sábado, 30 de junho de 2012

Caminhada Vila do Conde / Santiago de Compostela

Iniciei hoje a 1.ª etapa da Caminhada Vila do Conde / Santiago de Compostela. Saímos da Igreja Matricial de Vila do Conde pelas 8:30 horas e visitamos, a seguir, a Rua das Mós (antiga Carraria Maurisca), o Aqueduto de St.º António, a Capela do Bom Sucesso, a Quinta de Beiriz, o Alto da Vinha, a Igreja de St.º António / Igreja de Santiago de Amorim, a Rua dos Mourilheiros / Menires, o Cruzeiro de S. Lourenço (onde almoçámos), os Campos de Maceiras da Estrela e a Villa Mendo, ao pé de Apúlia, num total, a pé, de 14 Km. ou mais.
A próxima etapa ocorrerá em 14 de Julho,  altura em que não participarei por entretanto dever ir a Praga e Budapeste.

Dia 30 [Junho de 2009]

Dois anos
A Fundação fez ontem dois anos. Como é costume dizer-se, parece que o tempo não passou. Se nos pusermos a traçar um balanço do que fizemos e do que sonhávamos, motivos não faltarão para afirmar que não tivemos um momento de descanso. Em primeiro lugar, a preocupação de decidir sobre o que melhor convinha à recém-nascida para que o passo seguinte que tivesse de dar fosse firme e futurível. Depois o trabalho de convencer os desconfiados de que não estávamos aqui para nos dedicarmos à contemplação do umbigo do patrono, mas para trabalhar em benefício da cultura portuguesa e da sociedade em geral. Não temos a pretensão de os haver feito mudar de ideias, nem então, nem agora, mas essa tarefa de esclarecimento público permitiu-nos levar as nossas ideias e as nossas propostas às pessoas de boa-fé, que felizmente não faltam neste país, por muito mal que dele se diga. A Fundação já pode apresentar uma folha de serviços, não só digna, mas prometedora. As obras da Casa dos Bicos, que visitámos há três dias, avançam com afinco, e é muito provável que em seis meses ou pouco mais tenhamos a chave na mão e possamos entrar livremente na casa que já é nossa, mas que o será muito mais quando estivermos em actividade plena. Queremos que o Campo das Cebolas faça parte dos itinerários habituais das pessoas para quem a cultura não é somente uma decoração superficial do espírito. Recordámos recentemente a obra e a vida de José Rodrigues Miguéis. O próximo, talvez em Janeiro do ano que vem, será Vitorino Nemésio. E depois Raul Brandão. As leis, tantas vezes injustas, da oferta e da procura no mercado das letras, demasiadas vezes têm feito com que grandes escritores do passado recente deixem de andar nas bocas do mundo. Tudo faremos para contrariar essa maléfica tendência. Temos muito trabalho por diante. Dois anos não são nada, mas a menina está de boa saúde e recomenda-se.
José Saramago, O CADERNO

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Dia 29 [Junho de 2009]

Espanha negra
La España negra é o título de um livro do pintor José Gutiérrez Solana (1886-1945) de leitura às vezes difícil e sempre incómoda, não por razões de estilo ou ineditismos de construção sintáctica, mas pela brutalidade do retrato de Espanha que nele é traçado e que não é outra coisa senão a transposição da sua pintura para a página escrita, uma pintura que foi classificada como lúgubre e «feísta», na qual fez reflectir a atmosfera da degradação da Espanha rural da época, mostrada em quadros que não recuam diante da expressão do mais atroz, obsceno e cruel que existe nos comportamentos humanos. Influenciado pelo tenebrismo barroco, muito em particular por Valdés Leal, é também evidente a impressão que sobre ele exerceram as pinturas negras de Goya. A Espanha de Gutiérrez Solana é sórdida e grotesca no mais alto grau imaginável, porque isso foi o que encontrou nas chamadas festas populares e nos usos e costumes do seu país.
Hoje, Espanha não é assim, tornou-se numa terra desenvolvida e culta, capaz de dar lições ao mundo em muitos aspectos da vida social, objectará o leitor destas linhas. Não nego que poderá ter razão na Castelhana, nas salas do museu do Prado, no bairro de Salamanca ou nas ramblas de Barcelona, mas não faltam por aí lugares onde Gutiérrez Solana, se fosse vivo, poderia colocar o seu cavalete para pintar com as mesmas tintas as mesmíssimas pinturas. Refiro-me a essas vilas e cidades onde, por subscrição pública ou com apoio material das câmaras municipais, se adquirem touros às ganadarias para gozo e disfrute da população por ocasião das festas populares. O gozo e o disfrute não consistem em matar o animal e distribuir os bifes pelos mais necessitados. Apesar do desemprego, o povo espanhol alimenta-se bem sem favores desses. O gozo e o disfrute têm outro nome. Coberto de sangue, atravessado de lado e lado por lanças, talvez queimado pelas bandarilhas de fogo que no século XVIII se usaram em Portugal, empurrado para o mar para nele perecer afogado, o touro será torturado até à morte. As criancinhas ao colo das mães batem palmas, os maridos, excitados, apalpam as excitadas esposas e, calhando, alguma que não o seja, o povo é feliz enquanto o touro tenta fugir aos seus verdugos deixando atrás de si regueiros de sangue. É atroz, é cruel, é obsceno. Mas isso que importa se Cristiano Ronaldo vai jogar pelo Real Madrid? Que importa isso num momento em que o mundo inteiro chora a morte de Michael Jackson? Que importa que uma cidade faça da tortura premeditada de um animal indefenso uma festa colectiva que se repetirá, implacável, no ano seguinte? É isto cultura? É isto civilização? Ou será antes barbárie?
José Saramago, O CADERNO

terça-feira, 26 de junho de 2012

Dia 26 [Junho de 2009]

Formação (2)
Aonde pretendo chegar com este arrazoado? À universidade. E também à democracia. À universidade porque ela deverá ser tanto uma instituição dispensadora de conhecimentos como o lugar por excelência de formação do cidadão, da pessoa educada nos valores da solidariedade humana e do respeito pela paz, educada para a liberdade e para a crítica, para o debate responsável das ideias. Argumentar-se-á que uma parte importante dessa tarefa pertence à família como célula básica da sociedade, porém, como sabemos, a instituição familiar atravessa uma crise de identidade que a tornou impotente perante as transformações de todo o tipo que caracterizam a nossa época. A família, salvo excepções, tende a adormecer a consciência, ao passo que a universidade, sendo lugar de pluralidades e encontros, reúne todas as condições para suscitar uma aprendizagem prática e efectiva dos mais amplos valores democráticos, principiando pelo que me parece fundamental: o questionamento da própria democracia. Há que procurar o modo de reinventá-la, de arrancá-la ao imobilismo da rotina e da descrença, bem ajudadas, uma e outra, pelos poderes económico e político a quem convém manter a decorativa fachada do edifício democrático, mas que nos têm impedido de verificar se por trás dela algo subsiste ainda. Em minha opinião, o que resta é, quase sempre, usado muito mais para armar de eficácia as mentiras que para defender as verdades. O que chamamos democracia começa a assemelhar-se tristemente ao pano solene que cobre a urna onde já está apodrecendo o cadáver. Reinventemos, pois, a democracia antes que seja demasiado tarde. E que a universidade nos ajude. Quererá ela? Poderá ela?
José Saramago, O CADERNO

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Dia 25 [Junho de 2009]

