quarta-feira, 30 de novembro de 2011

David Russell - Sons de Carrilhões.

Dia 30 [Novembro de 2008]

Livraria Cultura
A última imagem que levamos do Brasil é a de uma bonita livraria, uma catedral de livros, moderna, eficaz, bela. É a Livraria Cultura, está no Conjunto Nacional. É uma livraria para comprar livros, claro, mas também para desfrutar do espectáculo impressionante de tantos títulos organizados de uma forma tão atractiva, como se não fosse um armazém, como se de uma obra de arte se tratasse. A Livraria Cultura é uma obra de arte.
O meu editor, Luis Schwarcz, da Companhia das Letras, sabia que me ia emocionar este portento, por isso me levou. Também me tocou bastante a livraria da Companhia, ver estantes luminosas com obras de fundo, os clássicos de sempre expostos como outros fazem com as novidades. E todos juntos oferecidos ao leitor, que tem o difícil mas interessante dilema de não saber que escolher. Boa saída de São Paulo. À noite, antes do jantar na casa de Tomie Ohtake fomos ver a exposição «A Consistência dos Sonhos». Fomos os últimos das 700 pessoas que passaram ao longo do dia para ver a montagem que sobre este escritor fez a Fundação César Manrique, e que já esteve em Lanzarote e Lisboa. Fernando Gómez Aguilera pode estar contente: a sua obra, noutro continente, é igual de interessante e próxima, tão precisa como um relógio, tão bela como a Livraria Cultura. Às vezes as boas notícias amontoam-se. Damos fé delas.
José Saramago, O CADERNO

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Fernando Pessoa

Aforismos & desaforismos de Aparício

Não lhes peço nada, senão que me reconheçam como sendo a encarnação do espírito contestatário: de tudo e todos.
[JRM, 15/2/1977]

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Imagem do dia

Hauhechel-Bläuling, Polyommatus icarus Paarung 1.JPG
Borboletas da espécie Polyommatus icarus, da família Lycaenidae. A esquerda um macho, e a direita uma fêmea.

Oleg Kiselev. Strawberry With Cream

Solidão

Que venham todos os pobres da Terra
os ofendidos e humihados
os torturados
os loucos:
meu abraço é cada vez mais largo
envolve-os a todos

Ó minha vontade, ó meu desejo
- os pobres e os humilhados
todos
se quedaram de espanto!...

(A luz do Sol beija e fecunda
mas os místicos andaram pelos séculos
construindo noites
geladas solidões.)

Manuel da Fonseca, in "Poemas"

ANIVERSÁRIO

Na minha infância, cá pela aldeia, ninguém festejava aniversários. A vida era dura demais para festas. Ninguém tinha bilhete de identidade. Muita gente acabava por se esquecer da data do nascimento e da conta dos anos e era feliz. Quem me dera viver assim. Mas a vida moderna não se compadece com santas ignorâncias. A toda a hora nos estão a perguntar pela data do nascimento, naturalidade, filiação, morada e não sei quantos itens mais. A toda a hora nos vemos obrigados a consultar o calendário.
Ora foi precisamente numa dessas consultas que eu reparei que, neste ano da graça de tantos de tal, faço anos no dia em que nasci [1].
Isto, que, à primeira vista, parece um disparate de Monsieur De La Palisse, deixará de o ser se eu lhe apuser uma nota explicativa. Aí vai ela.
Segundo a tradição familiar e o Lunário Perpétuo, eu vim ao mundo num Domingo Gordo dum remoto ano do século passado. Ora como toda a gente sabe, nem sempre o Domingo Gordo calha a 22 de Fevereiro.
Por acaso, este ano calhou.
Por acaso ou não, está a nevar.
O meu eremitério campestre tem uma porta envidraçada ao rés-do-chão. Colo o nariz à vidraça e olho lá para fora.
O céu tem um tom alvadio, translúcido, duma claridade de sol coado por uma calote de gelo. Não há ponta de vento. A neve cai silenciosa, vertical, compacta. Lá no alto, não se vê nada. Tudo se dilui na infinita brancura da abóbada celeste. Mas antes de poisarem na eira, os flocos distinguem-se nitidamente de encontro ao contraste do outão do palheiro.
As árvores lembram noivas afogadas em níveas rendas.
A poucos metros de mim, poisados na copa dum jovem castanheiro florido de gelo, um bando de pardais, de ordinários tão buliçosos e gárrulos, olham uns para os outros em silêncio, arrepiados, talvez famintos.
Detrás do muro da horta, salta um melro numa risada de criança. Admiro-lhe a boa disposição num dia destes.
Uma toutinegra e duas lavandiscas vêm poisar a meus pés, na mancha de terra aberta pelas pingas do beiral. Decerto não me vêem ou me consideram coisa insignificante e inofensiva.
Prefiro imaginar que me vêm dar os parabéns.
Sim. Faço hoje anos. Há um século menos uns pozinhos que vim ao mundo em dia de Domingo Gordo, depois da ceia, à hora em que os caretos andavam pelas casas a fazer rir as pessoas.
Quem nasce em noite de folia, tem obrigação de passar a vida a rir-se.
Por isso eu saí este macambúzio do caraças.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 198 e s.)

[1] Bento da Cruz nasceu a 22 de Fevereiro de 1925 na aldeia de Peireses, freguesia de S. Vicente da Chã, concelho de Montalegre.

Aforismos & desaforismos de Aparício

Temos o culto do Cadáver: não só o dos mortos enterrados, ou que o deviam estar, mas o dos mortos que por aí andam a fingir de vivos! (Mas quando se trata dos vivos de verdade, tratamo-los como se fossem mortos... esquecidos!)
[JRM, 12/2/1977]

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Classical Guitar Recital - Brian White - Oleg Kiselev

Dia 28 [Novembro de 2008]

Educação sexual
«A exploração sexual é um tema tão importante para a humanidade que não pode haver hipocrisia. É necessário convencer os pais do mundo inteiro de que a educação sexual em casa é tão importante como a comida na mesa. Se não ensinarmos educação sexual nas escolas, os nossos adolescentes aprenderão animalescamente nas ruas. É necessário acabar com a hipocrisia religiosa e isso vale para todas as religiões».
São palavras de Lula da Silva, presidente do Brasil, que subscrevo. Falava num congresso mundial, o terceiro que se realiza, que trata de enfrentar o problema da exploração sexual a que são submetidos crianças e adolescentes em todo o mundo. A rainha da Suécia fez um apelo para que se persiga a delinquência contra os jovens que se instalou na Internet. Ambos falaram de problemas graves, que afectam uma parte da sociedade e que faz estragos sobretudo entre a população infantil e adolescente nas zonas mais pobres do planeta, onde faltam escolas, o conceito de família simplesmente não existe e manda uma televisão que emite violência e sexo 24 horas por dia. Quem ouvirá as palavras sábias que se pronunciam no Congresso contra a Exploração Sexual?
Enfim, queria falar da apresentação de A Viagem do Elefante em São Paulo, mas este assunto meteu-se no meio e tem prioridade. Deixemos o livro para amanhã.
José Saramago, O CADERNO

