segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Dia-a-dia

• Fui ontem, à noite, ao Clube Literário do Porto (Rua Nova da Alfândega, n.º 22), onde assisti a guitarrada de Rúben Bettencourt (Clube Erudito) e, em parte, a Janeiras do Norte. Foi uma boa experiência.
• Desde os remotos tempos da costa da Guiné e costas vizinhas, tem-se dito que os Portugueses davam caça aos negros para deles fazer escravos. Que os fizeram ninguém duvida! Mas pode alguém no seu juízo perfeito supor que as poucas dezenas de mal armados e atemorizados homens que eles eram, em cada expedição de caravelas, ousassem penetrar na selva, no sertão, no deserto ou nas montanhas, sob a hostilidade dos nativos conhecedores do seu terreno, para «caçar» escravos? Quem lhes trazia o marfim e o ouro ao litoral, donde eles mal se atreviam a arredar pé, trazia-lhes também, acorrentados, os negros escravos. [JRM, 7/5/1977]

domingo, 29 de janeiro de 2012

Dia 29 [Janeiro de 2009]

Testemunho
Parece que a coisa vai bem encaminhada. O presidente dos Estados Unidos, que não se chama Messias, mas Barack Obama, assinou ontem uma lei denominada de Equidade ou Igualdade Social. A «responsável» directa deste documento foi uma mulher, uma trabalhadora que, tendo descoberto que havia levado toda a vida a ganhar menos exactamente por ser mulher, apresentou queixa contra a empresa e ganhou o pleito. Como numa prova desportiva de estafetas, esta mulher branca, chamada Lilly Ledbetter, passou o testemunho ao corredor seguinte, um negro com nome muçulmano, 44º. presidente da nação norte-americana. De repente, o mundo parece-me mais limpo, mais prometedor. Por favor, não me roubem esta esperança.
José Saramago, O CADERNO

sábado, 28 de janeiro de 2012

DIÁRIO (XIII)

Coimbra, 28 de Janeiro de 1980 – Telegrama a Sakharov, que foi preso em Moscovo. Se calhar, nem lhe chega às mãos. Mas há ocasiões em que é obrigatório amarrar de qualquer modo o nosso nome à sorte dos relapsos.

Dia 28 [Janeiro de 2009]

Gervasio Sánchez
Os olhos que tenho não me têm servido de muito. Vejo as letras que vou lançando, uma após outra, à página branca do computador, formo palavras que, melhor ou pior, vão expressando a quem me lê certas opiniões, certas ideias a que chamo minhas, visões do mundo lhes chamaria retoricamente se o mundo se deixasse conhecer por tão pouco. Muito do que vejo, só o vejo porque outros o viram antes. Dói-me até ao remorso ter sido tão poucas vezes na minha vida aquele que viu. Em rigor, não vivo numa bolha protectora, mas dou-me conta de que estou rodeado de pessoas apostadas em poupar-me a choques que, dizem, e talvez alguma razão tenham, poderiam afectar negativamente o meu trabalho. Não sei. O que sei, sim, é que ao muro de que me sinto às vezes rodeado, afinal bem mais frágil do que parecia, o acometem frequentemente, com particular violência, as investidas brutais da realidade. O livro recente a que o fotógrafo Gervasio Sánchez deu o título de Sarajevo é um desses casos. Aqui lhe manifesto a minha profunda gratidão por me ter permitido ver com os seus olhos, já que os meus para tão pouco me têm servido. E agradeço-lhe também a lealdade pessoal e profissional que o levou a escrever que «a guerra não se pode contar». Para que não tenhamos ilusões, nós os que escrevemos.
José Saramago, O CADERNO

Dia-a-dia

Da maneira como isto caminha, quando soar a hora da Ditadura do Proletariado, já não haverá proletários em Portugal. Nem capitalistas! Todos seremos abastados, suficientes, repletos – e ociosos! [JRM, 3/5/1977]
• No dia de hoje, em 1916, nasceu, na aldeia de Melo, Serra da Estrela (Gouveia), o escritor Vergílio Ferreira, autor, entre outras, das obras Manhã Submersa (1954), Aparição (1959), Nítido Nulo (1971) e Conta-Corrente (1980-1988). Falando da sua obra, dizia: «Há os livros que antes de lidos já estão lidos. Há os que se lêem todos e ficam logo lidos todos. E há os que nos regateiam a leitura e a que pedimos humildemente que se deixem ler todos e não deixam e vão largando uma parte de si pelas gerações e jamais se deixam ler de uma vez para sempre.»

