmas» orientadores de que fala Thomas Kuhn: já se reflectiu, por exemplo, em que só alguns séculos depois da solução de Copérnico os sábios, que a conheciam, acabaram por aderir a ela? Mas no domínio das chamadas «humanidades», a grande inovação foi a questionação da linguagem e com ela a destruição do que sempre nos pareceu uma evidência, ou seja que a língua não punha em causa o pensar. Ou seja que o pensar não dependia da língua que o traduzia. E esta simples palavra «traduzir» diz já tudo, ou seja que o pensamento existia antes da língua porque lhe era independente. Quando eu era rapaz e fui convidado para lente, pensei logo na minha «tese» de doutoramento a qual seria um confronto do «período hipotético» grego com o latino, ou seja das «orações condicionais» numa língua e noutra. Porque me fazia confusão que certos valores gregos não existissem em latim – como já era confuso que os chamados «verbos médios» não existissem em latim a não ser esquisitamente nos chamados verbos «depoentes» (ou seja, que tinham deposto a forma activa). Nessa idade juvenil intrigava-me que as duas línguas clássicas não se ajustassem inteiramente uma à outra, mas não media (e como?) a tremenda significação desse desajustamento. Só, aliás, aqui há uns anos eu soube em Benveniste que os verbos médios gregos deram origem ao que muito intrigava os filósofos no entendimento de certas categorias aristotélicas.
Mas perdi-me. Ah, já sei talvez. Queria eu dizer que possivelmente, como coroação de toda a ciência do nosso tempo, marcado pela destruição, é a linguística ou mais prosaicamente a filosofia da linguagem o que me parece mais destacável. Ou seja o saber que domina todos os saberes por se referir ao que as exprime a todas. Assim a destruição que caracteriza toda a ciência assenta na destruição dela própria – dessa destruição. É o máximo do silêncio, não é assim? Então o melhor é calar-me e olhar em sonolência o lume do fogão…
*
Que estranha sensação de me sentir «liberto» de escrever literatura. Porque ninguém me obrigara a escrevê-la. E no entanto é como se essa obrigação me viesse do desconhecido e só agora desse conta dela precisamente por dela estar desobrigado. É porque me sinto livre, que dou conta de ter estado obrigado. Não sentia a obrigação, mas sinto-a agora na ausência dela. Como quem só dá conta de ter vivido num ambiente, depois de ter saído dele.
Em todo o caso, uma velha ideia regressa-me como a memória de uma paixão esquecida. Uma «história» sem personagens. Ou só feita precisamente de «ideias» como uma biblioteca de livros anónimos. Ou um jogo só dos ambientes como um jogo de cores num quadro abstracto. Pensei-o quando comecei Aparição, mas arrumei o projecto pela razão de que não poderia levar uma vida inteira a escrever livros «abstractos». Valerá a pena retomá-lo, agora que só tenho restos de futuro? No fundo podia ser apenas um poema em prosa.
E se voltasse ao ensaio «Um Dia de Verão»? Abandonei-o há uns três romances ou quatro.
*
Gilo e Helena vieram almoçar. Fomos ao «Aquário», ali a Janas, que fica a uns dois ou três quilómetros. Tem um ar mais citadino que o Café do Zé. E a diferença da civilização não se pagou mais caro. Gilo não se sente no seu ambiente no Zé. Ambientámo-lo. Mas amanhã regressamos ao nosso elemento natural. E deve haver menos decibéis do que hoje para maior naturalidade. E iremos (talvez) a pé. E veremos as florinhas campestres das margens no ir e vir.
VF 

domingo, 24 de fevereiro de 2013

24 de Fevereiro [1966]

Alguns homens levavam a carne do camião para o Talho. Dois deles, boçais. Mas o terceiro, não. Alto, feições bem moldadas, louro, doce…
Coisa estranha! (ou estarei a recorrer à técnica dos contrastes?), de todos eles pareceu-me ser o que transportava com mais volúpia o cadáver do porco às costas.
Bem cingido. Vestido dele, quase.
JGF

24 – Fevereiro (sábado). [1990]

Enganei-me. Afinal pela manhã houve pássaros. Discretos, tímidos, um pouco parvinhos, lá cantavam aqui e além o seu pio desconcertado. Devem usar ainda daqueles relógios da minha infância marca Roscoff, que eram gordos como os abades do seu tempo e lembravam no trabalhar uma locomotiva. Hoje os pássaros usam relógios electrónicos. E por isso a maioria não compareceu. Está aliás um lindo tempo e foram parvos no rigorismo dos seus cronómetros. Amanhã começa o Carnaval e já talvez não tenham sido tão parvos como isso para se não acanalharem com as carnavalices. Em todo o caso acendemos o fogão para promovermos a casa de sepulcro a mansão humana. Cá estou a aquecer os meus pés mortais enquanto garatujo estas minhoquices. Mas aquela moedeira histérica na barriga voltou a chatear-me, apesar do saco de medicamentos com que tento dissuadi-la. Vai este inferno tirar-me o resto dos meus dias? Não quero maçar mais o destino com o requerimento de outro romance. Acabou. Mas ao menos, que diabo, um pouco de sossego neste bocado de carne para ir sendo humano. E isso não é talvez de ser demais para o estupor do destino me obsequiar.
*
Nunca mais. Quando este dobre de sinos nos dá um rebate na alma, a nossa imaginação, de economia proletária, o que nos lembra é que não mais veremos os amigos, os familiares, a nossa casa e assim. Mas o nunca mais é infinito. Nunca mais veremos esses amigos e o resto, mas ainda o que será a História amanhã, o que será o país, a sua possível dissolução, a extinção das espécies vegetais e animais, a extinção da espécie humana, o planeta morto, o fim do sistema solar com o apagamento do sol, a extinção do Universo, a infinidade dos tempos depois de morto o Universo, o silêncio interminável do vazio. O nunca mais estabelece assim uma desproporção inimaginável entre o simples facto da tua morte e o infinito que lhe responde. Nunca mais. É o vazio eterno que corresponde a uma vida que findou…
*
E ao almoço apareceram os Mários Braga que a Regina desafiara ontem para o repasto de hoje. Habitualmente vamos com eles ao Café do Zé. Mas desta vez opuseram-se. Tinham carro novo e quiseram exibi-lo à nossa estupefacção. Andava. Mas do lado de trás, que era o nosso sítio, os caroços da estrada manifestavam-se excessivamente. E como ambos eles são pouco evoluídos para amarem a barulheira do Café do Zé e a força e abundância dos seus pratos de especialidade, como o cozido em quantidade para pesos-pesados e a fartura dos molhos dos bifes e bacalhau, levaram-nos ao Curral dos Caprinos, que é um restaurante na Várzea de Sintra. E nós deixámo-nos ir. É uma casa «típica», no género do tecto e paredes adornadas excessivamente de braços de alhos, instrumentos domésticos entre eles, muitos cornos. Comeu-se. Bebeu-se. Pagou-se. A Regina não se mostrou compreensiva, mesmo para os adornos, entre eles as cornaduras. E concluiu, no fim da factura, que o mais elevado de tudo eram os preços. Como ela é que é a ministra das Finanças e os dedos me não ficaram queimados, não achei.
E agora vou desbastar a montanha de jornais da semana para compor a digestão. Ou descompor.
VF 