Aforismos & desaforismos de Aparício

O Teatro é, essencialmente, situação (modo ou clima), evento, a actualização (ou actualidade). E nunca, a narrativa do, ou referência ao, que acontece ou aconteceu fora de cena. O próprio passado deve ser dado como actual, presente – em evento. Tudo o que não for isso poderá ser entretenimento ou diversão, mas não é Teatro.
[JRM, 8/2/1977]

28 de Novembro

• Hoje é o Dia da República em Timor-Leste, proclamada em 1975.

domingo, 27 de novembro de 2011

Sabia que…

Paulaner.jpg... apesar de ser escura e apresentar teor alcoólico de até 6%, a cerveja do tipo dunkel consiste em uma lager de fermentação baixa?

La nit de nadal

Aforismos & desaforismos de Aparício

Encontro numa rua Lúcio, que berra, encabulado:
– O que eu queria era um voto esmagador das direitas!
– Ora essa! Porquê? – espanto-me eu.
– Para eu poder voltar a ser da extrema-esquerda! Nunca pude gramar os vencedores! Detesto o Muhamad Ali! O único que eu sempre amei foi o Joe Louis, que não fazia mal a uma mosca!
[JRM, 8/2/1977]

Dia 27 [Novembro de 2008]

Dia vivido
Continuamos no Brasil, Pilar e eu, e comovidos pela tragédia de Santa Catarina, onde o número de mortos ou desaparecidos não deixa de aumentar, como as histórias humanas, de desolação e desesperança dos sobreviventes, que dali nos chegam. Cruzámo-nos com o presidente Lula, que ia visitar a zona da tragédia. Muito consolo tem que transportar para demonstrar que o Estado é útil. Consolo em palavras e em meios. Das duas coisas necessitamos, os humanos. Contam-nos que nas empresas, espontaneamente, se estão recolhendo fundos para ajudar os vitimados. Para quem, como nós, não vivemos directamente a tragédia, gestos como estes também nos consolam, nos fazem pensar que a jovem da editorial que se preocupa com a sorte de gente que não conhece é uma imagem possível do mundo.
Esta tarde, na Academia Brasileira de Letras apresentei A Viagem do Elefante. Alberto da Costa e Silva disse na sua intervenção que todos somos bibliotecas, porque guardamos leituras no nosso interior como o melhor de nós mesmos. Tenho com Alberto uma antiga relação de amizade, e por ela, este académico, ex-presidente da Academia e ex-embaixador quis apresentar o meu livro como algo próprio. Antes tivemos uma reunião com os académicos, à qual assistiram amigos tão generosos como Cleonice Berardinelli e Teresa Cristina Cerdeira da Silva, que não são académicas embora façam parte da aristocracia do espírito, essa que sim é necessária para a evolução da sociedade. Antes estivemos com Chico Buarque, que está a ponto de terminar um novo livro. Se for como Budapeste teremos obra. Chico, o cantor, o músico, o escritor, é um dos homens cabais que unem a qualidade do seu trabalho à sua condição de boa gente. Hoje o dia foi cumprido. Sem dúvida.
José Saramago, O CADERNO

DIÁRIO (XIII)

Coimbra, 27 de Novembro de 1979 – Retrospectiva de Picasso na televisão. Quadros, quadros e mais quadros. Tantos, que em dada altura já não era capaz de os distinguir, de objectivar a singularidade de cada um. Pareciam-me todos iguais. E comecei a ficar inquieto, de pé atrás. Não estaria diante de um grande logro? Aquela super-abundância, tão incomodamente próxima de uma produção em série, não ilustraria demasiado o próprio mito para ser sincera? Não seria o fruto de um triunfo fácil ou de uma ociosidade satisfeita?
Agarrados à lógica da nossa pequenez, esquecemo-nos de que o génio é por vezes assim: uma torrente que não tem mão em si, que não pode escolher caminho nem evitar o lodo que arrasta e lhe dá substância.

sábado, 26 de novembro de 2011

Miguel Llobet - La Filadora

Aforismos & desaforismos de Aparício

É tradição que o famoso pintor grego Apeles (IV séc. a. C.), tendo pintado um quadro que lhe agradava, o expôs em público, como era, parece, hábito seu. Muita gente desfilou a admirá-lo e a comentá-lo, até que apareceu ali um sapateiro que, não contente de criticar a feitura dos coturnos dos personagens («Eu cá teria feito muito melhor!» – e assim), desatou a apontar outros defeitos na obra. Apeles que, postado atrás do quadro, escutava os comentários, saiu do esconderijo e disse ao crítico:
   – ORA NÃO VÁ O SAPATEIRO ALÉM DA BOTA!
   É sabido que na Grécia os sapateiros eram em grande número, ao passo que os Apeles não chegavam a meia dúzia. De facto, havia só um. Apliquem agora el cuento aos dias de hoje, e digam-se depois se não há por aí multidões de sapateiros (a maioria!) a dar sentenças deliberativas e cominatórias aos raros Apeles que pensam e agem em nome de algo que está acima das botas!
[JRM, 8/2/1977]

Mário Cesariny

Mário CesarinyMário Cesariny de Vasconcelos (Lisboa, 9 de Agosto de 1923 — Lisboa, 26 de Novembro de 2006) foi pintor e poeta, considerado o principal representante do surrealismo português. É de destacar também o seu trabalho de antologista, compilador e historiador (polémico) das actividades surrealistas em Portugal.


Para os Lábios que o Homem Faz 
Para os lábios que o homem faz
que atraem beijos
ao redor do mundo
ficou na nossa memória
em qualquer parte a qualquer hora
um pedaço
de pão

Promessa
que se cumpre
que alimenta
o mundo

Olhos
a exigir
uma floresta

Mário Cesariny, in "Pena Capital"

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Andres Segovia-El Noi De La Mare

Dia 25 [Novembro de 2008]

A página infinita da Internet
Acabamos de sair da conferência de imprensa de São Paulo, a colectiva, como dizem aqui. Surpreende-me que vários jornalistas me tenham perguntado pela minha condição de blogueiro quando tínhamos atrás o anúncio de uma exposição estupenda, a que é organizada pela Fundação César Manrique no Instituto Tomie Ohtake, com os máximos representantes e patrocinadores, e com a apresentação de um novo livro à vista. Mas a muitos jornalistas interessava-lhes a minha decisão de escrever na «página infinita da Internet». Será que, aqui, melhor dito, nos assemelhamos todos? É isto o mais parecido com o poder dos cidadãos? Somos mais companheiros quando escrevemos na Internet? Não tenho respostas, apenas constato as perguntas. E gosto de estar escrevendo aqui agora. Não sei se é mais democrático, sei que me sinto igual ao jovem de cabelo alvoroçado e óculos de aro, que com os seus vinte e poucos anos, me questionava. Seguramente para um blog.
José Saramago, O CADERNO

Eça de Queirós


José Maria de Eça de Queirós (Póvoa de Varzim, 25 de novembro de1845 — Paris, 16 de agosto de 1900) é um dos mais importantes escritores lusos. Foi autor, entre outros romances de reconhecida importância, de Os Maias e O crime do Padre Amaro; este último é considerado por muitos o melhor romance realista português do século XIX.