Formação (1)
Não ignoro que a principal incumbência assinada ao ensino em geral, e em especial ao universitário, é a formação. A universidade prepara o aluno para a vida, transmite-lhe os saberes adequados ao exercício cabal de uma profissão escolhida no conjunto de necessidades manifestada pela sociedade, escolha essa que se alguma vez foi guiada pelos imperativos da vocação, é com mais frequência resultante dos progressos científicos e tecnológicos, e também de interessadas demandas empresariais. Em qualquer caso, a universidade terá sempre motivos para pensar que cumpriu o seu papel ao entregar à sociedade jovens preparados para receberem e integrarem no seu acervo de conhecimentos as lições que ainda lhe faltam, isto é, as da experiência, madre de todas as coisas humanas. Ora, se a universidade, como era seu dever, formou, e se a chamada formação contínua fará o resto, a pergunta é inevitável: «Onde está o problema?» O problema está em que me limitei a falar da formação necessária ao desempenho de uma profissão, deixando de lado outra formação, a do indivíduo, da pessoa, do cidadão, essa trindade terrestre, três em um corpo só. É tempo de tocar o delicado assunto. Qualquer acção formativa pressupõe, naturalmente, um objecto e um objectivo. O objecto é a pessoa a quem se pretende formar, o objectivo está na natureza e na finalidade da formação. Uma formação literária, por exemplo, não apresentará mais dúvidas que as que resultarem dos métodos de ensino e da maior ou menor capacidade de recepção do educando. A questão, porém, mudará radicalmente de figura sempre que se trate de formar pessoas, sempre que se pretenda incutir no que designei por «objecto», não apenas as matérias disciplinares que constituem o curso, mas um complexo de valores éticos e relacionais teóricos e práticos indispensáveis à actividade profissional. No entanto, formar pessoas não é, por si só, um aval tranquilizador. Uma educação que propugnasse ideias de superioridade racial ou biológica estaria a perverter a própria noção de valor, pondo o negativo no lugar do positivo, substituindo os ideais solidários do respeito humano pela intolerância e pela xenofobia. Não faltam exemplos na história antiga e recente da humanidade. Continuaremos.
José Saramago, O CADERNO

domingo, 24 de junho de 2012

Dia 24 [Junho de 2009]

Sabato
Quase cem anos, noventa e oito exactos, são os que hoje está cumprindo Ernesto Sabato, cujo nome escutei pela primeira vez no velho Café Chiado, em Lisboa, aí pelos remotos anos 50. Pronunciou-o um amigo que inclinava os seus gostos literários para as então mal conhecidas literaturas sul-americanas, ao passo que nós, os outros membros da tertúlia que ali nos reunia ao fim da tarde, pendíamos, quase todos, para a doce e então ainda imortal França, salvo algum excêntrico que se gabava de conhecer de cor e salteado o que nos Estados Unidos se escrevia. A esse amigo, que acabei por perder no caminho, devo a incipiente curiosidade que me levou a nomes como Julio Cortázar, Borges, Bioy Casares, Astúrias, Rómulo Gallegos, Carlos Fuentes, e tantos outros que se me atropelam na memória quando os convoco. E havia Sabato. Por um qualquer fenómeno acústico associei as três rápidas sílabas a um súbito golpe de punhal. Conhecido como é o significado desta palavra italiana, a associação haverá de parecer o que há de mais incongruente, mas as verdades são para se dizerem, e esta é uma delas. El túnel tinha sido publicado em 1948, mas eu não o havia lido. Nessa altura, com os meus inocentes 26 anos, ainda seria muito o pão e o sal que teria de comer antes de descobrir o caminho marítimo que haveria de conduzir-me a Buenos Aires… Foi aquele meu inesquecível companheiro de mesa de café quem me proporcionou a leitura do romance. Logo às primeiras páginas percebi até que ponto havia saído exacta a ousada associação de ideias que me havia levado de um apelido a um punhal. As leituras seguintes que fiz de Sabato, quer dos romances quer dos ensaios, só viriam confirmar aquela minha intuição inicial, a de que me encontrava perante um autor trágico e eminentemente lúcido que, além de ser capaz de abrir caminho pelos corredores labirínticos do espírito dos leitores, não lhes consentia, nem por um só instante, que desviassem os olhos dos mais obscuros recantos do ser. Leitura por isso difícil? Talvez, mas leitura fascinante entre todas. A amálgama de surrealismo, existencialismo e psicanálise que constitui o suporte «doutrinário» das ficções do autor de Sobre héroes y tumbas, não nos deveria fazer esquecer que este autoproclamado «inimigo» da razão que se chama Ernesto Sabato é à falível e humilde razão humana que acabará por apelar quando os seus próprios olhos se enfrentarem a esse outro apocalipse que foi a sangrenta repressão sofrida pelo povo argentino. Romances que se reportam a épocas historicamente determinadas e a lugares objectivamente definidos, El túnel, Sobre héroes y tumbas, Abbadón el exterminador não fazem ouvir somente o grito de uma consciência afligida pela sua própria impotência e a visão profética de uma sibila a quem o futuro aterra, também nos avisam de que, tal como Goya (mais conhecido como pintor que como filósofo…) já havia deixado constância na famosa gravura dos Caprichos: foi sempre do sono da razão que nasceu, cresceu e prosperou a inumana genealogia dos monstros.
Querido Ernesto, é entre o temor e o tremor que decorrem as nossas vidas, e a tua não podia ser excepção. Mas talvez não se encontre nos dias de hoje uma situação tão dramática como a tua, a de alguém que, sendo tão humano, se nega a absolver a sua própria espécie, alguém que a si próprio não perdoará nunca a sua condição de homem. Nem todos te agradecerão a violência. Eu peço-te que não a desarmes. Cem anos, quase. Estou certo de que ao século que acabou se virá a chamar também o século de Sabato, como o de Kafka ou o de Proust.
José Saramago, O CADERNO

sábado, 23 de junho de 2012

Dia 23 [Junho de 2009]

Sastre
Conheci o dramaturgo Alfonso Sastre há mais de trinta anos. Foi o nosso único encontro. Nunca lhe escrevi, nunca recebi uma carta sua. Fiquei com a impressão de um carácter áspero, duro, nada complacente, que não facilitou o diálogo, ainda que não o tivesse dificultado. Não voltei a saber dele, salvo por ocasionais e pouco expressivas notícias de imprensa, sempre relacionadas com a sua militância política nas fileiras abertzales. Nas últimas semanas, o nome de Alfonso Sastre voltou a aparecer como candidato cabeça-de-lista às eleições europeias, integrado numa Iniciativa Internacionalista de recente formação. A agrupação não obteve representação no parlamento de Estrasburgo.
Há poucos dias a ETA assassinou o polícia Eduardo Puelles pelo quase sempre infalível processo da bomba-lapa colocada na parte inferior dos carros. A morte foi horrível, o incêndio carbonizou o corpo do infeliz, a quem não houve maneira de acudir. Este crime suscitou em toda a Espanha um movimento geral de indignação. Geral, não. Alfonso Sastre acaba de publicar no jornal basco Gara um artigo ameaçador em que fala de «tempos de muita dor em lugar de paz», ao mesmo tempo que justifica os atentados como parte de um «conflito político», acrescentando que mais atentados haverá se não for aberta uma negociação política com a ETA. Quase não acredito no que leio. Não foi Sastre quem fixou a bomba no carro de Eduardo Puelles, mas o que eu não esperava era vê-lo como valedor de assassinos.
José Saramago, O CADERNO

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Dia 22 [Junho de 2009]