sábado, 23 de fevereiro de 2013

23 de Fevereiro de 1978

 Fala o misógino: «A Mulher é um ser estranho que gosta de um monstro horrendamente cabeludo – peludo, felpudo, hirsuto! – chamado Homem!»
 Resolvido hoje mesmo: não dar mais ouvidos às fábulas e ficções com que o meu coração, fingindo embalar-me, me vem de há muito aniquilando.
 É sabido que a carência de proteínas na alimentação, desde a infância, é causa de certas deficiências da função cerebral. Não explicará ela também a insensatez política de certas populações do Mundo?
JRM 

23 – Fevereiro (sexta). [1990]

Viemos enfim a Fontanelas. Ou antes, vim eu. Porque a Regina, em viagens furtivas de vir e ir com a Brígida, tem cá vindo de vez em quando. Mas tivemos de esperar que o sol desse o seu aval porque um tipo que me andava a arranjar a antena e a deixou na mesma, escavacou com o seu peso terrestre não sei que telha e a chuva aproveitou logo para se infiltrar cá dentro a ver como era e alastrar de bolor e negritude uma parede da sala. E ao mau exemplo da parede, toda a casa mais ou menos aproveitou para dizer que quando o bolor nasce é para todos. De modo que a sala, os quartos, o escritório e a cozinha estavam a fazer da casa toda uma descoberta arqueológica. Houve pois que reconduzi-la a habitação civilizada a golpes de sol e vassoura. Porque uma casa é como um corpo humano a que se destina e um breve descuido entra logo na barbárie. De modo que cá viemos. Havia indícios de que a Primavera vinha aí. Mas nem um pássaro a colaborar. Têm o seu relógio cósmico e não há sol que os trapaceie. Já as galinhas são mais dotadas de estupidez. A minha tia Quina contava-me que na sua infância houvera um eclipse total do sol e que na suposição de que era noite, a malta galinácea encaminhou-se toda para o poleiro. Mas quando viram que era engano, voltaram a sair e a ciscar o seu alimento. Devo aliás dizer que a mioleira das galinhas não é assim tão deficitária como isso. Na aldeia às vezes entretinha-me a pôr-lhes à prova o intelecto. Lançava-lhes assim do alto grãos de milho sobre o cimento do jardim. E como os grãos naturalmente saltitavam, elas seguiam-lhes o movimento com a cabeça para cima e para baixo até que os grãos se imobilizassem. E então comiam-nos. Mas repetida a experiência várias vezes, elas ficavam de cabeça imóvel à espera de que o grão ficasse quieto. E então bicavam-no.
Mas dizia eu – de pássaros nem um pio. Que estranha coisa assim a Natureza deserta, com alguma verdura já a dizer-lhe a alegria. E imagino assim o aparecimento da Terra, sem um ser vivo a tomá-la mais viva. Um instante Deus deve olhá-la com inquietação e deslumbramento, no silêncio da sua eternidade. Em todo o caso aqui e além desponta um ladrar inconsequente de cão aí natural. Mas um cão não usa relógio e deve ter por essa invenção um desprezo altaneiro. Assim não tem horário e ladra de dia ou de noite. E mesmo no fornicar creio que não tem um calendário muito rigoroso. Foi talvez o mau hábito em que o pôs o homem, seu parceiro.
De todo o modo é belo ver de novo a Natureza no seu estado livre ou pouco domesticado. Vejo-a de novo do meu poiso no sofá do escritório, com a claridade que esmorece entre os pinheiros imóveis. E uma paz desce doce dela sobre mim. E estranhamente sinto que ela me não esperava para ser minha nessa espera. Ou que de qualquer modo a não mereço.
VF 

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

22 de Fevereiro [1966]

Oh! a beleza espiritual dos heróis vencidos, os únicos que nos consentem sem remorsos!: Sócrates, este, aquele… Todos de derrota. Porque o nosso destino é esse: portarmo-nos de alta maneira na derrota. Encostados a muros. Nos cárceres. Nos «segredos» do suor. Nas cruzes abertas…
Mas vencer, não. Só aos reaccionários está reservado esse papel – parece.
Ousem por exemplo recordar os nomes de Robespierre, Saint-Just, Lenine diante dos moralistas que nos pregaram o Sócrates e vejam-lhes as caras de nojo.
Vencer nunca! Vencer é macular de sangue e de injustiça (mesmo passageira) o nosso anseio de justiça.
É trair.
JGF

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

21 de Fevereiro de 1978

«Só o Nicho é Deus, e o Pataco o seu profeta.»
Este bom padre, numa hora de tentação, fez um filho na ama. O menino cresceu, inteligente, estudioso e respeitoso, e acabou por se formar doutor em Coimbra. Com a volta que tudo tem levado, um dia, ao levantar-se da mesa, ele disse: «A sua bênção, meu pai.» Ao que o velho ripostou: «Eu não sou pai, sou seu padre!» «Então o senhor não acata o aggiornamento da Igreja? Não diz a missa em português? E o Padre-Nosso não passou a ser Pai-Nosso? Fique sabendo que daqui em diante, como Deus, o senhor será apenas meu pai!»
Como, no nosso escritório de advocacia, rareavam os clientes e abundavam os visitantes, sobretudo os colegas a gabar-se das suas inúmeras «causas», o Bastos Guerra, que tinha costela de humorista, afixou na parede da sala principal o aviso seguinte:
NADA É TÃO PREJUDICIAL A QUEM NÃO TEM QUE FAZER COMO A PRESENÇA DOS QUE TRABALHAM!
Se não foi invenção dele, ao menos vale a pena lembrá-lo.
JRM 