DIÁRIO (XIII)

Pampilhosa da Serra, 25 de Novembro de 1979 – Ao cabo de muitos e afanosos anos a percorrer Portugal – as suas mais recônditas aldeias visitadas, as suas mais secretas intimidades surpreendidas –, chego a esta triste conclusão: de tudo o que fomos, restam-nos apenas a paisagem e a língua. O resto foi-se. As rodas e as asas do progresso, a rádio, o cinema, a televisão, a onda de retornados e o fluxo e refluxo de emigrantes subverteram e desfiguraram irremediavelmente a nossa realidade social e cultural. Usos e costumes pervertidos, arquitectura adulterada, memória perdida dos valores ancestrais. Terras que conheci arcaicas há uma dúzia de anos, estão hoje irreconhecíveis. E quem queira encontrar ainda em qualquer parte testemunhos da nossa identidade tem de olhar os panoramas e de ouvir falar. O chão e o verbo. Só neles persiste a pátria primordial como latência e vestígio. 

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

El Mestre by Llobet -- William Ghezzi - Classical Guitar

Dia 24 [Novembro de 2008]

Duas notícias
No Brasil, entre entrevista e entrevista, fico a conhecer duas notícias: uma, a má, a terrível, que o temporal que de vez em quando desaba sobre São Paulo para deixar, minutos de fúria depois, um céu limpo e a sensação de que não se passou nada, no sul causou pelo menos 59 mortos e deixou milhares de pessoas sem casa, sem um tecto onde dormir hoje, sem um lar onde seguir vivendo. Notícias destas, apesar de tantas vezes lidas, não podem deixar-nos indiferentes. Pelo contrário, cada vez que nos chega a voz de um novo descalabro da natureza aumenta a dor e a impaciência. E também a pergunta a que ninguém quer responder, embora saibamos que tem resposta: até quando viveremos, ou viverão os mais pobres, à mercê da chuva, do vento, da seca, quando sabemos que todos esses fenómenos têm solução numa organização humana da existência? Até quando olharemos para outro lado, como se o ser humano não fosse importante? Estas 59 pessoas que morreram em Santa Catarina, neste Brasil onde estou agora, não tinham que ter morrido de esta morte. E isto, sabemo-lo todos.
A outra notícia é o Prémio Nacional das Letras de Espanha para Juan Goytisolo, que hoje recordo em Lanzarote, com Monique, com Gómez Aguilera, falando de livros e do ofício de escrever. Monique já não está, não vê este prémio que, por fim, é atribuído a Goytisolo, tantos anos depois de termos lido o seu primeiro livro, então recém-publicado. Juan, um abraço e felicidades.
José Saramago, O CADERNO

DIÁRIO (XIII)

Coimbra, 24 de Novembro de 1979 – Continuam os morticínios no Irão. A religiosidade das multidões pode ter o rosto dum louco. No caso, um fanático tragicamente sanguinário, alheio a qualquer devir histórico, e que, como um Josué aberrante, apenas porfia em parar o tempo no terror das vítimas. 

Pedra filosofal

António GedeãoEles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

                 António Gedeão

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Canço del lladre - arranged by Miguel Llobet

Dia 23 [Novembro de 2008]

Gado
Não foi fácil chegar ao Brasil. Não foi fácil sequer sair do aeroporto. As instalações da Portela estão infestadas de pessoas de ambos os sexos que nos olham com desconfiança como se tivéssemos escrito na cara, a denunciar-nos, um historial de declarados ou potenciais terroristas. A estas pessoas chamam-lhes “seguranças”, o que é bastante contraditório porque, por experiência própria e tanto quanto pude perceber ao redor, os pobres viajantes não sentem nem sombra de segurança na sua presença. O primeiro problema tivemo-lo na inspecção da bagagem de mão. Ainda no rescaldo da doença de que padeci e de que felizmente me venho restabelecendo, devo tomar com regularidade, de duas em duas semanas, um medicamento que, em caso de passagem por um aeroporto, necessita ir acompanhado de declaração médica. Apresentámos essa declaração, carimbada e assinada como mandam os regulamentos, pensando que em menos de um minuto teríamos licença de seguir. Não sucedeu assim. O papel foi laboriosamente soletrado pela «segurança» (era uma mulher), que não achou melhor que chamar um superior, o qual leu a declaração de sobrolho carregado, talvez à espera de uma revelação que lhe fosse sugerida pelas entrelinhas. Começou então um jogo de empurra. A «segurança», que já tinha, por duas ou três vezes, pronunciado esta frase inquietante: «Temos de verificar», recebeu logo o apoio do seu chefe que as repetiu, não duas ou três vezes, mas cinco ou seis. O que havia para verificar estava ali diante dos olhos, um papel e um medicamento, não havia mais que ver. A discussão foi acesa e só terminou quando eu, impaciente, irritado, disse: «Pois se tem que verificar, verifique, e acabemos com isto». O chefe abanou a cabeça e respondeu: «Já verifiquei, mas este frasco tem de ficar». O frasco, se podemos dar tal nome a uma garrafinha de plástico com iogurte, foi juntar-se a outros perigosos explosivos antes apreendidos. Quando nos retirávamos não pude deixar de pensar que a segurança do aeroporto, por este andar, ainda acabará por ser entregue à benemérita corporação dos porteiros de discoteca…
O pior, porém, ainda estava para vir. Durante mais de meia hora, não sei quantas dezenas de passageiros estivemos apinhados, apertados como sardinhas em barrica, dentro do autocarro que deveria levar-nos ao avião. Mais de meia hora sem quase nos podermos mexer, com as portas abertas para que o ar frio da manhã pudesse circular à vontade. Sem uma explicação, sem uma palavra de desculpa. Fomos tratados como gado. Se o avião tivesse caído, bem se poderia dizer que havíamos sido levados ao matadouro.
José Saramago, O CADERNO