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Alfaiate

Pied Avocet chick.jpg
Alfaiate (Recurvirostra avosetta)

Dia 27 [Janeiro de 2009]

Rodham
O atrevimento não teve outras consequências que o (in)esperado interesse que despertou o blog de ontem sobre Hillary Clinton e a sugestão de que recupere o seu autêntico apelido, Rodham. Não houve protestos diplomáticos, a Secretaria de Estado não emitiu um comunicado nem consta que no The New York Times se tenha feito eco do meu escrito. Amanhã mudarei de assunto. Entretanto, descanso e contemplo.
José Saramago, O CADERNO

Dia-a-dia

• Neste dia nasceu, em 1756, Wolfgang Amadeus Mozart, compositor clássico austríaco (m. 1791).
«O Amor é uma cadeia, uma intolerável opressão! Um cilício! E o ciúme destrói-me! Quero libertar-me destas agonias e consagrar-me unicamente ao Grande Amor da minha vida – a Obra, agora abandonada. Suplico-te que me digas ou faças alguma coisa que me ajude a expulsar-te do meu coração!», escrevia o apaixonado sofredor, talvez inseguro d'Ela, ou porque ela era inacessível. «Nada mais fácil!», foi a pronta resposta. «Ainda a noite passada...» e narrou-lhe cruamente, com todos os pormenores, a sua mais recente aventura amorosa.
Remédio santo: desamou-a logo. Ou não queria ele outra coisa... [JRM, 3/5/1977]

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Dia 26 [Janeiro de 2009]

Clinton?
Que Clinton? O marido, que já passou à história? Ou a mulher, cuja história, em minha opinião, só agora vai começar, por muito senadora que tenha sido? Fiquemo-nos com a mulher. Convidada por Barack Obama para secretária de Estado, terá, pela primeira vez, a sua grande oportunidade de mostrar ao mundo e a si mesma o que realmente vale. Obviamente também a teria, e por maioria de razões, se tivesse ganho a eleição para a presidência dos Estados Unidos. Não ganhou. Em todo o caso, como se diz na minha terra, quem não tem cão, caça com gato, e creio que todos estaremos de acordo em que a secretaria de Estado norte-americana, gato não é, mas tigre, felinos um e outro. Apesar de a pessoa nunca me ter sido especialmente simpática, desejo a Hillary Diane Rodham os maiores triunfos, o primeiro dos quais será manter-se sempre à altura das suas responsabilidades e da dignidade que a função, por princípio, exige.
O que aí fica não é mais que uma introdução ao tema que decidi tratar hoje. O leitor atento terá reparado que escrevi o nome completo da nova secretária de Estado, isto é, Hillary Diane Rodham. Não foi por acaso. Fi-lo para deixar claro que o apelido Clinton não lhe foi dado no nascimento, para mostrar que o seu apelido não é Clinton e que havê-lo tomado, fosse por convenção social, fosse por conveniência política, em nada alterou a verdade das coisas: chama-se Hillary Diane Rodham ou, no caso de preferir abreviar, Hillary Rodham, muito mais atractivo que o gasto e cansado Clinton. Nem um nem outro me conhecem, nunca leram uma linha minha, mas permito-me deixar aqui um conselho, não ao ex-presidente, que nunca aos conselhos deu grande atenção, sobretudo se eram bons. Falo directamente à secretária de Estado. Deixe o apelido Clinton, que já se parece muito a um casaco coçado e com os cotovelos rotos, recupere o seu apelido, Rodham, que suponho ser de seu pai. Se ele ainda é vivo, já pensou no orgulho que sentiria? Seja uma boa filha, dê essa alegria à família. E, de caminho, a todas as mulheres que consideram que a obrigação de levar o apelido do marido foi e continua a ser uma forma mais, e não a menos importante, de diminuição de identidade pessoal e de acentuar a submissão que sempre se esperou da mulher.
José Saramago, O CADERNO