21 – Fevereiro (quarta) [1990]

E agora o que é que vai escrever? E uma pergunta que já me começam a fazer, depois de concluído Em Nome da Terra. Porque ma fazem? Deve ser por deferência, amabilidade. Ou apenas por formalismo como me perguntam como estou. Ao protocolo desta pergunta não respondo como o outro quando disse estou bem graças a Deus, o pior é este reumatismo que me não deixa mexer. E digo de caras: estou à rasca. Se realmente estou. Mas à pergunta sobre o que escrevo sinto-me sempre em mal-estar. Que é que tem de público e protocolar o que é da minha intimidade? Não sei porque me não perguntam por exemplo: e agora que casaco vai vestir, depois de deitar esse para o cesto da roupa suja? Ou: quando é que temos fato novo? E todavia seria muito mais plausível. Mas ninguém mo pergunta. E muito menos qual a cor das cuecas que trago. Como ninguém pergunta a ninguém «quando é que temos outro filho.» O acto de escrever é tão melindroso e recatado e estritamente pessoal como justamente fazer um filho. Nascido o filho e feito gente, ele é do domínio público e está assim sujeito a que o julguem uma criancinha adorável ou mais tarde um sacanóide. Mas o fazê-lo não é decente que seja também do domínio público. Não se pergunta quando temos um novo livro ou se se está a escrevê-lo como se não pergunta quando temos um novo livro ou quando se pensa fazê-lo. Eu por mim é o que sinto. Mas é possível que esteja a asnear – que é, aliás, a minha constante inclinação.
VF 

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

20 de Fevereiro [1966]

Continuo a rever a Poesia-I – exemplo do que me deu hoje para classificar desta maneira: «panfletarismo poético intemporal».
Desenvolver esta ideia. 

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

19 de Fevereiro [1966]

Convite da Europa-América para a recepção ao Jorge Amado. Já mandei o respectivo bilhetinho a dizer que não compareceria. Não me interessam «monstros», de mais a mais com atitudes dúbias.
Mas cuidado, Zé Gomes! Não te tornes puritano (sobretudo como pretexto para evitar chatices).
Não geles peixe de pureza fria.
JGF

19 – Fevereiro (segunda) [1990]

O romance é uma espécie em vias de extinção. E isso uma profecia generalizada mas sempre de execução sempre em adiamento, com protestos exaltados dos que se sentem em ameaça ao seu bife. Creio que falar disso é mesmo um sinal visível de reacionarismo. Em Maio de 88, num congresso internacional havido em Queluz, eu disse que o romance está ameaçado pela literatura de consumo e é de realização difícil para se aguentar entre a qualidade e a quantidade, entre o que o dignifica e a necessidade de ser vendido. Cardoso Pires ironizou dizendo que o que se pretendia era um elitismo muito alargado. E a imprensa, sempre adorável comigo, disse logo qualquer coisa que era mais ou menos assim: toma lá, que é para saberes. Digamos que o romance está em extinção. Na realidade está hoje tudo em extinção. Mas é só o romance que me interessa, porque é problema em que estou metido. Já talvez tenha contado o que se passa hoje na América no que importa ao fabrico de romances. É uma indústria como a do sabão ou do papel higiénico. Há editoras com os seus funcionários escritores que têm o seu horário de trabalho e despacham em prosa romanesca as encomendas do patrão. O funcionário entra no seu gabinete e cumpre a tarefa encomendada. E há vários outros funcionáros como ele. As sondagens do mercado dizem que o que está a dar é, por exemplo, o romance sobre a homossexualidade, perversão de menores, conflitos rácicos, etc. E o patrão distribui o serviço: toma lá tu o tema da panasquice, toma tu o das lolitas, toma tu o do futuro da negritude. E o funcionário entra às nove e sai às cinco com uma hora para almoço, trabalhando no tema encomendado até ir para casa. Faz-se o livro, vende-se o livro, lê-se o livro e deita-se fora. Que é que a literatura tem a ver com tudo isto?
Há um problema que se insere na degradação da arte mas que já não tem que ver propriamente com a perda de qualidade e é a reprodução industrializada da obra plástica. A reprodução em sene esbate-lhe não a qualidade elitista, mas a concentração nela de qualidades enquanto arte. Como um pai de muitos filhos, o amor dissolve-se neles todos. E o facto de um Vasarellì defender essa desmultiplicação esclarece o que há de degradação no facto de ele se insurgir contra a contemplação de uma obra. Porque ela não é para contemplar, mas para ver e esquecer. O romance vai morrer e é a morte de toda a arte que se visa ou reconhece neste trabalho de sapa. Destruir. Deitar fora. Desconstruir. Tudo quer dizer o mesmo. E esse mesmo que quer dizer é a liquidação do homem. Que é que isso tem de diferente da ameaça da «engenharia genética»? Salvar o homem. Salvaguardar-lhe a sua dignidade e o seu milagre. É o slogan que em breve teremos necessidade de impor.
Mas estou a cair em drama puxado à lágrima. Fico por aqui para não ir chorar para a casa de banho e deixá-la talvez com mau cheiro.
*
Aproveita o que te sabe bem, enquanto os médicos não descobrem que te faz mal. Ou espera com paciência até dizerem que afinal faz mesmo muito bem.
VF 

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

18 de Fevereiro [1966]

Um bilhete de José Régio a agradecer a recepção do meu último livro com a habitual promessa de que «um dia destes principiarei a conviver com ele – certo de reencontrar a voz tão pessoal do Autor».
Nunca o lerá, claro.
JGF

18 – Fevereiro (sexta) [1990]