Sobre um Poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Helder

Aforismos & desaforismos de Aparício

Há bem cinquenta anos, encontrei num night club europeu a amiga russa dum qualquer adido diplomático português, mulher culta, que me disse: «Quando saí da Rússia passei alguns meses em Lisboa. Gostei muito da gente. Queria lá ficar. Mas os fados que ouvia, sobretudo de noite, nas ruas vizinhas, davam-me uma tal melancolia, uma tão grande nostalgia da Rússia, que não tive remédio senão fugir para Madrid...» Sim, melancolia, nostalgia. Mas o autêntico Fado (esqueçamos o das boîtes para turista ver e ouvir!) tinha mais do que isso: um tom «marinheiro» de provocação ou desafio, que veiculava (inconscientemente talvez para o próprio cantor, e decerto para os «intelectuais» e os estrangeiros que o escutavam) o sofrimento, a condenação e o anseio de revolta do povo português contra um «destino histórico» que buscava remédio.
«Que é feito de Ivan!» «Ivan? Ivan Ivanished!» (He vanished – sumiu-se. Com perdão do inglês...)
[JRM, 4/2/1977]

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Fado Português



O Fado nasceu um dia,
quando o vento mal bulia
e o céu o mar prolongava,
na amurada dum veleiro,
no peito dum marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.

Ai, que lindeza tamanha,
meu chão , meu monte, meu vale,
de folhas, flores, frutas de oiro,
vê se vês terras de Espanha,
areias de Portugal,
olhar ceguinho de choro.

Na boca dum marinheiro
do frágil barco veleiro,
morrendo a canção magoada,
diz o pungir dos desejos
do lábio a queimar de beijos
que beija o ar, e mais nada,
que beija o ar, e mais nada.

Mãe, adeus. Adeus, Maria.
Guarda bem no teu sentido
que aqui te faço uma jura:
que ou te levo à sacristia,
ou foi Deus que foi servido
dar-me no mar sepultura.

Ora eis que embora outro dia,
quando o vento nem bulia
e o céu o mar prolongava,
à proa de outro veleiro
velava outro marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.

Poema de José Régio
Música de Alain Oulman

Miguel Trápaga. "Lo Fill del Rei" (Miguel Llobet)

Dia 22 [Novembro de 2008]

No Brasil
De viagem para o Brasil, onde nos espera um programa tão carregado como um céu a ameaçar chuva. Confio no entanto que se arranje alguma aberta para que esta conversa não fique suspensa durante uma semana, que tanto irá durar a ausência. Já se sabe que, estando no Brasil, assunto não faltará, o problema, se o houver, estará na insuficiente disponibilidade de tempo. Veremos. Desejem-nos boa viagem, e, já agora, façam-nos o favor de cuidar do elefante enquanto andarmos por fora.
José Saramago, O CADERNO

Aforismos & desaforismos de Aparício

A cultura dos muito lidos (ou como acumulação de leituras) assemelha-se à gastronomia dos empanzinados de iguarias escolhidas. É um privilégio e um ócio perdido.
Não me escrevam cartas! Não esperem carta minha! Tudo o que eu tenho a dizer – não: o pouco que me é dado escrever – ponho-o nestas desalinhadas prosas. O resto, que é o muito, seria tão gritantemente pessoal, tão penoso e pungente que levantaria as pedras da calçada!
[JRM, 4/2/1977]

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

21 de Novembro

Partido Popular, liderado por Mariano Rajoy, vence as eleições de Espanha.

Andres Segovia - L'Hereu Riera - Trad. arr. Llobet

O FAIA DE TRAVASSOS

Como disse noutra local deste, este fim-de-semana caiu neve da gorda. E como dizia o Faia de Travassos, grande pícaro e faiante, em dias destes, «muito descansado vive quem não tem bicho vivente de portas a dentro...» O que é o meu caso. Passeio dia de pés à lareira, não digo de terço na mão, porque é mentira, mas a pensar na brevidade da vida e na forma estúpida como desbaratei a minha. Tanto trabalho para quê? O Faia «nunca semeou nem colheu» e gabava-se de ser tão feliz que «nunca lhe abortara vaca, morrera ceva ou sequer uma pita lhe pusera fora...»
Quem o ouvia ria-se por saber que nunca o Faia avezara vaca, porco ou galinha.
Por isso a neve o não afligia.
Pelas mesmas razões me não aflige a mim. Enquanto os meus vizinhos passaram o dia a tratar da fazenda, eu passei-o de pés à lareira.
Entretanto caiu a noite.
E foi então que um bêbado passou na rua aos berros e eu fiquei a pensar nos escorropicha-pipas da minha infância.
Segundo as más-línguas, uma das aldeias que mais pipas escorropichava era a de Medeiros. Casas houve que foram à penhora por causa da pinga, ou da «canaca», como eles pronunciavam.
Eu tinha lá um tio materno casado que visitava muito a minha Mãe.
Um dia correu a notícia de que um vizinho dele, o «Bormelho», tinha falecido.
Entro na cozinha e deparo com o meu tio sentado no escano.
– Então lá foi o «Bormelho»? – disse eu.
– Foi.
– Novo...
– Olha que também, se vive até ao fim da vida, não deixava nada...
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 196)

Aforismos & desaforismos de Aparício

Há mais cultura (isto é, carácter, forma ou estrutura mental) neste camponês iletrado da meseta ibérica do que em sete sábios de livraria ou de lombada.
Nos últimos tempos da sua vida, que foram de grave crise de autojuízo, interrogado sobre o futuro da sua obra, António Sérgio teria respondido: «A minha obra só me interessa na medida em que eu a devia rever toda.» O que já lhe não era possível. 
[JRM, 4/2/1977]

domingo, 20 de novembro de 2011

le testament d' Amelia arrangée par Miguel Llobet.mp4

Aforismos & desaforismos de Aparício

• Fugir, sim, deste mundo empolgante e insensato, ou de algo de mais fundo, para outro mundo, alheio, um não-mundo onde lhe fosse possível viver como não-pessoa... [JRM, 25/1/1977]

Dia 20 [Novembro de 2008]