Regresso
O elefante gostou do que viu e fê-lo saber à companhia, embora em nenhum ponto o itinerário que escolhemos tivesse coincidido com aquele que a sua memória de elefante zelosamente guardava. Que haviam, disse, ele e os soldados de cavalaria, subido para o norte quase a pisar a linha da fronteira, por isso eram os caminhos tão ruins. Comparada com a viagem de então, esta foi um passeio: boas estradas, bons alojamentos, bons restaurantes, o próprio arquiduque, ainda que habituado aos luxos da Europa central, teria ficado surpreendido. A expedição foi para trabalhar, mas disfrutou como se andasse de férias. Até os sofridos câmaras, obrigados a carregar com equipamentos de sete quilos ao ombro, estavam encantados. O interessante é que nem os nossos amigos, nem os jornalistas conheciam os lugares que visitámos. Melhor para eles, que dali levaram muito que contar e recordar. Começámos por Constância, onde se crê que Camões viveu e teve casa, de cujas janelas terá visto mil vezes o abraço do Zêzere e do Tejo, aquele suave remanso da água na água capaz de inspirar os versos mais belos. Dali fomos para Castelo Novo para ver a Casa da Câmara, do tempo de D. Dinis, e o chafariz joanino que lhe está pacificamente encostado. Vimos também a lagariça, essa espécie de dorna ao ar livre para a pisa das uvas, cavada na rocha bruta em tempos que se acredita serem os da pré-história. Dormimos no Fundão, terra de cerejas por excelência, e na manhã seguinte ala para Belmonte onde nasceu Pedro Álvares Cabral, direitos à igreja de S. Tiago, da minha particular devoção. Ali está uma das mais comovedoras esculturas românicas que existem na face da terra, uma pietà de granito toscamente pintado, com um Cristo exangue deitado sobre os joelhos da sua mãe. Ao pé desta estátua, a célebre pietà de Miguel Ângelo que se encontra no Vaticano não passa de um suspiro maneirista. Não foi fácil arrancar o pessoal à extática contemplação em que havia caído, mas lá os conseguimos levar aliciando-os com o enigma arquitectónico de Centum Cellas, essa construção inacabada cuja problemática finalidade foi e continua e ser objecto das mais acaloradas discussões. Seria uma torre de vigia? Uma hospedaria para viajantes de passagem? Uma prisão, embora o neguem as rasgadas janelas que subsistem? Não se sabe. Saciada a fome de imagens, o destino seguinte seria Sortelha, a das muralhas ciclópicas. Ali nos caiu em cima uma trovoada como poucas, relâmpagos em rajada, trovões a condizer, chuva a cântaros e granizo que era como metralha. Não chegámos a beber o café, a corrente eléctrica sumira-se. Uma hora foi o que demorou o céu a escampar. Ainda chovia quando entrámos no autocarro, a caminho de Cidadelhe, sobre o qual não escreverei. Remeto o leitor interessado e de boa vontade para as quatro ou cinco páginas que lhe dediquei na Viagem a Portugal. Os companheiros arregalaram os olhos perante o pálio de 1707, depois foram ver aldeia, os relevos nas portas das casas, os caixotões da igreja matriz com retratos de santos. Vinham transfigurados e felizes. Agora só faltava Castelo Rodrigo. O presidente da câmara municipal de Figueira de Castelo Rodrigo esperava-nos na ponte sobre o Côa, a pouca distância de Cidadelhe. De Castelo Rodrigo eu conservava a imagem de há trinta anos, quando lá fui pela primeira vez, uma vila velha decadente, em que as ruínas já eram só uma ruína de ruínas, como se tudo aquilo estivesse a desfazer-se em pó. Hoje vivem 140 pessoas em Castelo Rodrigo, as ruas estão limpas e transitáveis, foram recuperadas as fachadas e os interiores, e, sobretudo, desapareceu a tristeza de um fim que parecia anunciado. Há que contar com as aldeias históricas, elas estão vivas. Eis a lição desta viagem.
José Saramago, O CADERNO

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Biblioteca Municipal recebe o poeta Manuel António Pina esta sexta feira

Na abertura do programa comemorativo do 20.º aniversário, a Biblioteca Municipal Manuel de Boaventura, de Esposende, vai promover um encontro com o poeta, autor de livros infantis e tradutor Manuel António Pina. A iniciativa decorrerá na próxima sexta-feira, dia 22 de Junho, pelas 21h00, na Biblioteca Municipal, e tem entrada livre.

Nesta sessão será exibido parte do documentário "Um Sítio Onde Pousar a Cabeça", da autoria do jornalista Alberto Serra, com realização de Ricardo Espírito Santo, que revela Manuel António Pina na primeira pessoa, com testemunhos de amigos, familiares e especialistas da sua obra, através de uma narrativa audiovisual que abarca a poesia, crónica, a literatura para crianças e o teatro.

Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, Manuel António Pina foi jornalista, editor e chefe de redacção do Jornal de Notícias. É actualmente colunista da revista Visão e tem colaboração dispersa por outros órgãos de comunicação social, entre imprensa, rádio e televisão. Foi professor da Escola Superior de Jornalismo do Porto e membro do Conselho de Imprensa.

A sua obra foi já homenageada com diversos prémios, como, por exemplo, o Prémio Literário da Casa da Imprensa, em 1978, por “Aquele Que Quer Morrer”; o Grande Prémio Gulbenkian de Literatura para Crianças e Jovens e a Menção do Júri do Prémio Europeu Pier Paolo Vergerio da Universidade de Pádua, em 1988, por “O Inventão”; o Prémio do Centro Português de Teatro para a Infância e Juventude, em 1988, pelo conjunto da obra; o Prémio Nacional de Crónica Press Clube/Clube de Jornalistas, em 1993, pelas suas crónicas; o Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários, em 2001, por “Atropelamento e Fuga”; e ainda o Prémio de Poesia Luís Miguel Nava e o Grande Prémio de Poesia da APE/CTT, ambos pela obra “Os Livros”, recebidos em 2005. Em 2011, foi-lhe atribuído o Prémio Camões.

O programa comemorativo prossegue no sábado, dia 23, com a realização da tertúlia “Biblioteca, 20 anos de histórias e de afectos: a voz dos leitores e dos protagonistas”. A partir das 17h15, estarão à mesma mesa os protagonistas de então, Alberto Queiroga Figueiredo (Presidente da Câmara Municipal), Penteado Neiva (Vereador da Cultura) e António Maranhão Peixoto (Bibliotecário) e os de hoje, Benjamim Pereira (Vice-Presidente da Câmara Municipal), Jaqueline Areias (Vereadora da Cultura) e Maria Luísa Leite (Bibliotecária), num diálogo com os leitores e público sobre a importância da Biblioteca na vida da comunidade.

Entre a inauguração da actual biblioteca, ocorrida a 25 de Junho de 1992, e o presente houve grandes transformações na vida cultural, social e económica do concelho e do país. Assim, nesta conversa serão abordadas as expectativas de então, revelados os sonhos que estiveram na génese da criação da biblioteca, uma das primeiras da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas, assim como os desafios actuais e haverá oportunidade também para perceber o que os leitores sentem da sua biblioteca. São histórias, memórias e afectos numa tertúlia informal e intimista.

Fonte: CME

"Festa da sardinha" no Mercado Municipal

De 21 a 24 de Junho decorre em Esposende, no edifício do Mercado Municipal, a "Festa da sardinha", um evento gastronómico da iniciativa da Associação Desportiva de Esposende.

Aproveitando o ambiente sanjoanino e as diversas iniciativas que decorrem na cidade, os responsáveis da ADE repetem este evento para angariar receitas, crentes na atractividade da animação e no regresso do bom tempo.

Dizem que a sardinha "já está bem boa" e por isso abrem as portas a partir das 19h30 dos próximos dias.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Dia 18 [Junho de 2009]

Em Castelo Novo
Há mais de 30 anos escrevi:
Castelo Novo é uma das mais comovedoras lembranças do viajante. Talvez um dia volte, talvez não volte nunca, talvez até evite voltar, apenas porque há experiências que não se repetem. Como Alpedrinha, está Castelo Novo construído na falda do monte. Daí para cima, cortando a direito, chegar-se-ia ao ponto mais alto da Gardunha. O viajante não tornará a falar da hora, da luz, da atmosfera húmida. Pede apenas que nada disto seja esquecido enquanto pelas íngremes ruas sobe, entre as rústicas casas, e outras que são palácios, como este, seiscentista, com o seu alpendre, a sua varanda de canto, o arco profundo de acesso aos baixos, é difícil encontrar construção mais harmoniosa. Fiquem pois a luz e a hora, aí paradas no tempo e no céu, que o viajante vai ver Castelo Novo. Também escrevi sobre pessoas concretas há trinta anos: A uma velhinha que à sua porta aparece, pergunta o viajante onde fica a Lagariça. É surda a velhinha, mas percebe se lhe falarem alto e puder olhar de frente. Quando entendeu a pergunta, sorriu, e o viajante ficou deslumbrado, porque os dentes dela são postiços, e contudo o sorriso é tão verdadeiro, e tão contente de sorrir, que dá vontade de a abraçar e pedir-lhe que sorria outra vez. De José Pereira Duarte, uma das pessoas mais bondosas que conheci na minha vida escrevi que olha o viajante como quem mira um amigo que já ali não aparecesse há muitos anos, e toda a sua pena, diz, é que a mulher esteja doente, de cama: «Senão gostava que estivesse um bocadinho em minha casa.» Hoje estivemos com a filha e o genro de José Pereira Duarte, a velhinha já não está, mas outras pessoas amáveis apareceram em Castelo Novo e voltei a sair com o mesmo espírito de há trinta anos. Se o elefante Salomão por aqui passou, as pessoas que compunham a comitiva terão sentido o mesmo. Acolhimentos como estes não se improvisam.
José Saramago, O CADERNO

domingo, 17 de junho de 2012

Dia 17 [Junho de 2009]