Como em todos os domingos, há o almoço patriarcal. E como antes de todos eles, o Gilo põe a questão sobre onde vamos almoçar. Hoje fomos à Pontinha, que fica para lá de Carnide, perto de Benfica. É uma tasca aparelhada para o não parecer, num chão mais ou menos térreo com um amontoado de objectos que poderiam servir para um museu regional, dependurados do tecto e das paredes. Cangas de bois do Minho, instrumentos de espadelar o linho, ancinhos, rocas de fiar, chocalhos e o mais que não lembro ou poderia inventar como já terei inventado e se reporta igualmente a um mundo antigo de ser português. A Regina exaspera-se com este folclorismo que a sua desconfiança relaciona logo a uma possível «exploração». Mas eu gosto. Não pelo aparato, mas pela comezaina que é normalmente a condizer. E com efeito. Logo como aperitivo há uma abundância carniceira com morcela, perna de porco, gorduras várias do mesmo simpático bicho. É a minha infância que volta e com um pouco de apetite leva tudo a eito. Depois vem o fundamental almoço, que eu insisto em que se coordene com o aperitivo. Detesto o peixe, a menos que disfarce bem o que deve saber em cru. Como suponho já ter dito, na minha aldeia é-se carnívoro e convoca-se a justifica-lo a opinião de Cristo. Porque ele encarnou e não empeixou. O peixe da minha infância era a sardinha salgada ou já «ardida», vinda em caixotes dos confins do mar ou o infeliz do bacalhau já espalmado em «peixotes». E quanto a peixe temos falado. Restava pois a carne de porco da salgadeira porque a vaca era quase tão sagrada como a indú. A minha ementa ideal era assim muito encurtada: bacalhau, sardinha e porco. E quanto a prato propriamente dito, feijão com arroz ao almoço e batatas ao jantar (alcunhados então respectivamente de jantar e ceia). Fomos à Pontinha. Fui animal carnívoro até à alma. E estava aparelhado hoje para beber. E bebi. Mas hoje os dois ascensores do prédio fizeram fim-de-semana. De modo que tive de subir à pata os seis andares da minha petulância. Cá cheguei ao alto da megalomania. E reparo agora, depois de uma sesta, que já estava quase disponível para comer outro almoço…
VF 

domingo, 17 de fevereiro de 2013

17 de Fevereiro [1966]

Inquérito relâmpago no Diário da Manhã a propósito da condenação de dois escritores russos.
Lamentações hipócritas de vários escritores reaccionários portugueses, esquecidos da terrível situação pátria.
No Martinho, em conversa com o Carlos de Oliveira e o Abelaira, recordei esta sentença de Rousseau no Émile:
«Tel philosophe aime les Tartares pour être dispensé d’aimer ses voisins.»
JGF

17 de Fevereiro de 1978

Um velho linguista que, em rapaz, fora grumete, responde por atentado ao pudor na pessoa de jovens com que tratava.
«Que quer Vossa Excelência, Meritíssimo Senhor Juiz?», diz ele. «São hábitos da MOSSidade!... ou da MOUSSE-idade!» «Que quer dizer?», toma o magistrado. E ele escreve na ardósia: «Moss (inglês), Mousse (francês), Musgo em português. Até se diz que ser velho é ter musgo! O Mousse francês pode ainda significar: I) Grumete, moço de bordo, cabin boy, etc. Jovem, logo sujeito a certos abusos! 2) Espuma (de sabão, de cerveja, de saliva, etc.); e 3) como adjectivo, diz-se do aço que perdeu o fio ou gume. Isto explica tudo.»
O juiz reflectiu algum tempo e no fim absolveu-o e mandou-o em paz.
JRM 

17 – Fevereiro (sexta) [1990]

Ontem veio aqui o Adriano da Bertrand e levou o texto do romance. Foi assim uma espécie de treino para o parto definitivo. E como estou portanto no desemprego, venho aqui com mais frequência para não perder o jeito ao dedo. Para dizer o quê? Ninharias, merdilhices, nada. Viemos há pouco do almoço num restaurante e não fomos muito favorecidos. Eu comi coelho e perguntei ao criado se o dito era já avô. O Lúcio comeu porco e perguntou se era marido da porca de Murça. A Regina comeu vaca e perguntou se era a estremosa esposa do boi Ápis. Tudo duro como os tempos que correm. Mas o que sobretudo nos perdura na memória vem da TV de ontem e dos jornais de hoje. É o caso de que o Mário Soares enfiou mais um barrete esquisito dos que se usam nos doutoramentos honoris causa, agora em Turim. Que colecção ele já deve ter. Mas estava giro, como sempre, com aquela carapuça vinda decerto desde os tempos medievais, que era quando mais barretes se enfiavam. Mas juntamente com ele tivemos outro encarapuçado, que foi o Saramago, hoje glória universal, desde a caduca Europa aos progressivos hotentotes. Também lhe não ficava mal. E em curto-circuito lembrou-me o pobre Namora que há dias fez já um ano de defunto. Também a sua glória foi expansionada urbi et orbi. Mas não teve barrete. Como ele se deve ter sentido frustrado no empíreo. Mas o destino tem destas pirraças. Daqui do globo terráqueo que ainda me aguenta o peso (leve) lhe envio o meu pesar por esta insuportável gracinha da sorte. Em todo o caso, se há justiça nos céus, espero bem que o Altíssimo lhe dê no empíreo a coroa que não obteve neste execrável planeta. Mas quantos outros não obtiveram também a resplandecente auréola. Não os vou nomear para economizar papel – que está caríssimo (ainda ontem uma resma dele me custou para cima de um conto de réis). Amém. Vou repousar no sofá. E talvez que Morfeu me suavize a cólera das injustiças humanas e o coelho de córnea dureza.
*
A luz, a luz. Ela aí está de novo, com a Primavera que se anuncia. Deus desperta do Inverno ainda sonolento para recriar o Mundo. Ouço-lhe já a palavra genesíaca na claridade que se abre no espaço do escritório. Vou aproveitar a oportunidade e ser por dentro em iluminação, antes que se cumpra a ameaça já audível de que se me apague para sempre…
 VF 

sábado, 16 de fevereiro de 2013

16 de Fevereiro [1966]

Leitura do último livro de Costa Dias: Discursos sobre a Liberdade de Imprensa – 1821. Um rude prefácio corajoso com algumas ideias de finura ágil – tal a do «pensamento urgente» – e a revelação de um homem na verdade notável: o abade Castelo Branco.
No entanto, fechei o livro com a tristeza de verificar mais uma experiência inútil.
JGF