Dia-a-dia

Em 1878 nasceu o poeta Afonso Lopes Vieira.
Uma faceta sua pouco conhecida foi o interesse pelo cinema: realizou um pequeno filme com crianças (O Afilhado de Santo António) e encarregou-se dos diálogos de Camões e Inês de Castro, de Leitão de Barros, e de Amor de Perdição, de António Lopes Ribeiro.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

SÃO JOÃO DA FRAGA

Nos saudosos tempos dos carros de bois, citava-se por aí um ditado que dizia: «Vacas de Peireses não servem para todas as aldeias...»
Eu levava isto à conta de ofensa. Porque é que as vacas de Peireses, valentes como quaisquer outras, não haviam de fazer figura em qualquer outra aldeia?
A resposta obtive-a eu um dia destes quando o Dr. José Lestra, que por vezes me honra e alegra com a sua visita, me desafiou para irmos de romaria à capelinha de S. João da Fraga, empoleirada num pico do Gerês sobranceiro à Barragem de Paradela.
Antes duma grande aventura, os cavaleiros medievais velavam armas. Nós batemos uma boa sesta. Depois subimos para o Jeep e rumãmos a Pitões.
– Sabes o caminho? – inquiri eu à entrada do povoado.
– Não.
– Pergunta aí.
A meia dúzia de cavalheiros que limpavam a rua, suponho que em prelúdios de festa.
– Boa tarde.
– Venham com Deus.
– Para irmos ao S. João da Fraga?
– Aí ao fundo da rua, à esquerda, encontram uma calçada. Sigam por ela.
– Até onde podemos levar o carro?
– Com um pouco de cuidado e jeito, podem levá-lo até ao Parque, para lá do ribeiro. Vocês logo vêem.
– Obrigado.
Começámos a descer a calçada. Mas o Jeep dava cada solavanco de pincha no crivo que eu, ante a ameaça de ver o fígado desprender-se-me dos ligamentos, alvitrei:
– E se deixássemos o carro e fôssemos a pé?
– Nunca mais lá chegávamos.
– É que já não aguento os pinotes da burra.
– Lembra-te de que quem tem burra e anda a pé... Mas tu lá sabes.
Por acaso não sabia. Se soubesse, estava calado. Abri a boca, saiu asneira. Aquilo parecia a descida de Orfeu aos infernos. Uma calçada íngreme, irregular, incómoda, roída de lacadas e tornadoiros de água, mais estirada do que a Muralha da China.
À medida que íamos descendo, eu lembrava-me do que, no regresso, teria de subir, e desanimava:
– O ribeiro nunca mais aparece.
– Estamos a chegar.
Lá estava ele. Límpido, alegre, cantante, ensombrado de árvores de rodada copa e agradável sombra. Um recanto do paraíso.
A esse tempo, já eu perdera todas as esperanças de alcançar o S. João da Fraga. Apeteceu-me propor ao meu companheiro que ficássemos por ali. Mas ele adivinhou-me o pensamento e levantou-se de golpe:
– Vamos!
– Vamos lá – respondi eu com uma resignação de mártir, a olhar para uma calçada bruta, agora a subir, quase a pique.
E atirámo-nos a ela, o Zé à frente, rijo báculo de peregrino em punho, mochila às costas, armado em alpinista. Eu atrás, bengalinha na mão, estojo de máquina fotográfica a tiracolo, armado em turista.
Escalados uns duzentos metros de pedregosa rampa, suspirei à vista dum troço de caminho plano por entre árvores.
– Já reparaste na beleza desta floresta?
– Deus a proteja de incendiários.
– Amem.
Por fim apareceu o tal Parque. Um airoso terreiro limpo de vegetação, mesas à sombra, churrasqueira de granito, uma pilha de achas entre dois troncos.
– Fiz asneira em te não deixar trazer o carro até aqui.
– E da grossa. Com o que já andámos, tínhamos chegado à capelinha.
– Nem me fales.
E de novo o caminho começou a descer. E, ao fundo da descida, outro riacho, mais pequeno, mas, se possível, mais soidoso e poético.
Havíamos transposto o primeiro por rústica ponte de pedra. Transpusemos o segundo por umas rústicas alpondras. E estávamos, verdadeiramente, na subida para o Gerês.
No intuito de sofrear a marcha, meti conversa.
– Sabes o que o Padre Agripino da Vila da Ponte, que tu e eu conhecemos muito bem, deixou escrito a respeito de S. João da Fraga?
– Creio que já li isso, não me lembra agora onde.
– Deve ter sido no opúsculo O que foi a Roma, da autoria do nosso comum amigo e meu compadre José Dias Baptista. Conta ele que, aí por 1940, a Repartição de Finanças de Montalegre oficiou a todos os reverendos párocos do concelho que elaborassem uma relação de todos os bens «móveis e imóveis» das respectivas freguesias. O Padre Agripino paroquiava, na altura, Pitões das Júnias. Depois de descrever a residência, quatro prédios rústicos, uma horta, a igreja matriz e três capelas existentes na freguesia, remata: «Capela do S. João da Fraga situada no Gerês. Confronta com o mundo inteiro. Só tem a imagem do Santo e um ninho de pintassilgo. Não pode ser mais pobre.»
– O que talvez tu não saibas é que os de Pitões, no dia do Santo, vêm cá em procissão, andor e tudo. Saem manhãzinha de casa e, por volta do meio-dia, estão na ermida.
– Homens de fé.
– Que sobe montanhas.
Íamos, na altura, a dobrar um cotovelo onde o caminho encurva, em ângulo recto, para a esquerda.
– Eu vou à frente, a ver se ainda estamos longe – disse o meu companheiro, estugando o passo.
Foi o que eu quis ouvir. Comecei a deixar-me ficar para trás, uma perna a pedir licença à outra.
Pacientemente, o Zé esperou por mim numa plataforma de mato entre dois cabeços rochosos.
– Lá está ela.
Olhei. A capelinha empiscava-me lá do alto, dir-se-ia das portas do céu.
– Mais uma horita e estamos lá.
Uma hora?! Descobri-me e rezei:

«Ó meu S. João da Fraga,
Vinde abaixo, dai a mão.
Estou fraquinho das pernas.
Não posso do coração.»

– Desisto – acrescentei, em alor de virar costas.
– Anda cá – disse o meu companheiro voltado para a Barragem de Paradela e a Cascata de Pitões – Admira estes horizontes. Que me dizes tu a isto?
– Que estou na Suíça.
– Já lá foste?
– Não.
– Bem me parece. Na Suíça não há nada que se compare a isto. A esta luminosidade, a esta cor, a esta imensidão.
– Abundo no teu patriótico parecer.
– É como te digo. Se temos trazido o jeep até ao Parque, com o que já andámos, estávamos lá.
– Não me culpes. Lembra-te de que os portugueses também não chegaram à Índia na primeira tentativa. Nós hoje dobrámos o Cabo da Boa Esperança. Para a próxima, subimos à capela.
Demos volta à nau e, em amena cavaqueira, breve atingimos o ribeiro. Não resisti à tentação de me sentar numa alpondra:
– Gozemos esta amostra das delícias que Deus promete no outro aos justos deste mundo.
– Já que falas em paraíso, aqui tens a maçã de Adão – gracejou o meu companheiro, puxando da mochila.
– Para Eva, tens barba a mais.
– E malícia a menos. Por isso te ofereço duas. Come à vontade que não pecas. Tens navalha?
– Nem é precisa.
Lavei as maçãs na água lustral do ribeiro e ferrei-lhe os rijos dentes que Deus me deu e ainda conservo.
– Não queres acompanhá-las com um bocado de pão?
– Oh, homem previdente! Não me digas que também trouxeste vinho?
– Não – disse ele sacando da mochila uma garrafa de litro e meio – Água. Para ocasiões destas, a água está mais indicada.
– Venha ela.
Bebi dois tragos e fiquei na fresca ribeira.
– Quando quiseres, estou pronto.
– Ao ataque!
Atacámos garbosamente a vasta quebrada entre os dois riachos. A partir daqui principiou o meu calvário. Em pouco mais dum quilómetro de subida, acuei mais vezes do que Estações tem a Via-sacra. O meu companheiro condoeu-se da minha fraqueza e disse:
– Se te parece, ficas aqui e eu vou pelo Jeep.
– Se te não custa?
– Nada.
Fiquei um instante a ver a frescura com que o eternamente jovem José Lestra subia a calçada. Depois enfiei pelo portal duma touça de carvalhos dentro, estendi-me na ervagem seca, papo para o ar, máquina fotográfica a servir-me de travesseiro, pernas relaxadas, olhos regalados na copa das árvores. De repente, lembrei-me. Os velhos tinham razão. «Vacas de Peireses não servem para todas as aldeias.» Nem as calçadas de Pitões para velhos como eu...
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 18 e ss.)