O elefante em viagem
Os leitores recordarão que os nomes das duas aldeias que a expedição encontrou no seu caminho para Figueira de Castelo Rodrigo nunca foram mencionados pelo narrador da história. Essas aldeias, tal como se encontram descritas, foram simples inventos necessários à ficção e não tinham nem têm qualquer correspondência na vida real. Parecerá portanto abusivo aos amantes do rigor histórico que Salomão esteja a preparar-se hoje para uma viagem que, não sendo documentalmente a que foi, bem o poderia ter sido, ainda que dela não tenha ficado qualquer registo. A vida traz muitos acasos no bolso e não se pode excluir que, em um ou outro caso, a letra tenha acertado com a tabuleta. É certo que a História não diz que Salomão tivesse pisado terras de Castelo Novo, Sortelha ou Cidadelhe, mas também é impossível jurar que tal não sucedeu. Dessa obviedade nos servimos, nós, Fundação José Saramago, para idear e organizar uma viagem que vai começar hoje em Belém, diante do Mosteiro dos Jerónimos e nos levará à fronteira, lá em cima, onde aconteceu aquilo dos couraceiros austríacos que pretendiam levar o elefante ao arquiduque. Que o itinerário é arbitrário, protestará o leitor, nós, porém, se no-lo permitem, preferiremos chamar-lhe um dos inúmeros possíveis. Andaremos por fora dois dias e do que neles se passar faremos relato. Quem vai? Vai a Fundação em peso, vão mais uns poucos amigos fixes de Salomão, jornalistas portugueses e espanhóis, tudo boa gente. Ficai em paz. Até ao nosso regresso, adeus, adeus.
José Saramago, O CADERNO

sábado, 16 de junho de 2012

Dia 16 [Junho de 2009]

Netanyahu
Só porque não podia continuar calado é que falou. Encostado à parede pelo presidente dos Estados Unidos, o primeiro-ministro israelita condescendeu, finalmente, em admitir a criação de um Estado palestino. Não foi mais longe. Ou sim, exigiu que esse futuro Estado (sê-lo-á alguma vez?) não tenha exército e que o seu espaço aéreo seja controlado por Israel. Quer dizer, novas formas de manter os palestinos na situação de menoridade política em que têm sido forçados a viver pela opressão judaica. No entanto, o outro ponto essencial da posição de Barack Obama, o dos assentamentos e dos colonos, não mereceu a Netanyahu uma única palavra. Ora, todo o mundo sabe que a Cisjordânia, em teoria espaço «nacional» do povo palestino, está coberto de assentamentos, uns «legais» (isto é, autorizados e construídos pelo governo de Tel-Aviv), outros «ilegais» (aqueles a que o mesmo governo tem feito vista grossa). No total, são mais de 200 assentamentos e neles vivem meio milhão de colonos, que hoje, a todas as luzes, se apresentam como o maior obstáculo à paz, além do reconhecimento do direito dos palestinos a um Estado independente e viável. Já o havia feito antes o próprio Bush pai quando fez ver a Israel que querer falar ao mesmo tempo de paz e assentamentos era uma contradição insanável. Disto parecia estar consciente o ex-primeiro-ministro Ehud Olmert que em declarações ao jornal Haaretz em Novembro de 2007 disse que se não se chegasse rapidamente a uma solução com dois Estados, «o Estado de Israel estaria acabado». Não fez nada para que a questão se resolvesse, mas as palavras aí ficam. Elas ajudam a compreender como os colonos sempre foram a espada de Dâmocles suspensa sobre os governos israelitas e agora, por maioria de razão, sobre a cabeça de Netanayahu. Creio que Israel vive sob o medo de ter de voltar à diáspora, à dispersão pelo mundo que parece ser o seu destino. A mim não me alegra nada, mas haveria que ver se os judeus de Israel tiveram os governos de que a paz necessitava. Dêem-lhe as voltas que quiserem, a resposta é negativa.
José Saramago, O CADERNO

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Dia 15 [Junho de 2009]

Miguéis
Conheci José Rodrigues Miguéis algum tempo depois de, no ano de 1959, ter começado a trabalhar na Editorial Estúdios Cor, de que eram proprietários, meio por meio, Manuel Correia e Fernando Canhão, e director literário Nataniel Costa. Miguéis havia publicado, um ano antes, o livro de contos e novelas Léah, excelentemente acolhido pelo público e pela crítica de então. Foi essa a primeira obra que li dele, e não necessito dizer que me entusiasmou. Não sei exactamente quando conheci Miguéis em pessoa, que por aqueles dias estaria nos Estados Unidos. O que, sim, sei, é que desde a narrativa Um Homem Sorri à Morte com Meia Cara, publicada em 1959, até ao romance Nikalai! Nikalai!, que apareceria em 1971, passando por A Escola do Paraíso e O Passageiro do Expresso, ambos de 1960, Gente da Terceira Classe, 1962, e É Proibido Apontar, 1964, os meus contactos com José Rodrigues Miguéis foram constantes, praticamente diários quando se encontrava em Portugal, frequentes, por carta, quando regressava aos Estados Unidos. Essa correspondência, que mereceu ser escolhida para a tese de doutoramento de José Albino Pereira (e no mesmo plano ponho a correspondência trocada com Jorge de Sena), dá-me o direito de dizer que não tenho feito má figura neste mundo. A minha relação epistolar com Miguéis só se rompeu quando saí da Editorial, nos finais de 1971. Vi-o alguma vezes, poucas, depois, não houve mais cartas, que eu recorde, mas ficou-me para sempre a recordação de uma personalidade extraordinária, com uns dons oratórios fora do comum e uma memória capaz de recriar em poucas palavras as situações mais complexas. Uma simples conversa com ele era um presente real, dialogar com a sua brilhante inteligência tornava mais inteligente o interlocutor. Pessoalmente, e sem querer gabar-me por isso, aproveitei desses momentos o melhor que pude. Morreu há quase trinta anos, mas recordo-o como se fosse ontem.
Hoje, às 18.30, na Casa do Alentejo, a Fundação José Saramago organizará uma sessão sobre José Rodrigues Miguéis. Além do autor deste blogue, participarão especialistas da sua obra, como David Brookshaw, Duarte Barcelos, José Albino Pereira, Teresa Martins Marques e Onésimo Teotónio de Almeida. Contamos consigo que me está lendo.
José Saramago, O CADERNO

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Coimbra, 14 de Junho de 1980

A Europa! No que deu a mais bela e prendada das eleitas de Zeus! Sem arrebatamento, sem esperança, ocupada económica, ideológica e militarmente, submetida, resignada à perdição! Mesmo os que lutam, lutam vencidos. É já só por brio que resistem. Depois de uma longa e dolorosa experiência em que as ilusões e as desilusões se sucederam, todos sabemos agora, à nossa própria custa,  que  não é impunemente que se sacrifica, aos deuses espúrios da hora, quaisquer que sejam os seus poderes de sedução ou de opressão. Um génio com brasão de três mil anos abriu mão perdulária das razões da sua legitimidade, como se lhe bastassem o usufruto do mito e os pergaminhos do seu cansaço. Delegou a voz activa. Consentiu em ser apenas o eco precioso de expressões alheias, esquecido de que não é possível manter uma identidade singular por procuração.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Dia 12 [Junho de 2009]