16 – Fevereiro (sexta) [1990]

O meu editor francês Joaquim Vital (que é português…) esteve aqui em Lisboa há dias e durante o jantar falou-me de um livro sobre Malraux publicado por um filho. Mas ele não tinha agora filho algum, disse eu. Filho adoptivo, disse-me ele. Mandou-me o livro. Estou a acabar a leitura. Mas antes de dizer dele o que me parece, explico, depois do que li, a embrulhada da família Malraux. O pai dele, chamado Fernand, casou duas vezes. Do primeiro casamento nasceu o nosso homem, André Malraux. Viúvo, casou segunda vez e deste casamento nasceram os dois meios-irmãos Roland e Claude. Claude foi fuzilado pelos alemães aos 27 anos, solteiro, suponho. Roland morreu num campo de concentração, deixando viúva uma pianista, Madeleine, e um filho Alain – que é o autor do livro de que falo. André era casado com Clara e tinha dela uma filha Florence (Fio para a família e amigos). Separando-se da mulher – que lhe não deu o divórcio – André vive com Josette Clotis de quem tem dois filhos Vincent e Gauthier. Josette morre num desastre ferroviário e André casa (?) com a viúva do irmão Roland – Madeleine – que lhe cria os dois filhos de Josette com o seu, Alain. A família é agora constituída por André, Madeleine, o filho desta e de Roland – Alain – e os dois filhos de André e Josette – Vincent e Gauthier. A vida da nova família é normal, com a prevista perturbação da presença do «génio», reflectida na instabilidade da carreira de Madeleine como pianista. É uma vida de grande fausto, decerto porque os direitos de autor de André devem ser fabulosos. Apartamentos de luxo, viagens, férias fáceis em estâncias de alto coturno e o mais. Um dia um amigo de Vincent oferece-lhe (imagine-se) um carro de alto estilo desportivo para velocidades de vertigem. E numa viagem ao sul da França com o irmão Gauthier e a que Alain não quis ou pôde associar-se, os dois irmãos estampam-se e morrem no desastre. Malraux sofre um choque violento, mas no dia seguinte ao do enterro, que acompanhou, apareceu numa reunião oficial do Governo, a que pertencia. Espanto regelado de todos. Mas daí em diante a sua vida transformou-se e a dissenção com Madeleine agravou-se. Aliás as suas relações com a filha, a Fio (como com todos os amigos) foram sempre difíceis e mal se viam durante largos períodos. E um dia, sem aliás qualquer contenda explosiva, ordenou à mulher que se fosse embora. Ainda manteve contacto com o sobrinho-enteado. Mas esse mesmo quebrou-se. Vou ler o que me falta do livro. Mas a ideia que me ficou foi já a de um doente psiquiátrico, atravessado de génio, loucura, megalomania, dureza para consigo e os outros, de uma ternura ocasional mas reprimida, intempestivo, movendo-se normalmente numa órbita que não passava pelo que a vida tem de quotidiano, obstinado – e tudo isso avivado ou distorcido pelo álcool. Coincidência curiosa: a certa altura ele diz ao sobrinho seu biógrafo «sou o maior escritor do século». E foi isto precisamente que eu escrevi na dedicatória do exemplar de Aparição que lhe enviei (em ’60). Tê-lo-ei despertado para essa convicção? Tê-lo-ei confirmado nela? Hoje não sei se lhe escrevia isso, porque na distinção entre a fulgurância das suas tiradas e a construção romanesca, eu teria de optar pela primeira (e reincidiria) ou pela outra (e eu teria de optar por Proust-Joyce-Kafka). Porque o meu ideal seria a fusão de uma e outra orientação. De todo o modo, Malraux é sem a mínima dúvida o escritor mais profundo e fulgurante de todo o século xx.
Ora bem. Mas que resta dele e de todos os outros que se queiram para o Mundo que se abre diante de nós? Porque a sensação que me toma é a de que tudo isso é um jatras, uma montanha de ferro-velho, de farraparia e inutilidade – ou quase. Nós ainda nos não apercebemos bem de que toda a nossa ordenação da vida se desorganizou. Mesmo a tragédia disso se anula em face do que não sabemos mas tem já um toque de futilidade ou vazio ou quase ridículo como a convulsão que nos agitasse em Tróia ou Salamina – ou o choro que lembramos de um desgosto na infância, quando nos negaram uma guloseima que apetecíamos. A única voz que nos pode falar ainda é a ausência dela no silêncio absoluto. Porque todo o mundo terá de reorganizar-se e é um pouco infantil chorarmos hoje sobre o que morreu em vez de simplesmente reflectirmos sobre como repô-lo em pé. E deve ser por isso que instintivamente a amargura dos meus livros se tenta recompor no riso (escuro) ou na ternura. Venho assim de há tempos escrevendo fundamentalmente «histórias de amor». E uma tentação que se me esboça é reescrever o Dafne e Cloé de Longus. O amor primordial. O amor da virgindade de se ser. A história de um Adão e Eva juvenis. Vou reler o livro do grego. A ver se. De todo o modo, chorar mais, não. Reinventar a alegria inicial. A que não sei ainda e apenas me maravilha. A que, aliás, pode estar de acordo com uma serena melancolia. A ver, a ver.
*
O Alberto Silva esteve aí há dias. E como de outras vezes eu lhe falava frequentemente de um disco com o trio Odemira que sempre tocávamos pelo Natal, cheguei a pedir-lhe que mo gravasse numa cassete. E decerto para me não ouvir mais falar do disco, trouxe-mo. Eu lembrava-me de certa melodia que eu ainda entoava, lembrava-me da mancha verde que o marcava ao centro com a indicação das várias canções incluídas. Vi a bolsa em que vinha, vi o verde do centro e estremeci fortemente a um abalo que me vinha do desconhecido e longínquo e comovente. E enquanto estive no Porto, o Lúcio passou-mo a cassete para me não estragar a agulha com a sua antiguidade cheia de rugas. E agora ouço-o, ouço-o. E Évora abre-se-me no calor íntimo de uma amizade que a morte foi dissolvendo. Está uma noite gelada, nós confluímos para a casa dos amigos Silvas, primeiro na cidade, depois na Quinta da Soeira. Os nossos filhos são miúdos e a festa assim mais verdade porque o Natal é de quem não acabou ainda de ser criança. E é o que estou sendo ainda agora na doce e serena e leve melancolia de a recordar... 