Todos os nomes
A dedicar exemplares de A Viagem do Elefante na editora durante uma boa parte da manhã. Na sua maioria irão ficar em Portugal como um recado para os amigos e companheiros de ofício dispersos nas lusitanas paragens, mas outros viajarão a terras distantes, como sejam o Brasil, a França, a Itália, a Espanha, a Hungria, a Roménia, a Suécia. Neste último caso, os destinatários foram Amadeu Batel, nosso compatriota e professor de literatura portuguesa na Universidade de Estocolmo, e o poeta e romancista Kjell Espmark, membro da Academia Sueca. Enquanto dedicava o livro para Espmark recordei o que ele nos contou, a Pilar e a mim, sobre os bastidores do prémio que me foi atribuído. O Ensaio sobre a Cegueira, já então traduzido ao sueco, havia causado boa impressão nos académicos, tão boa que ficou praticamente decidido entre eles que o Nobel desse ano, 1998, seria para mim. Acontece, porém, que no ano anterior tinha publicado outro livro, Todos os Nomes, o que, obviamente, em princípio, não deveria constituir obstáculo à decisão tomada, a não ser uma pergunta nascida dos escrúpulos dos meus juízes: «E se este novo livro é mau?» Da resposta a dar encarregou-se Kjell Espmark, em quem os colegas depositaram a responsabilidade de proceder à leitura do livro no seu idioma original. Espmark, que tem certa familiaridade com a nossa língua, cumpriu disciplinadamente a missão. Com o auxílio de um dicionário, em pleno mês de Agosto, quando mais apeteceria ir navegar entre as ilhas que enxameiam o mar sueco, leu, palavra a palavra, a história do funcionário Sr. José e da mulher a quem ele amou sem nunca a ter visto. Passei o exame, afinal o livrinho não ficava nada atrás do Ensaio sobre a Cegueira. Uf.
José Saramago, O CADERNO

sábado, 19 de novembro de 2011

Miguel Llobet - La Filla del Marxant

Dia 19 [Novembro de 2008]

Inundação
Venho da Casa do Alentejo onde participei numa sessão de solidariedade com a luta do povo palestino pela sua plena soberania contra as arbitrariedades e os crimes de que Israel é responsável. Deixei lá uma sugestão: que a partir de 20 de Janeiro, data da tomada de posse de Barack Obama, a Casa Branca seja inundada de mensagens de apoio ao povo palestino e em que se exija uma rápida solução do conflito. Se Barack Obama quer libertar o seu país da infâmia do racismo, faça-o também em Israel. Desde há sessenta anos que o povo palestino vem sendo friamente martirizado com a cumplicidade tácita ou activa da comunidade internacional. É tempo de acabar com isto.
José Saramago, O CADERNO

DIÁRIO (XIII)

Coimbra, 19 de Novembro de 1979 – É um timbre. Sempre que vem, é recebido como um príncipe. Honro assim, como posso, o seu estatuto de poeta e o meu. Outros, a quem fiz o mesmo, não estiveram à altura do gesto. Desfiguraram-se e desfiguraram-me, desfigurando-o. Paciência. Dure muito, dure pouco, teimarei na minha. Quem me bater à porta credenciado pelas musas, enquanto o merecer, beberá comigo do melhor vinho, em louvor da nossa condição. O que implica um pacto sagrado de indefectivelmente a assumirmos no dia-a-dia, e em todas as circunstâncias sermos os primeiros a exaltá-la e a dignificá-la. Não por amor próprio ou vanglória, mas porque damos testemunho de Orfeu, e Orfeu foi um deus.
Miguel Torga, DIÁRIO (XIII), 120

19 de Novembro

• Estas eruditas críticas que, das obras, só parecem ver a rede confusa da escrita ou da linguagem – e nada da substância, que é o que realmente importa – e mesmo assim nada nos dizem que nos esclareça sobre a génese, construção e desenvolvimento do estilo – são elas que Aparício, sereno e furioso, classificou um dia de «Gramaticona». [JRM, 25/1/1977]

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Rare Guitar Video: David Russell plays Spanish Dance No.10 by Granados

Dia 18 [Novembro de 2008]

Vivo, vivíssimo
Intento ser, à minha maneira, um estóico prático, mas a indiferença como condição de felicidade nunca teve lugar na minha vida, e se é certo que procuro obstinadamente o sossego do espírito, certo é também que não me libertei nem pretendo libertar-me das paixões. Trato de habituar-me sem excessivo dramatismo à ideia de que o corpo não só é finível, como de certo modo é já, em cada momento, finito. Que importância tem isso, porém, se cada gesto, cada palavra, cada emoção são capazes de negar, também em cada momento, essa finitude? Em verdade, sinto-me vivo, vivíssimo, quando, por uma razão ou por outra, tenho de falar da morte…
José Saramago, O CADERNO

18 de Novembro

• Disse André Gide, e outros têm repetido, que «para fazer boa literatura não bastam as boas intenções». E eu acrescentaria: «Nem mesmo só o talento verbal! É preciso o sangue da experiência, da vivência, ou o génio, mais raro, da imaginação do real!» [JRM, 25/1/1977]

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Stefano Grondona plays E. Granados: Danza n.5 "Andaluza"

ANJOS ÀS JANELAS DO CÉU

Tenho pela Música de Parafita uma paixão mal correspondida. E como todos os amantes infelizes, quanto mais ela me dá com os pés, mais eu insisto na toleima.
Sim, porque só por amor ou toledo eu deixaria o aconchego da lareira para ir até Parafita em pleno Janeiro.
Pois foi o que aconteceu no pretérito dia 24.
Às doze em ponto, subia eu a rua em direcção à capela. Em sentido oposto, cantarolava um caudaloso rego de água, fonte de alegria e de fartura.
A missa estava atrasada. Aproveitei para visitar o forno.
Tempos houve em que a importância das cidades europeias se media pela grandeza das suas catedrais e a das aldeias barrosãs pela dos seus fornos do povo.
O de Parafita não envergonha ninguém. Pena estar botado ao abandono.
Ia a contar que a Música tocasse pelo menos um Cremos Deus ou um Salutaris Hostia. Mas os instrumentos, alguns deles de respeito pelo seu tamanho, assistiram à missa recostados às paredes do adro.
Ite, missa est, os músicos correram a eles e à formatura. E a um sinal do Maestro, irromperam rua abaixo num alegro de tanta força e beleza, que eu vi os anjos a bater palmas às janelas do céu.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 5)

17 de Novembro

• O que escrevi há um ano

• Em 1717, houve início da construção do Convento de Mafra.
  José Saramago lançou, em 1982, a primeira edição do Memorial do Convento, referente a Mafra.
  Também eu tive início aí à preparação para Guerra a que fui obrigado (em Janeiro de 1996).