Corpo de Deus
Também lhe chamam Corpus Christi e é «dia de preceito» para os católicos, além de feriado oficial. Todos os fiéis deverão ir à missa (ser «dia de preceito» a tal obriga) para dar testemunho da presença real e substancial de Cristo na hóstia. E nada de pôr-se com dúvidas sobre a divina presença na pastilha ázima como sucedeu a um sacerdote chamado Pedro de Praga, no século XIII, não seja que se repita o tremebundo milagre de ver a hóstia transformar-se em carne e sangue, não simbólicos, mas autênticos, e ter de levar outra vez a sanguinolenta prova em solene procissão para a catedral de Oviedo, como complacentemente no-lo explica Wikipedia, fonte a que neste difícil transe tive de recorrer. O mundo era interessantíssimo naquele tempo. Hoje, o milagre de recuperar a economia e a banca passa por imprimir milhões de dólares a uma velocidade de vertigem e pô-los a circular, preenchendo assim um vazio com outro vazio, ou, por palavras menos arriscadas, substituindo a ausência de valor por um valor meramente suposto que só durará o que durar o consenso que o admitiu.
Mas não era da crise que eu queria escrever. Em todo o caso, como já se vai ver, a menção ao Corpo de Deus não foi gratuita nem simples pretexto para fáceis heresias, como costumam ser as minhas, segundo canónicas e abalizadas opiniões. Há alguns dias, no 28 de Maio para ser mais exacto, um boliviano de 33 anos, de nome Fraans Rilles, emigrante «sem papéis» e sem contrato, que trabalhava numa padaria em Gandia (Espanha), foi vítima de grave acidente, uma máquina de amassar cortou-lhe o braço esquerdo. É certo que os patrões tiveram a caridade de o levar ao hospital, mas deixaram-no a 200 metros da porta com uma recomendação: «Se te perguntam, não digas nada da empresa». Como seria de esperar, os médicos pediram o braço para tentar reimplantá-lo, mas tiveram de desistir da ideia perante o mau estado em que se encontrava. Tinham-no atirado ao lixo.
Afinal, eu não queria escrever sobre o Corpo de Deus. Como é meu costume, uma coisa levou a outra, mas era do Corpo do Homem que eu pretendia realmente falar, esse corpo que, desde a primeira manhã dos tempos, vem sendo maltratado, torturado, despedaçado, humilhado e ofendido na sua mais elementar dignidade física, um corpo a quem agora foi arrancado um braço e a quem foi ordenado que se calasse para não prejudicar a empresa. Espero que os fiéis que hoje acorreram à missa e leram a notícia no jornal tenham tido um pensamento para a carne sofredora e o sangue derramado deste homem. Não peço que o ponham num altar. Só peço que pensem nele e em tantos como ele. Diz-se que todos somos filhos de Deus. Não é verdade, mas com esta falsidade se consolam muitos. Deus não valeu a Fraans Rilles, vítima da máquina de amassar pão e da crueldade da gente sem escrúpulos que explorava a sua força de trabalho. Assim vai o mundo e não haverá outro.
José Saramago, O CADERNO

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Dia 11 [Junho de 2009]

Epitáfio para Luís de Camões

Que sabemos de ti, se versos só deixaste,
Que lembrança ficou no mundo que tiveste?
Do nascer ao morrer ganhaste os dias todos,
Ou perderam-te a vida os versos que fizeste?

Estas quatro perguntas foram retiradas do livro Os Poemas Possíveis, publicado em 1966. Até hoje, mais de quarenta anos passados, ainda não lhes encontrei resposta. Talvez nem a tenham. Escrevo isto em 10 de Junho, aniversário da morte do autor de Os Lusíadas, livro fundamental da literatura portuguesa. Camões morreu pobre e esquecido, embora hoje os escritores em língua portuguesa vivam como uma honra única receber o Prémio que leva o seu nome.
José Saramago, O CADERNO

Coimbra, 11 de Junho de 1980.

– É um homem crucificado pelo demónio do escrúpulo, que vive na insegurança das suas opções. E é difícil ajudá-lo, porque no fundo só confia na própria indecisão. Há naturezas assim, fortes na fraqueza, tetanizadas na debilidade. Que não aceitam favores do destino e apenas se legitimam nos desaires. Que não sabem viver, mas dão à vida horas suplementares.

domingo, 10 de junho de 2012

Coimbra, 10 de Junho de 1980.

MELANCOLIA

Longamente esperei.
Nenhum encontro estava combinado.
Era apenas fiado
Na intuição do amor
Que confiava.
Afinal, não vieste.
E adivinho o motivo:
O lume da velhice não aquece.
Arde e parece
Vivo,
Mas arrefece.

Dia 10 [Junho de 2009]

Uma boa ideia
Talvez não seja mais que uma gota de água doce caindo no amargo oceano do cepticismo e da indiferença, mas creio que deveríamos alegrar-nos por uma boa ideia agora posta em marcha em Espanha, na província de Granada, a qual consistirá em celebrar, anualmente, a entrada na maioridade, não apenas administrativa, mas também cívica dos jovens que cumprirão 18 anos. A cada um deles será entregue a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Constituição Espanhola e o Estatuto de Autonomia de Andaluzia. Haverá, claro está, outros actos celebratórios, mais lúdicos, de menor teor de solenidade, mas, como as coisas sérias só seriamente deverão ser tratadas, diga-se que apetrechar os onze mil jovens que se calcula irão dar, de cada vez, o passo em frente que os vai fazer entrar num tempo diferente, o da responsabilização da civilidade, apetrechá-los, digo, com essas três peças fundamentais não poderá deixar de contribuir para uma formação mais sólida, mais consciente, dos novos cidadãos. A ideia é boa e oxalá se generalize. Fazer dela uma festa cívica colectiva irá necessitar muita criatividade e empenho, mas esses, certamente, não faltarão.
A gota de água doce a que me referi no princípio não caiu no mar salgado, mas na minha mão. Sorvi-a como se matasse uma sede nestes dias em que a frustração caiu sobre muitos de nós, vendo como se estão alegrando as forças políticas europeias de direita e de extrema-direita. A democracia ainda não está em perigo, mas é de nós que depende impedir que tal aconteça. Granada está no bom caminho.
José Saramago, O CADERNO

sábado, 9 de junho de 2012

Dia 9 [Junho de 2009]

Paradoxal
Outras vezes me perguntei por onde andava a esquerda, e hoje tenho a resposta: por aí algures, humilhada, a contar os míseros votos recolhidos e à procura de explicações por os ver tão poucos. O que chegou a ser, no passado, uma das maiores esperanças da humanidade, capaz de mobilizar vontades pelo simples apelo ao que de melhor caracterizava a espécie humana, e que veio criando, com a passagem do tempo, as mudanças sociais e os erros próprios, as suas próprias perversões internas, cada dia mais longe das promessas primeiras, assemelhando-se mais e mais aos adversários e aos inimigos, como se essa fosse a única maneira de se fazer aceitar, acabou por cair em meras simulações, nas quais conceitos doutras épocas chegaram a ser utilizados para justificar actos que esses mesmos conceitos haviam combatido. Ao deslizar progressivamente para o centro, movimento proclamado pelos seus promotores como demonstração de uma genialidade táctica e de uma modernidade imparável, a esquerda parece não ter percebido que se estava a aproximar da direita. Se, apesar de tudo isto, ainda é capaz de aprender com uma lição, esta que acaba de receber vendo a direita passar à sua frente em toda a Europa, então terá de interrogar-se sobre as causas profundas do distanciamento indiferente das suas fontes naturais de influência, os pobres, os necessitados, mas também os sonhadores, em relação ao que ainda resta das suas propostas. Não é possível votar na esquerda se a esquerda deixou de existir.
Curiosamente, e este é o paradoxo, o político a quem o título deste comentário se refere, é precisamente aquele que nesta altura preside aos destinos do país que desde há longuíssimo tempo tem desenvolvido uma política em todos os aspectos imperial e conservadora: Barack Obama. Dá que pensar. Uma acção política que, como tenho dito, pouco mais pretende que salvar os móveis de um capitalismo desregrado que esteve a ponto de devorar-se a si mesmo, aparece-nos agora, quase quase, como a realização de um sonho da esquerda. Aposto que muita gente, progressistas, socialistas, comunistas, anda por aí a perguntar-se: «E se Obama fosse presidente do meu partido?» Talvez seja a situações como esta que chamamos a ironia da História… Talvez seja, tão-somente, a importância do factor pessoal.
José Saramago, O CADERNO

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Dia 8 [Junho de 2009]