Dia-a-dia

• «Os homens são – nascem? – todos iguais!» Responde o outro, anglo-saxonicamente: «Sim, mas uns são mais iguais que os outros!» [JRM, 3/5/1977]
Sabia que…
… já foram realizadas execuções públicas de pessoas sob a acusação de serem vampiros?
… em 1576, foi fundada a cidade de Luanda pelo governador Paulo Dias de Novais?

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Dia-a-dia

Vivo tão preocupado com a Salvação da Pátria e a do Regime, essas galinhas dos ovos de oiro, que até me esqueço de lhes dar de comer! [JRM, 12/4/1977]

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

João Ubaldo Ribeiro

João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro (Itaparica, 23 de janeiro de 1941) é um advogado, escritor, jornalista, roteirista e professor brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras. É ganhador do Prêmio Camões de 2008, maior premiação para autores de língua portuguesa. Ubaldo Ribeiro teve algumas obras adaptadas para a televisão e para o cinema, além de ter sido distinguido em outros países, como a Alemanha. É autor de romances como Sargento Getúlio, O Sorriso do Lagarto, A Casa dos Budas Ditosos, que causou polêmica e ficou proibido em alguns estabelecimentos, e Viva o Povo Brasileiro, tendo sido, esse último, destacado como samba-enredo pela escola de samba Império da Tijuca, no Carnaval de 1987. É pai do ator e VJ da MTV Bento Ribeiro.

Imagem do dia

In the Conservatory.jpg
No conservatório, por Édouard Manet (1879).

Dia 23 [Janeiro de 2009]

Quê?
As perguntas: «Quem és?» ou «Quem sou?» têm respostas fáceis: a pessoa conta a sua vida e assim se apresenta aos outros. A pergunta que não tem resposta formula-se de outra maneira: «Que sou eu?» Não «quem» mas «quê». Aquele que fizer essa pergunta enfrenta-se com uma página em branco e o pior é que não será capaz de escrever uma palavra que seja.
José Saramago, O CADERNO

Dia-a-dia

• Este só pode ser feliz e capaz de criar ou produzir quando sente a Mulher (neste caso a Esposa) junto de si: no silêncio da casa, na certeza da confiança, intimidade e sinceridade mútuas, na plenitude do amor satisfeito, e na fecundidade do trabalho. Como se, faltando-lhe ela, ele se julgasse subitamente privado do sol que o aquece e do ar que respira – sem o notar.
– Lembras-te tu do tempo em que nós chamávamos «aquário dos imbecis» ao Grémio Literário? Onde isso vai!
Se me lembro, e com que verdade! Mudam-se os tempos e as instituições, mas os hábitos ficam! [JRM, 5/4/1977]
• A 23 de Janeiro de 1905, morre Rafael Bordalo Pinheiro, desenhador e ceramista português. Foi o criador da figura do Zé Povinho.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Dia 22 [Janeiro de 2009]