VF

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Coimbra, 15 de Fevereiro de 1981


DEPOIMENTO


De seguro,
Posso apenas dizer que havia um muro
E que foi contra ele que arremeti
A vida inteira.
Não. Nunca o contornei.
Nunca tentei
Ultrapassá-lo de qualquer maneira.

A honra era lutar
Sem esperança de vencer.
E lutei ferozmente noite e dia,
Apesar de saber
Que quanto mais lutava mais perdia
E mais funda sentia
A dor de me perder.

Miguel Torga

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

14 de Fevereiro [1966]

De manhã emendei vários versos de Poesia-I para a 3.ª edição. Prova de que muitos poemas teimam em viver. Aqui e ali até rebentam em folhas e flores novas…
No entanto, alguns já começam a secar. Oxalá dois ou três resistam mais dez anos – os que me restam de vida (e aos versos, também).
JGF

14 de Fevereiro de 1978

• De boas intenções está o Inferno cheio. Mas não, infelizmente, das más! (Bernard Shaw
JRM

14 – Fevereiro (sexta) [1990]

No domingo fui ao Porto. Havia que cumprir um preceito de amizade com a Fernanda Irene que fazia o seu doutoramento na segunda. E apanhar na onda outras amizades a cumprir também como a da Mariberta, do Costa Marques e do Resende. Eu ia receoso deste estupor do irmão corpo que deu agora em histérico, justamente na idade de ser sensato e sossegado. Mas enfim, não se portou muito mal. Também lhe dei distracção para o distrair e comer e beber para lhe suavizar as birras e torná-lo mais compreensivo. O doutoramento foi uma festa bonita. A tese – que é um calhamaço para aqui à espera de o desbastar todo, mas que já lera em parte e recomecei desde a primeira folha – é uma extensão da linguística até à literatura (e aí entro eu também com o Para Sempre). E da linguística os motivos são os dícticos, ou seja os elementos que «mostram» ou indicam uma presença («este», «aqui», «agora») centrada no locutor. E a passagem à literatura faz-se sobretudo pelo «4empo». Óptimo. Estava com «boa casa» a assistir. E a doutoranda foi exuberante. Eu disse-lhe no fim que o seu lugar era no parlamento ou comício, porque ela tem a veia da Passionária. A Mariberta, sempre boa rapariga e despachada, apesar de o seu pezinho começar a recusar-se a entrar na dança. E o Franklim a ceder um pouco às exigências da rabugem que a idade lhe vai exigindo. Alimentaram-me com um almoço que a Mariberta cozinhou e eu classifiquei com 20 valores – e sem «cunhas».Quanto ao Costa Marques – como me impressionou. Magríssimo, orelhas pendentes, rosto afuselado e já um pouco translúcido de matéria ectoplásmica. Queixou-se-me das negas da memória que lhe abre hiatos no discurso mental. Mesmo a ver a TV há interrupções dessa energia mental. E eu que me ocupei dessas desgraças no Em Nome da Terra, a sair talvez em Maio, tive para toda a degradação da velhice um rápido comentário interior, dizendo apenas que é uma merda. Conheci também pessoalmente uma mocinha que me escreve às vezes chamada Magda Laires, adoradora da literatura ou seja do imaginário que ela fixou nos meus livros. Lá lhe dei os meus conselhos de avô que ela é mais nova do que a Rita. E levámo-la connosco na visita ao Resende – o que a deslumbrou. Resende, sempre igual a si mesmo na sua forma adorável de um eterno riso juvenil e de uma arte que é a melhor que nos coube no nosso tempo português. Lá estava com telas enormes, cheias agora de uma claridade de quem só agora nascesse para a vida. Brancos amarelos azuis numa larga irradiação para lá dos limites do que poderia reduzi-los ou fechá-los numa imediata realidade, no seu peso e densidade terrestre. Respira-se nelas largamente e o imaginário abre-nos à liberdade com a libertação daquilo mesmo que por vezes é identificável. Grande pintor. Maravilhoso artista que soube promover ao intangível o real que não esqueceu. E à noite houve um grande jantar de confraternização e congratulação dos colegas da Fernanda Irene. Fiquei ao pé do Óscar Lopes. Dissemos coisas transcendentes. Suponho que a grande diferença de outrora para hoje se chama Gorbatchev. Ou chamar-se-á apenas velhice.
E é tudo. Conversei o meu tanto também com o professor Pottier que veio de Paris argumentar a tese. Mas já me esquecido do que dissemos. Tomei o rápido no dia seguinte. Almocei no comboio. Estava a Regina e o Lúcio à espera em Santa Apolónia. E finda a festa, o irmão corpo recaiu logo na patifaria. Queria mais. Não há mais. Agora é aguentar. Ele e eu, que também sou gente.
*