• Nem só o pão mata a fome. E há outras fomes! Garantidas as liberdades e a iniciativa democrática, o que matará a fome de milhões de subnutridos não é uma ideologia, doutrina, sistema económico ou regime político: só a Cultura e a Tecnologia – a Tecnocultura, como lhe tenho chamado (para ouvidos moucos) – o poderão fazer. Milhares de indianos morrem de fome anualmente, em plena bosta das vacas sagradas, incomíveis devido ao preconceito religioso-cultural. O problema é – como produzir o suficiente e fazê-lo chegar a todos. E isso, só a Tecnocultura o pode conseguir, gradualmente. [JRM, 25/1/1977]

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Enrique Granados Danza Espagnola No.2 opus 37 - "Oriental"

Dia 16 [Novembro de 2008]

86 anos
Dizem-me que as entrevistas valeram a pena. Eu, como de costume, duvido, talvez porque já esteja cansado de me ouvir. O que para outros ainda lhes poderá parecer novidade, tornou-se para mim, com o decorrer do tempo, em caldo requentado. Ou pior, amarga-me a boca a certeza de que umas quantas coisas sensatas que tenha dito durante a vida não terão, no fim de contas, nenhuma importância. E porque haveriam de tê-la? Que significado terá o zumbido das abelhas no interior da colmeia? Serve-lhes para se comunicarem umas com as outras? Ou é um simples efeito da natureza, a mera consequência de estar vivo, sem prévia consciência nem intenção, como uma macieira dá maçãs sem ter que preocupar-se se alguém virá ou não comê-las? E nós? Falamos pela mesma razão que transpiramos? Apenas porque sim? O suor evapora-se, lava-se, desaparece, mais tarde ou mais cedo chegará às nuvens. E as palavras? Aonde vão? Quantas permanecem? Por quanto tempo? E, finalmente, para quê? São perguntas ociosas, bem o sei, próprias de quem cumpre 86 anos. Ou talvez não tão ociosas assim se penso que meu avô Jerónimo, nas suas últimas horas, se foi despedir das árvores que havia plantado, abraçando-as e chorando porque sabia que não voltaria a vê-las. A lição é boa. Abraço-me pois às palavras que escrevi, desejo-lhes longa vida e recomeço a escrita no ponto em que tinha parado. Não há outra resposta.
José Saramago, O CADERNO

16 de Novembro

José Saramago, escritor e Prémio Nobel da Literatura em 1998, nasceu a 16 de Novembro de 1922 na aldeia ribatejana de Azinhaga.

Em plena festa, o X., com um vago gesto na direcção da senhora que tinha a seu lado, e cuja formosura me deixava atónito:
– Minha mulher... – inclinei-me e balbuciei a habitual banalidade. Ela tomou, com certa (e justificada) irritação na voz:
– É esta a terceira vez que somos apresentados!
Que podia eu dizer-lhe? Engrolei um «Rogo-lhe que não se sinta ofendida!» e acrescentei (em mente, como os sonhos): «A sua beleza é tal que nos deslumbra, e nos ofusca a imagem da pessoa real que sob ela se oculta!» [JRM, 25/1/1977]

terça-feira, 15 de novembro de 2011

La Maja de Goya - Enrique Granados

GRAVIEL? Ó GRAVIEL?

Lá nos meus princípios, era a Feira dos Santos. Com ela aprendi que o mundo era grande e tinha coisas maravilhosas. Dela me ficou o gosto pelas feiras em Montalegre. Não falho uma. Assim aconteceu com a «Feira do Fumeiro e do Presunto», largamente propagada por todos os meios escritos e audiovisuais. Não pude ir no primeiro dia, fui no segundo.
Mal transpus as fronteiras de Barroso, pela Venda Nova, comecei a notar um movimento desusado na estrada. E ao entrar em Montalegre, caí numa bicha de dois quilómetros.
Ainda aguentei o pára-arranca um bom quarto de hora. Cansado daquilo, deixei o carro e fui a pé.
Estava sol, mas uma grande e espessa nuvem branca sobre o Larouco e um vento norte capaz de arrepiar o pêlo a um lobo, anunciavam neve próxima. Os forasteiros vindos de terras mais quentes, encolhiam as orelhas e soltavam a língua em pselónes dos gordos:
– F... que frio!
Uma velhota de pronúncia minhota, embiocada num xaile de merino preto e encolhida de encontro a uma parede, gritava:
Graviel? Ó Graviel?
Lembrava uma ovelha obrijada a berrar pelo dono.
A guarda republicana esforçava-se por pôr alguma ordem no trânsito. Mas os automobilistas não largavam o volante. Pareciam muito desapontados por não os deixarem entrar de carro no pavilhão.
Acossado pelo chiasco, estuguei o passo em direcção à entrada. Caí logo nos braços dos amigos.
– Fulano?
– Vem a caminho.
Vinha tudo a caminho. Festa é festa...
Um arlequim numas andas, distribuia balões coloridos às crianças. Outro, num dominó de porco bísaro, fazia negaças aos adultos.
Toda a minha gente dava ao dente.
Um dos produtos mais procurados e consumidos de imediato, era a bica de carne:
– Tira um bocado. Ainda vem quente.
Mas havia ali de tudo.
– Olha castanhas piladas!
Afinal eram bilhós. Meia dúzia deles num saquito de plástico, dois euros.
– Tão caros?!
– Ah! Só o trabalho que me deram a descascar?
– Tem razão. Tome Já.
Calculei que uns noventa por cento dos visitantes, entravam e saíam de mãos vazias. Transmiti esse reparo ao Dr. Domingos Moura, Presidente da Comissão de Controlo.
– Está enganado. Entraram 53 toneladas de produtos e receio bem que não cheguem para as encomendas.
– Ponho as minhas dúvidas.
– Passe por cá amanhã e fica sem elas.
– Cá estarei.
Uma senhora de Gralhós, trajada à antiga, acenou-me detrás dum balcão ricamente decorado com fumeiro e presuntos.
– Que tal vai o negócio? – perguntei-lhe.
– Mais fraco do que noutros anos. O euro anda muito vasqueiro...
– A quem o diz.
Como o euro anda vasqueiro, gastei apenas uma nota de cinquenta. E como não estou habituado a regressar da feira sem um «último copo para o caminho», dirigi-me ao pavilhão das tasquinhas, anexo ao dos expositores.
A meio dum amplo terreiro adrede atapetado com areão, uma grande fogueira de cepos de carvalho em bruto. Do outro lado, uma desgarrada de cantadores ao desafio ao som de concertinas.
Ia a parar para os ouvir, quando um forte odor a chouriça assada me bateu em cheio na venta.
Avancei para as tasquinhas.
Em todas elas uma barafunda que ninguém se entendia.
Depois de muito porfiar, lá consegui que me servissem.
Por quatro bocadilhos de chouriça, dois de pão e um copo de vinho, cinco euros...
Já me lembro de fazer a festa por cinco tostões.
Mais tarde por cinco escudos.
Mas nós agora estamos na Europa...
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 192 e s.)