Israel e os seus derivados
O processo de extorsão violenta dos direitos básicos do povo palestino e do seu território por parte de Israel tem prosseguido imparável perante a cumplicidade ou a indiferença da mal chamada comunidade internacional. O escritor israelita David Grossmann, cujas críticas, em todo o caso sempre cautelosas, ao governo do seu país têm vindo a subir de tom, escreveu num artigo publicado há algum tempo que Israel não conhece a compaixão. Já o sabíamos. Com a Tora como pano de fundo, ganha pleno significado aquela terrível e inesquecível imagem de um militar judeu partindo à martelada os ossos da mão a um jovem palestino capturado na primeira Intifada por atirar pedras aos tanques israelitas. Menos mal que não a cortou. Nada nem ninguém, nem sequer organizações internacionais que teriam essa obrigação, como é o caso da ONU, conseguiram, até hoje, travar as acções mais do que repressivas, criminosas, dos sucessivos governos de Israel e das suas forças armadas contra o povo palestino. Visto o que se passou em Gaza, não parece que a situação tenda a melhorar. Pelo contrário. Enfrentados à heróica resistência palestina, os governos israelitas modificaram certas estratégias iniciais suas, passando a considerar que todos os meios podem e devem ser utilizados, mesmo os mais cruéis, mesmo os mais arbitrários, desde os assassinatos selectivos aos bombardeamentos indiscriminados, para dobrar e humilhar a já lendária coragem do povo palestino, que todos os dias vai juntando parcelas à interminável soma dos seus mortos e todos os dias os ressuscita na pronta resposta dos que continuam vivos.
José Saramago, O CADERNO

Dia-a-dia

• Sabia que nenhum corpo possui calor, e por tal a temperatura não é "uma medida do calor que um corpo possui"?
• Nesta data foi descoberta, em 1462, a ilha de São Vicente, em Cabo Verde.
• Os cafés são a sala de visitas de quem não tem sala nem visitas. (De Idealista no Mundo Real.) [JRM, 5/4/1977]

sábado, 21 de janeiro de 2012

Dia 21 [Janeiro de 2009]

Donde?
Donde saiu este homem? Não peço que me digam onde nasceu, quem foram os seus pais, que estudos fez, que projecto de vida desenhou para si e para a sua família. Tudo isso mais ou menos o sabemos, tenho aí a sua autobiografia, livro sério e sincero, além de inteligentemente escrito. Quando pergunto donde saiu Barack Obama estou a manifestar a minha perplexidade por este tempo que vivemos, cínico, desesperançado, sombrio, terrível em mil dos seus aspectos, ter gerado uma pessoa (é um homem, podia ser uma mulher) que levanta a voz para falar de valores, de responsabilidade pessoal e colectiva, de respeito pelo trabalho, também pela memória daqueles que nos antecederam na vida. Estes conceitos que alguma vez foram o cimento da melhor convivência humana sofreram por muito tempo o desprezo dos poderosos, esses mesmos que, a partir de hoje (tenham-no por certo), vão vestir à pressa o novo figurino e clamar em todos os tons: «Eu também, eu também.» Barack Obama, no seu discurso, deu-nos razões (as razões) para que não nos deixemos enganar. O mundo pode ser melhor do que isto a que parecemos ter sido condenados. No fundo, o que Obama nos veio dizer é que outro mundo é possível. Muitos de nós já o vínhamos dizendo há muito. Talvez a ocasião seja boa para que tentemos pôr-nos de acordo sobre o modo e a maneira. Para começar.
José Saramago, O CADERNO