Mas deu-se hoje um grande acontecimento e era indecente deixá-lo passar. Que diria a História amanhã se eu o ocultasse e viesse a sabê-lo por portas travessas? Tenho os meus deveres para com o futuro e uma consciência à moda antiga em que estas faltas pesam arrobas. E o acontecimento é este – fui hoje comprar um fato. Estou já a ouvir as gargalhadas do cepticismo a cobrirem-me de dúvida metódica. Ai não acreditam? Então vão à Rua dos Fanqueiros e perguntem. A dos Fanqueiros está cheia de lojas desta farraparia. Corri-as todas. Mas por fim achei. Eu andava nisto há anos. Não acreditam outra vez, é claro. Há anos. Bati primeiro as lojas da avenida da Igreja, que está mais ao pé e tem material em conta. Mas não havia para a minha elegância e o meu garbo. Venha mais tarde, diziam-me, temos aí a chegar novo sortido e vai ter por onde escolher. Mas depois metia-se a chuva, a má disposição para a aventura, a vontade de ir remediando com o meu guarda-roupa e assim se passaram tempos. Hoje que estava sol e voltei do Porto cheio de arremesso, dispus-me a arrancar. Para remediar previamente as contendas domésticas, levei a Regina com o seu conselho responsável. E lá andámos na dos Fanqueiros para baixo e para cima. Vestia um casaco e a Regina dizia – então não se está mesmo a ver que te fica largo? E realmente, observando-me ao espelho sem preconceitos, aquilo parecia um fato de esmola. E então mudávamos de loja e fazia pontaria para outro mais comedido. Apertava bem, cintava bem com um certo donaire. E a Regina dizia – então não estarás mesmo a ver que te fica apertado? E redizia – então não estarás mesmo a ver que te fica apertado? E realmente, observando-me com olho desprevenido ao espelho, aquilo parecia fato de defunto bastante ósseo e metida que lhe fosse uma camisola de agasalho, rebentava os botões. O problema era extremamente difícil porque o número 52 era para a barriga de um abade, que enfim não tenho, e o número 50 era para o vazio de um tísico, que não é bem o meu caso. O leitor que me está a acompanhar quebra já de comoção. Mas a glória é dos obstinados e eu tenho a minha quota-parte de obstinação, ou seja do tão querido e simpático burro. Até que enfim achei um fato à medida. Era um 52, mas costurado com mão somítica, o que lhe deu a medida de 51,5 – que não há no catálogo. Filei-o logo. Havia agora que tirar a prova da calça a ver se acompanhava. Mas a mão somítica de quem a talhou exagerou e na figuração de burro a cilha era apertada. Alarga-se, disse a menina que me queria passar a andaina. E lá ficou para o alargamento. A Regina calou-se, que para isso é que foi comigo. Largou cinco dele como sinal e sexta à tarde lá me irá buscar a fardeta inteira. Esquecia-me de um contra, mas esse é generalizado. É que hoje as calças de origem modesta levam seda (seda?) nas pernas até ao joelho para se não parecerem logo com um trapo de cozinha. E isso dá uma geleira quando se vestem pela manhã. Mas talvez isso tenha o seu benefício e é obrigar-me a encolher-me com o gelo da seda e ficar assim mais conforme com a esbelteza. E agora, fato novo, só para ir bem vestido para o paraíso.
*
Falta agradecer aqui uma coisa ao bom do Luís Amaro. Tem ele um olho feroz para as gralhas de um livro e eu lembrei-me de o propor como revisor do meu novo romance. Foi aceite com alegria. Então ele sugeriu-me a leitura prévia do dactilografado para ir já limpo para a tipografia. Lá mo leu. E que razia. A repetição dos «mas» e dos «eras», as vírgulas amais ou a menos, as maiúsculas e minúsculas – levou tudo uma barrela. E agora até dá gosto. Às vezes o meu granito beirão lã resistia – e deixei ficar. Mas quase toda a sua limpeza era tão premente que o meu granito nem chegava a calcário. E lá fui dizendo que sim, que sim. Só falta agora que algum leitor mais casmurro me diga do livro todo que não. Será uma estupidez não se gostar da minha obra, ó safados. Mas se o inferno existe é para ter os seus inquilinos e não abrir falência. E é para lá que ireis todos vós, ó infelizes, se vos não curvardes à minha omnipotência. E à maneira do Sena dir-vos-ei desde já que se não cairdes de cócoras é porque a Natureza vos fez de substância característica do boi. Disse. Ah, esquecia-me: o Luís Amaro disse que todo o meu livro era uma carta de amor. Gostei. E fiquei a pensar comigo que essa carta a venho escrevendo à Rute (de Apelo da Noite), à Guida (de Cântico Final), à Hélia (de Rápida, a Sombra), à Sabina (de Signo Sinal) e sobretudíssimo à Sandra (de Para Sempre) e à Oriana (de Até ao Fim). Fim.
VF