A coisa Berlusconi
Este artigo, com este mesmo título, foi publicado ontem no jornal espanhol El País, que expressamente mo havia encomendado. Considerando que neste blogue fiz alguns comentários sobre as façanhas do primeiro-ministro italiano, estranho seria não recolher aqui este texto. Outros haverá no futuro, seguramente, uma vez que Berlusconi não renunciará ao que é e ao que faz. Eu também não.
A Coisa Berlusconi
Não vejo que outro nome lhe poderia dar. Uma coisa perigosamente parecida a um ser humano, uma coisa que dá festas, organiza orgias e manda num país chamado Itália. Esta coisa, esta doença, este vírus ameaça ser a causa da morte moral do país de Verdi se um vómito profundo não conseguir arrancá-la da consciência dos italianos antes que o veneno acabe por corroer-lhes as veias e destroçar o coração de uma das mais ricas culturas europeias. Os valores básicos da convivência humana são espezinhados todos os dias pelas patas viscosas da coisa Berlusconi que, entre os seus múltiplos talentos, tem uma habilidade funambulesca para abusar das palavras, pervertendo-lhes a intenção e o sentido, como é o caso do Pólo da Liberdade, que assim se chama o partido com que assaltou o poder. Chamei delinquente a esta coisa e não me arrependo. Por razões de natureza semântica e social que outros poderão explicar melhor que eu, o termo delinquente tem em Itália uma carga negativa muito mais forte que em qualquer outro idioma falado na Europa. Foi para traduzir de forma clara e contundente o que penso da coisa Berlusconi que utilizei o termo na acepção que a língua de Dante lhe vem dando habitualmente, embora seja mais do que duvidoso que Dante o tenha utilizado alguma vez. Delinquência, no meu português, significa, de acordo com os dicionários e a prática corrente da comunicação, «acto de cometer delitos, desobedecer a leis ou a padrões morais». A definição assenta na coisa Berlusconi sem uma prega, sem uma ruga, a ponto de se parecer mais a uma segunda pele que à roupa que se põe em cima. Desde há anos que a coisa Berlusconi tem vindo a cometer delitos de variável mas sempre demonstrada gravidade. Além disso, não só tem desobedecido a leis como, pior ainda, as tem mandado fabricar para salvaguarda dos seus interesses públicos e particulares, de político, empresário e acompanhante de menores, e quanto aos padrões morais, nem vale a pena falar, não há quem não saiba em Itália e no mundo que a coisa Berlusconi há muito tempo que caiu na mais completa abjecção. Este é o primeiro-ministro italiano, esta é a coisa que o povo italiano por duas vezes elegeu para que lhe servisse de modelo, este é o caminho da ruína para onde estão a ser levados por arrastamento os valores que liberdade e dignidade impregnaram a música de Verdi e a acção política de Garibaldi, esses que fizeram da Itália do século XIX, durante a luta pela unificação, um guia espiritual da Europa e dos europeus. É isso que a coisa Berlusconi quer lançar para o caixote do lixo da História. Vão os italianos permiti-lo?
José Saramago, O CADERNO

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Solar de Mateus, 8 de Junho de 1980

Abri mais uma vez o Sésamo da infância. É nele que guardo o pecúlio com que vou saldando as contas do mundo.

«Há coincidências estranhas num destino humano. Nos meus remotos tempos de menino realizavam-se por esta altura, numa casa religiosa aqui de Mateus, uns para mim misteriosos retiros a que duas senhoras lá da minha aldeia assistiam invariavelmente. Viajavam de burro. E o arreeiro era sempre eu, descalço, às topadas nas pedras dos atalhos, a comer o pó levantado pelo chouto das ferraduras. Trazia-as à tardinha, pela fresca, voltava com as azémolas, e vinha busca-las na data aprazada. Este grande palácio, então fabuloso na imaginação popular – tinha trezentas e sessenta e cinco janelas como os dias do ano – balizava-me as emoções da caminhada. Quando o descortinava ao fundo da paisagem, cercado dos seus belos jardins e encimado pelos seus pináculos e chaminés, alegrava-se-me o coração. Era o alívio da chegada, o suor enxuto, o deslumbramento dos olhos. De regresso, montado numa das jumentas, mal o perdia de vista entrava em pânico. O toque das Trindades ressoava no vale. O sol escondia-se por detrás do Marão. Adensava-se o crepúsculo. O resto da jornada teria de ser feito a tactear a noite. E com dois lustros de idade não se enfrentam de ânimo leve os fantasmas da escuridão.
Ora quis o acaso que, quase no termo de uma atribulada existência, eu começasse a frequentar por minha vez, nesta hospitaleira mansão, outros periódicos recolhimentos menos obscuros no meu entendimento. E que no decorrer de um deles fosse surpreendido pela notícia de que, na honrosa companhia do grande poeta do Brasil, Carlos Drummond de Andrade, acabara de ser distinguido, com o Prémio Morgado de Mateus.
Sem querer forçar o paralelo, não-posso deixar, contudo, de associar no meu pensamento a imagem da criança de outrora à do homem encanecido de hoje. E associá-las num misto de humildade e conformação, a perguntar a mim mesmo se os caprichos da roda da fortuna nos permitirão evitar certas horas, boas ou más. Temperamentalmente avesso a galardões de qualquer natureza, acabei no entanto por aceitar alguns deles. É que não há uniformidade de critério possível perante a surpreendente e paradoxal diversidade da vida. Que poderia eu fazer? Recusá-los por sistema, pura e simplesmente? Assim procedi quando tudo dependia da minha exclusiva vontade. Noutras ocasiões, porém, não era tão fácil a opção. Ao fim e ao cabo, nem a liberdade é livre. Para se exercer necessita pelo menos de uma constelação de referendas. Sabem-no bem todos aqueles que, embora autónomos, se vinculam aos valores da comunidade em que se integram e às leis formais da correcção. Além de que não seria curial enjeitar homenagens quando o seu significado diz mais respeito à pátria e à cultura do que a si próprio.
Nenhuma palavra, por mais sincera, é capaz de dar cabal testemunho da aflição que sinto na pele de laureado, da pouca valia em que me tenho e da convicção em que estou de que outros poderiam substituir-me neste transe. Por isso, no momento em que – sob a égide do nobre diplomata que tanto contribuiu para o tomar conhecido na Europa letrada – festejamos o génio de Camões, limito-me a declarar solenemente que é em nome da glória da poesia que aceito a recompensa de lhe ter sido apenas fiel. E aceito-a, ainda, movido pela cisma de que Mateus tinha um sentido oculto na trama dos meus dias. Queria dizer principio e dizer fim. O princípio de que estou longe e o fim de que estou perto.
O rapazinho que, inocentemente, olhava estas paragens como o mais dilatado horizonte mítico do seu agro nativo, volta de novo aqui velho e cansado, depois de calcorrear todas as veredas da ilusão e da desilusão. E volta para quê? Os fados é que o sabem exactamente, eles que, na sua ambiguidade, participam ao mesmo tempo da fatalidade e da quimera. Racionalmente rebelde ao império dos agoiros, deixo-me tentar pelo devaneio. E ponho-me a imaginar que voltei para repetir noutra escala as emoções do passado, na secreta esperança de que o espírito que paira neste solar, e que a vossa generosidade quis que hoje incidisse também na minha pessoa, fique desta vez a iluminar o caminho que ainda me falta percorrer».

DIÁRIO (XIII)

S. Martinho de Anta, 7 de Junho de 1980 – A casa nativa, cerejas maduras, ninhos, flores… Mas não consigo encontrar-me nesta paz matricial e bucólica. É na aflição do dia de amanhã que já estou a viver hoje. 