Pisco-de-peito-ruivo

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Pisco-de-peito-ruivo (Erithacus rubecula)

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Milos Janjic - I. Albeniz Asturias

HAJA VENTO

Contaram-me que, no século passado, um padre de Braga foi parar à paróquia da Ilha do Corvo, nos Açores. Encontrou uma comunidade de poucas almas, a maioria das quais pouco devota e quase todas remissas ao pagamento da côngrua. Todos os domingos, durante a homilia, o pastor lembrava às suas ovelhas o sagrado dever que elas tinham de proporcionar ao seu pastor uma vida decente e livre das vergonhas deste mundo. E como elas fizessem ouvidos de mercador, um dia ele ameaçou-as:
– Se me não pagardes, vou-me embora e deixo-vos sem padre.
Respondeu-lhe um velho pescador, lá do fundo da igreja:
– Haja vento, sr. Abade...
Houvesse vento para eles poderem içar a vela e fazer-se ao mar na faina do peixe, que, sem padre, passavam eles bem.
Em Barroso, em casos destes, dizia-se:
– Haja saúde e coza o forno...
Houvesse pão e saúde para o comer, que, o resto, pouca importância tinha.
Infelizmente, hoje, os fornos do povo já não cozem.
Mais infelizmente ainda, o pão perdeu entre nós a reverência a que outrora era votado.
No tempo em que eu me criei, o pão era uma coisa sagrada, não por, durante a missa, se transformar no Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas por todos os dias se transformar no nosso corpo e sangue.
Fui educado no culto ao pão. Nunca se começava a comer sem o pão na mesa, em lugar de destaque. E sempre na postura em que estivera na fornalha. Se uma filha mais distraída colocasse a broa de parte convexa para baixo, levava logo um tabefe do pai:
– Coloca o pão direito!
Ainda hoje, quando me sento à mesa e não vejo pão, parece que me falta qualquer coisa. E quando ouço alguém dizer que não come pão porque o pão engorda, dá-me vontade de rir. Nós comíamos pão de manhã à noite, às refeições e fora delas, e nem por isso andávamos mais gordos. A enxada se encarregava de nos derreter as banhas. De modo que frases como a sobredita, é paleio de ociosos. Agarrem-se à enxada e verão como emagrecem.
Nesses duros tempos em que ainda comíamos o pão com o suor do nosso rosto, se deixássemos cair um bocado dele ao chão, ensinaram-nos a erguê-lo e beijá-lo, como que a pedir-lhe desculpa. Hoje o pão anda por aí aos pontapés de toda a gente...
Como tudo isto me faz pena. E que saudades eu tenho do tempo em que o forno cozia.
Quando alguém olhava de longe e exclamava: «O forno de Peireses está a cozer» era como se dissesse «Os de Peireses são felizes...» E nós éramos felizes.
Agora dizem por aí que vão recuperar os fornos públicos. Isso é fácil, porque a maioria deles está intacta. Mais difícil será restituir-lhes a função sócio-cultural que eles outrora desempenharam. Dessa, só nós, os velhos, sabemos falar. Só nós saberemos dizer que a nossa primeira escola foi o lar paterno; a segunda, o forno do povo. Ao calor desses dois fogos sagrados nos fizemos homens. Por falta deles nos vão arrefecendo os ossos.
Um dia destes um amigo meu que ainda mantém uma casa de lavoura a funcionar pelos moldes tradicionais, convidou-me para a matança dos porcos. Estava muita gente e calhou eu ficar à mesa rodeado de velhos. E num momento de silêncio, mais para alimentar o diálogo do que por ignorância ou curiosidade, perguntei se algum deles sabia de alguma aldeia onde o forno ainda cozesse com regularidade.
– Na minha ainda há três ou quatro vizinhos que o utilizam – disse um deles.
– Na minha há muitos anos que está parado – acrescentou outro.
Numa e noutra, lancei o tema de saber com que periodicidade os fornos do povo coziam. E depois de alguma troca de opiniões, chegou-se à conclusão de que isso dependia da capacidade da fornalha e do número de vizinhos.
– Bem – voltei eu – o descanso mensal dum forno nunca poderia ultrapassar os quinze dias, por me parecer esse o período máximo de validade duma broa centeia.
E foi então que um de Padroso se saiu com esta:
– Em Padornelos, se o forno deixasse de cozer durante três dias seguidos, uleavam lá todos de fome como os lobos...1
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 189 e s.)

1 Para quem não conheça Barroso esclareço que Padornelos e Padroso são aldeias vizinhas e que, como normalmente acontece nestes casos, houve sempre entre elas uma certa rivalidade tácita ou declarada. Este dito dum de Padroso traduz precisamente isso.

14 de Novembro

• 1839 - Júlio Dinis, médico e escritor português (m. 1871).

• Dia Mundial da Diabetes. Ler especialmente Guía de Alimentación y Salud

domingo, 13 de novembro de 2011

Dia 13 [Novembro de 2008]

RCP

As iniciais significam Rádio Clube Português, creio que não deverá haver um português que o ignore. Hoje, dia 13 de Novembro, que é quando escrevo estas breves linhas, resolveu o RCP dedicar parte da sua emissão à estreia de Blindness, o filme dirigido pelo realizador brasileiro Fernando Meirelles a partir do meu Ensaio sobre a Cegueira. Pilar, que só produz ideias boas, achou que deveríamos fazer uma visita de cortesia à estação e aos apresentadores da Janela Aberta, que assim se chama o programa em causa. Lá fomos a coberto do mais absoluto sigilo e certos de ir causar uma surpresa que não seria desagradável. O que não imaginávamos era que a nossa surpresa poderia ser ainda melhor. Os dois apresentadores estavam cegos, tinham os olhos vendados por um pano preto… Há momentos que logram ser, ao mesmo tempo, emocionantes e prazeirosos. Foi o caso deste. Deixo aqui a expressão da minha gratidão e do meu profundo reconhecimento pela prova de amizade que nos deram.
José Saramago, O CADERNO

DIÁRIO (XIII)

Coimbra, 13 de Novembro de 1979 – Atentado em Lisboa. Terrorismo urbano também já entre nós. O que era de prever. Além de o homem ser um animal mimético – no mal, principalmente –, a nossa celebrada índole pacífica só pode até onde pode.
A tentação de desrespeitar as normas é universal. E não há duas maneiras de o fazer. A violência, de resto, foi sempre endémica e nimbada de um halo sagrado. Nenhuma civilização a dispensa. É ela que impõe a ordem, e é ela igualmente que alimenta, em todos os subordinados, a secreta esperança de a destruir.
Miguel Torga, DIÁRIO (XIII), 119

O Vale La Orotava em Tenerife

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O Vale La Orotava em Tenerife, nas Ilhas Canárias

13 de Novembro

Silvio Berlusconi renuncia ao cargo de primeiro-ministro da Itália.

• 1807 - A família real portuguesa foge para o Brasil na sequência da invasão do país por tropas napoleónicas.