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

13 de Fevereiro [1966]

Vieram hoje as primeiras provas da 2.ª edição de A Memória das Palavras, no prelo. Descoberta de vários disparates e deslizes da 1.ª tiragem.
É extraordinário como os leitores não repararam neles.
Estou convencido de que a maioria das pessoas não lê. Voa por cima das palavras – sôfrega de superfície.
JGF

O TINTAFINA

Aqui há dias, estando eu a desfolhar um jornal de Montalegre do tempo da Primeira República, deparei com esta curiosa expressão: «Fulano, que gosta de serrar sempre de cima.» Ora aqui está um dito em português que, para as gerações mais novas, é latim. Quem é que hoje se lembra dos serrinhas, ou serranchins, como nós também lhe chamávamos? Eu, e só Deus sabe com que saudades.
Quando meu pai, aí pela década de trinta do século passado, resolveu levantar casa sobradada por administração directa, justou, entre muitos outros artistas, uma parelha de serrinhas então famosa. Eram eles o Milagrete e o Tintafina, ambos minhotos e sérios, quando se não riam, como diria Mestre Saias, para quem, «minhotos, burros bagueiros, socos abertos e chapéus de palha, é tudo a mesma canalha».
Meu pai deu uma volta com eles pelos lameiros de touça, indicou-lhes os carvalhos a transformar em soalho, caibros e forro e disse-lhes que o resto era com eles. E foi. Durou-lhes a empreitada de Março a Outubro.
Eu, ao tempo pastor das vacas, convivi tanto com eles, que, se não serro madeira, é porque não quero. Lá como se faz, sei eu. Deita-se o carvalho abaixo, apara-se-lhe a lenha, descortiça-se, aplaina-se, pauta-se a bitola das tábuas com um cordel embebido em tinta e esticado de ponta a ponta e monta-se o toro na burra. Depois um dos serrinhas sobe para o pau e outro, logicamente, fica por debaixo. E aí é que entra a filosofia da metáfora supra. O lugar de cima é o mais cómodo. Pelo menos, não se apanha com o serrim nos olhos. Dizer que «fulano gosta de serrar sempre de cima», equivale a dizer que escolhe sempre o melhor lugar. Chamem-lhe tolo…
Enquanto olhava pelas vacas, entretinha-me a esculpir cabos de rocas com a ponta duma navalha de meia-lua que era todo o meu orgulho. Não a largava da mão. E uma noite em que estávamos todos à ceia, família e artistas, puxei dela para cortar a côdea. Diz-me de lá o Tintafina, que gostava muito de se divertir comigo:
– Andas aí todo teso com a navalha, julgas que não há outra para ela no mundo, e, afinal, eu tenho aqui uma melhor do que a tua.
– Mostre.
O Tintafina mete a mão ao bolso das calças e saca de lá uma naifa a meter nojo. Ri-me:
– Vamos lá a ver qual delas corta melhor?
– A tua até pode cortar melhor, admito. Mas a minha faz coisas que a tua não consegue. Nem que se mate.
– O quê, por exemplo?
O Tintafina volta-se para a minha mãe e diz:
– Ó patroa? Empreste-me aí um alfinete, uma segurança ou qualquer coisa do género.
Minha mãe estendeu-lhe um gancho do cabelo:
– Serve isto?
– Perfeitamente.
E depois, para mim:
– Ora a ver se a tua é capaz de fazer isto?
E, dizendo, dispôs os dois objectos em cima da mesa, à distância de três palmos um do outro. E eu com sete olhos. E ele, com uns vagares e uns trejeitos de ilusionista, a aproximar a navalha do gancho. E toda a minha gente a gozar o entremez. De golpe, o gancho dá um salto e crava-se na lâmina. Eu nunca tinha visto tal arte-mágica na minha vida. Rendi-me. Oh, Tintafina dum raio.
Mas não foi só pelo magneto que o Tintafina se tornou para mim um homem das Arábias. Foi por um outro traste para mim ainda mais estranho. Nada mais nada menos que um cavalete de pintor. Também meu pai estranhou tal apetrecho na bagagem dum serranchim. E o Tintafina contou. Que um tio dele, também serrinha, pelo fim da vida, para não morrer de fome, concebera aquele estratagema: vender a serra e comprar cavalete, paleta, pincéis, tintas e uma boa resma de pratos com a silhueta do Castela de Guimarães pintada. Depois ia lá para os jardins da fortaleza e armava o laço aos turistas. Um prato branco no cavalete, paleta na mão esquerda, pincel na direita, olho atento. À aproximação dos visitantes, fingia que pintava. E, se eles parassem a olhar, metia conversa. Que mais isto e aquilo, a pintura ainda demorava, mas, caso estivessem interessados numa recordação de Guimarães, coisa original e destinada a valorizar-se com o tempo e a morte do artista, que não vinha longe, tinham ali meia dúzia deles já prontos. Era só assinar. Os papalvos caíam que nem tordos. Ele fazia um sarrabisco nos pratos e impingia-os pelo dobro ou o triplo do preço de fábrica. Raro o dia em que não apurava para a malga do caldo, o quartilho do vinho e o maço dos cigarros. Morreu consolado.
A pensar no futuro, o Tintafina salvara da lixeira o atelier ambulante do tio. E um domingo por outro, para treinar a mão, dizia ele, armava-o ao sol e entretinha-se a borrar tela ordinária.
Um dia o Abade de S. Vicente da Chã, que tinha vindo dizer missa a Peireses, vê aquilo e pergunta:
– Ó Tintafina? Tu és pintor?!
– Formado pelas academias. A minha vocação é a pintura, senhor abade. Mas, como ninguém ma compra, tenho de me agarrar à serra.
– Serias capaz de pintar umas Alminhas do Purgatório?
– Alminhas, a manta, o que o senhor abade quiser.
– E quanto me levas?
– Tenho de ver a obra primeiro.
– Aquelas que estão ali à entrada de S. Vicente.
– Já sei. E é precisa tábua nova?
– A tábua serve. A pintura é que desapareceu com o rodar dos séculos.
– Quinhentos mil réis.
– Estás maluco? Isso é o preço duma vaca.
– E o senhor abade sabe o preço das tintas? As tábuas, principalmente velhas, são muito porosas. Absorvem mais tinta num minuto do que o meu bigode vinho num ano. E o trabalho que aquilo dá? E o génio do artista? Tudo isso vale dinheiro.
Depois de muito regatear, justaram a obra por duzentos e cinquenta mil réis. O Tintafina levou quatro domingos seguidos a pintar as alminhas. A coisa saiu mais tosca e berrante do que seria de esperar dum serrinha. Parecia o debuxo do rancho folclórico de S. Torcato, terra natal do Tintafina, a saltar às fogueiras de S. João. Sem embargo, o abade, partindo do princípio de que a finalidade das alminhas é impressionar os pecadores, e mais impressionante do que aquilo só o próprio Inferno, gratificou generosamente o presumível Van Gogh de São Telicates.
Entretanto chegou Outubro e, os serrinhas, como, durante o Inverno, ninguém lhes desse trabalho, recolheram a penates. Concomitantemente, o retábulo das almas do Purgatório não resistiu às primeiras chuvas.
O abade ficou fulo. E mal soube que o Tintafina, com a chegada de Março, regressara a Peireses, mandou-o chamar. Que viesse urgentemente. O Tintafina foi. O abade colocou-o bem defronte das alminhas, fez carranca e inquiriu:
– Que me dizes tu a isto?!
– O quê, senhor abade?
– Não vês nada de anormal?
– Eu não.
– Onde estão as Alminhas do Purgatório pelas quais me esmifraste trezentos mil réis?
– Ó senhor abade? Isso nem parece seu. Ora diga-me uma coisa. O que é o Purgatório?
– Um lugar onde as almas dos justos se purificam pelas chamas antes de serem admitidas na Bem-aventurança. E daí?
– Dê graças a Deus, senhor abade. As alminhas que eu aqui lhe pintei, acabaram de se purificar, foram para o céu. Que mais queria vossa reverência?
Serrava sempre de cima, o Tintafina.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 82 e ss.)

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

12 de Fevereiro [1966]

Distribuição dos prémios da Imprensa no Teatro Villaret. Entrega do troféu idealizado e modelado pela escultora Dorita Castelo-Branco. Cornos de um veado mágico de alumínio espetados num pedaço de mármore negro… (Gostaria de ver esse bicho inteiro numa floresta luzente, a mastigar folhas de metal…)
Sarau de tédio poético. Pairar de atmosfera pires – em que apenas se salvou a labareda Maria Barroso.
Quando fotografaram os premiados, aproximei-me o mais possível de Vergílio Ferreira.
Entendemo-nos no que nos separa.
JGF