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Crónica com um brinde do autor

Se tivesse de escolher três livros não tinha dúvidas nenhumas: Emílio e dos detectives, Aventuras de Dona Redonda, Proezas e Tropelias do Serapião Tobias. Isto ainda hoje. Li-os dúzias de vezes, com um prazer que jamais tornou a repetir-se, um maravilhamento, uma alegria que não voltei a encontrar. Melhor que os carrosséis, melhor que os carrinhos de choque, melhor que marcar um golo nos jogos de hóquei. A par dos livros o hóquei era a outra paixão. O meu pai esteve nos campeonatos da Europa de 1938, na Alemanha, fez parte do que chamavam O Time Maravilha, do Benfica, havia em casa uma caixa de lata, cheia de medalhas, com as quais se podia brincar, pôs-nos ao João e a mim em cima de patins, isto aos cinco ou seis anos, e levava-nos a patinar todos os domingos de manhã
– Mais curvas para a direita, mais curvas para a direita
aos treze estava no balneário do Futebol Benfica, onde um dos miúdos, ao equiparmo-nos, me apontou aos colegas
– O pai do Ruço é doutor 
e ninguém acreditou, o miúdo para mim, a fim de tirar dúvidas
– Diz lá que o teu pai é doutor
e eu confirmei, envergonhado, aos catorze ou isso o treinador do Benfica, o senhor Lisboa viu-nos patinar e no primeiro treino, na cabine cheia de retratos de antigas glórias, lá estava o meu pai, nunca tive tanto orgulho nele como nesse momento, muito mais tarde, numa entrevista para o jornal A Bola, vinha uma fotografia com ele e os outros à partida para o campeonato na Alemanha e eu cheio de orgulho outra vez, a sensação, para um garoto, de vestir a camisola com emblema e tudo. É engraçado: o meu pai, que não nos tocava ou me tocava para me bater, estava a assistir a um jogo nosso no pátio do meu avô
(lembro-me disto com uma nitidez absoluta)
marquei um golo a seguir a um lançamento da esquerda, numa sticada à primeira, e ele correu a abraçar-me
– Grande golo, grande golo
dizia ele
– Grande golo
todo a brilhar, e nunca mais me abraçou. Fiquei parvo com aquilo, ainda me sinto parvo com aquilo. Veio a correr e tudo
– Grande golo, grande golo
e, como foi o único abraço, deve ter sido a coisa melhor que para ele fiz na vida. Na época o que me interessava eram os livros e o hóquei, escrevia que me desunhava, rasgava tudo a seguir e, lateralmente, embasbacava-me com as meninas de botas brancas e sainhas curtas da patinagem artística, que treinavam antes de nós e às vezes ficavam por ali a assistir às proezas da gente. Nenhuma actriz de cinema, mesmo aquelas dos filmes históricos, me impressionou tanto. E doía-me no coração que não me ligassem nenhuma, nem sequer a esmola de um olhar, sentadas na bancada ao lado das mães. Eu não existia para elas, era um ruço qualquer. Julgo que os outros garotos sofriam o mesmo triste destino. Às vezes encontrava-as no eléctrico para o liceu, mas sem as botas brancas, as sainhas, e as piruetas meio desequilibradas perdiam a graça toda, a minha paixão esfumava-se e as actrizes dos filmes históricos imensas em ecrãs imensos, descobriam de imediato o unicórnio que existe em mim. O drama era que, se as patinadoras não me ligavam nenhuma, com as actrizes não me coube melhor sorte: está para nascer uma, uma só, não peço mais, que me piscasse o olho do ecrãs para o meu lugar no segundo balcão onde, com os companheiros de turma, ia fazendo asneiras e dizendo piadas parvas, porque os adolescentes são tão cretinos. Deviam ter sido fuzilados no berço. E daí não sei, há adolescentes defuntos que me perseguem ainda sob o manto protector da Igreja Católica, São Luís Gonzaga, etc., horríveis de virtude, ou a nossa Sãozinha, agora um pouco esquecida, que pena, que ofereceu a vida pela conversão dos pais e até possuía um almanaque só dela, o Almanaque da Sãozinha, que a minha avó assinava, onde devotos agradecidos relatavam milagres. Lembro-me de uma senhora muito crente, muito pobre e muito cheia de fome, que descobriu não ter nada para comer na despensa, rezou à Sãozinha e entrou-lhe um coelho pela casa dentro, que se deixou apanhar e cozinhar numa docilidade absoluta, enquanto perfumes celestiais inundavam a casa. Palavra de honra que é verdade, tenho esse número do Almanaque desde os doze anos ou isso, eu que não guardo nada, de pasmado que fiquei. E poupo-vos mais criaturas deste calibre, porque a única coisa pior do que um menino insuportável é um menino bonzinho. Pensando melhor já não fuzilo ninguém no berço, vivam as bestas sadias, preferíveis aos chatos dos milagres, sempre a oferecerem a vida pela conversão da Rússia Comunista que bebe o sangue dos jovens inocentes (sic) e dá injecções atrás da orelha aos nossos pais se os apanharem a jeito. Quando me contrariavam com qualquer coisa, pateta para eles e, para mim, vital, se tivesse uma seringa à mão injetava-os eu, não precisava de ajuda dos comunistas para nada, e ficava a vê-los torcerem-se no soalho
– Perdoa, filho
enquanto me afastava a assobiar, vingado. Pelos dez anos já tinha na consciência uma boa dúzia de cadáveres e não percebo porque não sou mais célebre do que Billy The Kid que, ao arrebatarem-no ao nosso convívio, matava dezanove pessoas não contando, explicava ele, os mexicanos. Escolher entre Billy the Kid e São Luís Gonzaga é um problema que nem sequer se põe. E quanto aos perfumes celestiais vou ali e já venho, quem é capaz de fazer amor com o Espírito Santo em cima levante o braço. Só os ilusionistas, talvez, consigam isso, de pombo no ombro e uma data deles a nascerem das mãos, mas com tanto pombo a nascer das mãos quem consegue abraçar, quanto mais. Há pessoas a quem basta uma pagela do Sagrado Coração de Jesus, cheio de espinhos, para que as hormonas se paralisem. Ou uma santinha fosforescente. O meu amigo José Cardoso Pires usava uma expressão para isto, e peço desculpa a ouvidos sensíveis: tira a tesão a um mocho. Ele achava, o pecador, que a fotografia do pai à cabeceira inibia, ao passo que a fotografia do marido ajudava, maridos a sorrirem na moldura, aprovando. Pergunto-me como pude ser amigo de uma criatura repugnante a este ponto, de maneira que o repreendia com severidade apontando-lhe, como dedo firme, o caminho da virtude, alto e fragoso, mas no fim doce, suave e deleitoso. Vêem como Os Lusíadas são capazes de meter um crápula nos eixos? E aí estou de acordo com o outro, que sustentava que a poesia deve ter por objectivo a verdade prática, estou de acordo mesmo ignorando o que verdade prática significa. Basta a palavra verdade para eu começar com problemas.
– O que é a verdade?
perguntava Pôncio Pilatos e, neste ponto, poderia começar um texto erudito de quinhentas páginas acerca do assunto. Por acaso apetece-me mas, por azar, não me dão mais espaço. E por não me darem mais espaço me cerro, como diziam os antigos. Que bonito, me cerro. Há qualquer coisa de flor nesta expressão e espero que a primeira leitora que apanhar este brinde grátis lhe pegue devagarinho e enfeite com ele o cabelo. 
 António Lobo Antunes

terça-feira, 5 de junho de 2012

Dia 5 [Junho de 2009]

Carlos Casares
Carlos Casares, o escritor galego que nestes dias me levou à Corunha, donde acabo de chegar, morreu em Março de 2002. Poucos meses depois, em Setembro do mesmo ano, criava-se a Fundação com o seu nome, que nos escassos anos decorridos pôs de pé um extraordinário programa de actividade cultural na região. Participei em mais uma edição dos «Diálogos de Mariñan», a sexta, desta vez sobre os mecanismos da memória e a sua utilização na criação literária. Foi meu parceiro no diálogo o escritor Manuel Rivas, um dos mais importantes continuadores dos grandes nomes da literatura galega do passado, como Torrente Ballester ou Cunqueiro. O auditório da Fundação Caixa Galicia, onde se realizou a sessão, estava cheio, o público interessadíssimo todo o tempo, e creio que Manuel Rivas e eu fizemos um bom trabalho, indo além de uma simples reflexão sobre a produção literária de cada qual. A prova foi que não recuámos perante assuntos tão espinhosos como o da memória automática…
Na Corunha há talvez uma meia dúzia de fundações que são, como toda a gente ali reconhece, os mais activos e eficientes dínamos culturais da cidade e dos povos em redor. Mensalmente contam-se por dezenas as acções de cultura por eles organizadas, tanto no domínio da literatura como no da música e das artes plásticas. Sem esquecer a componente social, que não é a menos importante. A população da Corunha vive as fundações que tem como algo indispensável à sua formação cultural e cívica. Também temos em Portugal fundações que, felizmente para elas e todos nós, gozam do favor do público. Mas não faltam os ultramontanos empedernidos ou os invejosos compulsivos, como aquele jornalista e opinante que perguntado sobre o que lhe parecia a criação da Fundação José Saramago (peço desculpa por ter de me autocitar) respondeu que as fundações só serviam para lavar dinheiro e fugir aos impostos. Deus lhe perdoe, que nós não podemos…
José Saramago, O CADERNO