• A 13 de Novembro de 1460, morre, no Porto, o Infante D. Henrique, impulsionador dos descobrimentos portugueses. Também conhecido por Infante de Sagres, era o terceiro filho do Rei D. João I (fundador da Dinastia de Avis) e de Dona Filipa de Lencastre.

sábado, 12 de novembro de 2011

Milos Janjic - I. Albeniz Cadiz

Dia 12 [Novembro de 2008]

Dogmas

Os dogmas mais nocivos nem sequer são os que como tal foram expressamente enunciados, como é o caso dos dogmas religiosos, porque estes apelam à , e a fé não sabe nem pode discutir-se a si mesma. O mal é que se tenha transformado em dogma laico o que, por sua própria natureza, nunca aspirou a tal. Marx, por exemplo, não dogmatizou, mas logo não faltaram pseudo-marxistas para converter O Capital em outra bíblia, trocando o pensamento activo pela glosa estéril ou pela interpretação viciosa. Viu-se o que aconteceu. Um dia, se formos capazes de desfazer-nos dos antigos e férreos moldes, da pele velha que não nos deixou crescer, voltaremos a encontrar-nos com Marx: talvez uma «releitura marxista» do marxismo nos ajude a abrir caminhos mais generosos ao acto de pensar. Que terá que começar por procurar resposta à pergunta fundamental: «Por que penso como penso?» Com outras palavras: «Que é a ideologia?» Parecem perguntas de pouca monta e não creio que haja outras mais importantes…
José Saramago, O CADERNO

Lepomis microlophus

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sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Milos Janjic - I. Albeniz Sevilla

Dia 11 [Novembro de 2008]

Velhos e novos

Dirão alguns que o cepticismo é uma doença da velhice, um achaque dos últimos dias, uma esclerose da vontade. Não ousarei dizer que o diagnóstico seja completamente equivocado, mas direi que seria demasiado cómodo querer escapar às dificuldades por essa porta, como se o estado actual do mundo fosse simplesmente consequência de que os velhos sejam velhos… As esperanças dos jovens nunca conseguiram, até hoje, tornar o mundo melhor, e o sempre renovado azedume dos velhos nunca foi tanto que chegasse para torná-lo pior. Claro que o mundo, pobre dele, não tem culpa dos males de que padece. O que chamamos estado do mundo é o estado da desgraçada humanidade que somos, inevitavelmente composta de velhos que foram novos, de novos que hão-de ser velhos, de outros que já não são novos e ainda não são velhos. Culpas? Ouço dizer que todos as temos, que ninguém pode gabar-se de estar inocente, mas parece-me que semelhantes declarações, que aparentemente distribuem justiça por igual, não passam, quando muito, de espúrias recidivas mutantes do chamado pecado original, servem apenas para diluir e ocultar, numa imaginária culpa colectiva, as responsabilidades dos autênticos culpados. Do estado, não do mundo, mas da vida.
Escrevo isto num dia em que chegaram a Espanha e Itália centenas de homens, mulheres e crianças nas frágeis embarcações que costumam utilizar para alcançar os supostos paraísos de uma Europa rica. À ilha de Hierro, em Canárias, por exemplo, chegou um barco desses, dentro do qual havia uma criança morta, e alguns náufragos declararam que durante a viagem tinham morrido e sido lançados ao mar vinte companheiros de martírio… Que não me falem de cepticismo, por favor.
José Saramago, O CADERNO

11 de Novembro

Lucas Papademos nomeado primeiro-ministro da Grécia.

• 1975 - Angola torna-se independente de Portugal.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Milos Janjic - I. Albeniz Cataluna

Dia 10 [Novembro de 2008]

A referência a Martin Luther King no texto anterior deste blog fez-me recordar uma crónica publicada em 1968 ou 1969 com o título de «Receita para matar um homem». Aqui a deixo outra vez como sentida homenagem a um verdadeiro revolucionário que abriu o caminho que levará ao fim próximo e definitivo da segregação racial nos Estados Unidos.

Receita para matar um homem

Tomam-se umas dezenas de quilos de carne, ossos e sangue, segundo os padrões adequados. Dispõem-se harmoniosamente em cabeça, tronco e membros, recheiam-se de vísceras e de uma rede de veias e nervos, tendo o cuidado de evitar erros de fabrico que dêem pretexto ao aparecimento de fenómenos teratológicos. A cor da pele não tem importância nenhuma.
Ao produto deste trabalho melindroso dá-se o nome de homem. Serve-se quente ou frio, conforme a latitude, a estação do ano, a idade e o temperamento. Quando se pretende lançar protótipos no mercado, infundem-se-lhes algumas qualidades que os vão distinguir do comum: coragem, inteligência, sensibilidade, carácter, amor da justiça, bondade activa, respeito pelo próximo e pelo distante. Os produtos de segunda escolha terão, em maior ou menos grau, um ou outro destes atributos positivos, a par dos opostos, em geral predominantes. Manda a modéstia não considerar viáveis os produtos integralmente positivos ou negativos. De qualquer modo, sabe-se que também nestes casos a cor da pele não tem importância nenhuma.
O homem, entretanto classificado por um rótulo pessoal que o distinguirá dos seus parceiros, saídos como ele da linha de montagem, é posto a viver num edifício a que se dá, por sua vez, o nome de Sociedade. Ocupará um dos andares desse edifício, mas raramente lhe será consentido subir a escada. Descer é permitido e por vezes facilitado. Nos andares do edifício há muitas moradas, designadas umas vezes por camadas sociais, outras vezes por profissões. A circulação faz-se por canais chamados hábito, costume e preconceito. É perigoso andar contra a corrente dos canais, embora certos homens o façam durante toda a sua vida. Esses homens, em cuja massa carnal estão fundidas as qualidades que roçam a perfeição, ou que por essas qualidades optaram deliberadamente, não se distinguem pela cor da pele. Há-os brancos e negros, amarelos e pardos. São poucos os acobreados por se tratar de uma série quase extinta.
O destino final do homem é, como se sabe desde o princípio do mundo, a morte. A morte, no seu momento preciso, é igual para todos. Não o que a precede imediatamente. Pode-se morrer com simplicidade, como quem adormece; pode-se morrer entre as tenazes de uma dessas doenças de que eufemisticamente se diz que «não perdoam»; pode-se morrer sob a tortura, num campo de concentração; pode-se morrer volatilizado no interior de um sol atómico; pode-se morrer ao volante de um Jaguar ou atropelado por ele; pode-se morrer de fome ou de indigestão; pode-se morrer também de um tiro de espingarda, ao fim da tarde, quando ainda há luz de dia e não se acredita que a morte esteja perto. Mas a cor da pele não tem importância nenhuma.
Martin Luther King era um homem como qualquer de nós. Tinha as virtudes que sabemos, certamente alguns defeitos que não lhe diminuíam as virtudes. Tinha um trabalho a fazer – e fazia-o. Lutava contra as correntes do costume, do hábito e do preconceito, mergulhado nelas até ao pescoço. Até que veio o tiro de espingarda lembrar aos distraídos que nós somos que a cor da pele tem muita importância.
José Saramago, O CADERNO