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Dia 4 [Junho de 2009]

Laicismo
Anda acesa a questão do laicismo, a meu ver em termos não muito claros, porquanto parece querer ignorar-se a questão fundamental que subjaz ao debate: crer ou não crer na existência de um deus que, não só terá criado o universo e portanto a espécie humana, como virá a ser, no fim dos tempos, o juiz dos nossos cometimentos na terra, premiando as boas acções com a admissão num paraíso em que os eleitos contemplarão a face do Senhor durante toda a eternidade, enquanto, também por toda a eternidade, os culpados de acções más arderão no inextinguível fogo do inferno. Esse juízo final não será fácil, nem para deus nem para os que vão ter de prestar contas, pois não se conhece um único caso de alguém que, em vida, tenha cometido exclusivamente boas acções ou más acções. O próprio do homem é a inconstância nos propósitos e nos actos, sempre a contradizerem-se de uma hora para a outra. No meio de tudo isto, o laicismo aparece-me mais como uma posição política determinada mas prudente que como a emanação de uma convicção profunda da não existência de deus e portanto da impertinência lógica das instituições e dos instrumentos que pretendem impor o contrário à consciência da gente. Discute-se o laicismo porque, no fundo, se teme discutir o ateísmo. O interessante do caso, porém, é que a Igreja Católica, na sua velha tradição de fazer o mal e a caramunha, anda por aí a queixar-se de ser vítima de um suposto laicismo «agressivo», nova categoria que lhe permite insurgir-se contra o todo fingindo atacar apenas a parte. A duplicidade sempre foi inseparável das tácticas e das estratégias diplomáticas e doutrinais da cúria romana.
Seria de agradecer que a Igreja Católica Apostólica Romana deixasse de meter-se naquilo que não lhe diz respeito, isto é, a vida civil e a vida privada das pessoas. Não devemos, porém, surpreender-nos. À Igreja Católica importa pouco ou nada o destino das almas, o seu objectivo sempre foi controlar os corpos, e o laicismo é a primeira porta por onde começam a escapar-lhe esses corpos, e de caminho os espíritos, já que uns não vão sem os outros aonde quer que seja. A questão do laicismo não passa, portanto, de uma primeira escaramuça. A autêntica confrontação chegará quando finalmente se opuserem crença e descrença, indo esta à luta com o seu verdadeiro nome: ateísmo. O mais são jogos de palavras.
José Saramago, O CADERNO

domingo, 3 de junho de 2012

Dia 3 [Junho de 2009]

Viagens
Viemos de Lanzarote no último sábado, com escala em Sevilha, e depois por estrada até Lisboa. No domingo, como expliquei, fomos à Azinhaga por causa de estátua que lá foi posta. O plátano em frente da casa é um autêntico esplendor, uma gama de verdes riquíssima que atrai para uma demorada contemplação e me fez pensar: «Não mudes, deixa-te ser como és». Inútil desejo, virá o Verão com os seus calores, o Outono com o primeiro frio, e as folhas cairão, o esplendor apaga-se, a árvore adormece até que a nova Primavera venha tomar o lugar desta que está terminando.
Estes pensamentos sem nenhuma originalidade fizeram-me recordar o último e breve capítulo da Viagem a Portugal que, ouso pensar, alguma originalidade haverá tido. E pensei que não ficaria mal trazê-lo aqui, quando estamos a ponto de partir outra vez, agora para a Corunha. Aí vai, portanto:
«A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: “Não há mais que ver”, sabia que não era assim. O fim da viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.»
Assim é. Assim seja.
José Saramago, O CADERNO

sábado, 2 de junho de 2012

Dia 2 [Junho de 2009]

Marcos Ana
Há pessoas que parecem não pertencer ao mundo e ao tempo em que vivem. Marcos Ana é uma dessas pessoas. Como tantos da sua geração, arrastados às prisões do fascismo espanhol, sofreu o indizível no corpo e no espírito, escapou in extremis a duas condenações à morte, é, em todo o sentido, um sobrevivente. A prisão não pôde nada contra ele, e foram 23 os anos que esteve privado de liberdade. O livro que acabou de apresentar em Portugal é o relato simultaneamente objectivo e apaixonado desse tempo negro. O título das memórias, Diz-me Como É Uma Árvore, não poderia ser mais significativo. Com o tempo, a dura realidade da prisão acaba por sobrepor-se à realidade exterior, diluindo-a numa imprecisa neblina que é preciso expulsar da mente em cada dia que passa para não se perder a segurança em si mesmo, por mais frágil que se torne. Marcos Ana não só se salvou a si mesmo, salvou também a muitos dos seus companheiros de cárcere, incutindo-lhes ânimo, solucionando problemas e conflitos, como um juiz de paz de nova espécie. Firme nas suas convicções políticas, mas sem permitir que o seu juízo crítico seja afectado, Marcos Ana transmite a quem quer que se aproxime dele um irreprimível sentimento de esperança, como se pensássemos: «Se ele é assim, eu também o posso ser». Recuperada a liberdade, não ficou em casa a descansar. Voltou à luta política, com risco de ser novamente encarcerado, e deu início a um notável trabalho de assistência e ajuda àqueles que continuavam na prisão. Em Espanha, uns quantos amigos e admiradores da sua invulgar personalidade (o prémio Nobel Wola Soyinka é um deles) apresentámo-lo como candidato ao Prémio Príncipe de Astúrias da Concórdia. Nada seria mais justo. E mais necessário para mostrar ao povo espanhol que a memória histórica continua viva.
José Saramago, O CADERNO

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Dia 1 [Junho de 2009]

Bronze
Lá estou, sentado no meio do largo, com um livro na mão, a ver quem passa. Fizeram-me um pouco maior que o tamanho natural, suponho que para que se me veja melhor. Não sei quantos anos irei estar ali. Sempre havia dito que o destino das estátuas é acabar por serem retiradas, mas, neste caso, quero imaginar que me deixarão em paz, alguém que em paz duplamente regressou à sua terra, como pessoa que é e, a partir de agora, como bronze que passou também a ser. Ainda que a minha imaginação algumas vezes me tenha feito cair nos delírios mais absurdos, nunca se atreveu a admitir que um dia me levantariam uma estátua na terra onde nasci. Que fiz eu para que isso sucedesse? Escrevi uns quantos livros, levei comigo, por todo o mundo, o nome de Azinhaga e, sobretudo, nunca esqueci os que me geraram e educaram: meus avós e meus pais. Deles falei em Estocolmo perante uma assistência ilustrada e fui compreendido. O que vemos de uma árvore é apenas uma parte, importante, sem dúvida, mas que nada seria sem as suas raízes. As minhas, as biológicas, chamam-se Josefa e Jerónimo, José e Piedade, mas há outras que são sítios, lugares, Casalinho e Divisões, Cabo das Casas e Almonda, Tejo e Rabo dos Cágados, chamam-se também oliveiras, salgueiros, choupos e freixos, caçadeiras navegando no rio, figueiras carregadas de frutos, porcos levados a pastar, e alguns, ainda bacorinhos, dormindo na cama com os meus avós para que não morressem de frio. De tudo isto estou feito, tudo isto entrou na composição do bronze em que me transformaram. Mas, atenção, não houve geração espontânea. Sem a vontade, o esforço e a tenacidade de Victor Guia e de José Miguel Correia Noras a estátua não estaria ali. Do mais profundo da minha gratidão lhes deixo aqui um abraço, extensivo a todo o povo de Azinhaga, ao cuidado de quem deixo esse outro filho que sou eu.
José Saramago, O CADERNO