Dia-a-dia

• A 21 de Janeiro de 1961, morre, em Lisboa, João Henrique Pereira Villaret, actor, encenador e declamador português. Artistas e intelectuais desfilaram perante a urna com os restos mortais de João Villaret e milhares de pessoas estiveram presentes no seu funeral, numa impressionante manifestação de pesar.
A um velho amigo e companheiro meu das orgias patrióticas e rambóias dos verdes anos, emigrado nos EUA, desde 1921, ofereci eu em 1947 um livro meu acabado de publicar. Em atenção à nossa antiga amizade e ao carácter dele, apus-lhe uma pomposa dedicatória: «Ao..., Pioneiro Lusíada na Frente Norte-Americana...» Etc. O homem rejubilou, e por muitos anos exibiu essa dedicatória a quantos, portugueses e americanos, se dignavam escutá-lo. «Pioneiro Lusíada» era um título de honra e patriotismo! Em 1964, de visita a sua casa, e estando só, dei uma olhadela à modesta biblioteca. O meu livro lá estava no papel já bronzeado e friável do tempo. Notei então (ele era um técnico!) que o meu Amigo cortara apenas as primeiras páginas do volume: para além da dedicatória não lera nada!
São estas surpresas que esperam os escritores que concorrem aos leilões de amigos falecidos. Do Gualdino Gomes conta-se que lhe foram encontradas no espólio, virgens de leitura, muitas das obras de amigos que ele elogiara em vida. [JRM, 5/4/1977]

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Dia 20 [Janeiro de 2009]

Obama
A Martin Luther King mataram-no. Quarenta mil polícias velam em Washington para que hoje não suceda o mesmo a Barack Obama. Não sucederá, digo, como se na minha mão estivesse o poder de esconjurar as piores desgraças. Seria como matar duas vezes o mesmo sonho. Talvez todos sejamos crentes desta nova fé política que irrompeu em Estados Unidos como um tsunami benévolo que tudo vai levar adiante separando o trigo do joio e a palha do grão, talvez afinal continuemos a acreditar em milagres, em algo que venha de fora para salvar-nos no último instante, entre outras coisas, desse outro tsunami que está arrasando o mundo. Camus dizia que se alguém quisesse ser reconhecido bastar-lhe-ia dizer quem é. Não sou tão optimista, pois, em minha opinião, a maior dificuldade está precisamente na indagação de quem somos, nos modos e nos meios para o alcançar. Porém, fosse por simples casualidade, fosse de caso pensado, Obama, nos seus múltiplos discursos e entrevistas, disse tanto de si mesmo, com tanta convicção e aparente sinceridade, que a todos já nos parece conhecê-lo intimamente e desde sempre. O presidente dos Estados Unidos que hoje toma posse resolverá ou intentará resolver os tremendos problemas que o estão esperando, talvez acerte, talvez não, e algo nas suas insuficiências, que certamente terá, vamos ter de lhe perdoar, porque errar é próprio do homem como por experiência tivemos de aprender à nossa custa. O que não lhe perdoaríamos jamais é que viesse a negar, deturpar ou falsear uma só das palavras que tenha pronunciado ou escrito. Poderá não conseguir levar a paz ao Médio Oriente, por exemplo, mas não lhe permitiremos que cubra o fracasso, se tal se der, com um discurso enganoso. Sabemos tudo de discursos enganosos, senhor presidente, veja lá no que se mete.
José Saramago, O CADERNO

Dia-a-dia

O papel calandrado, a ponta da pena ágil, macia, mas lenta e obediente ao pensamento: que gozo, o de escrever! Quem o não sentir não é escritor. Eu já o fui!... [JRM, 5/4/1977]

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Dia 19 [Janeiro de 2009]

A outra crise
Crise financeira, crise económica, crise política, crise religiosa, crise ambiental, crise energética, se não as enumerei a todas, creio ter enunciado as principais. Faltou uma, principalíssima em minha opinião. Refiro-me à crise moral que arrasa o mundo e dela me permitirei dar alguns exemplos. Crise moral é a que está padecendo o governo israelita, doutra maneira não seria possível entender a crueldade do seu procedimento em Gaza, crise moral é a que vem infectando as mentes dos governantes ucranianos e russos condenando, sem remorsos, meio continente a morrer de frio, crise moral é a da União Europeia, incapaz de elaborar e pôr em acção uma política externa coerente e fiel a uns quantos princípios éticos básicos, crise moral é a que sofrem as pessoas que se aproveitaram dos benefícios corruptores de um capitalismo delinquente e agora se queixam de um desastre que deveriam ter previsto. São apenas alguns exemplos. Sei muito bem que falar de moral e moralidade nos tempos que correm é prestar-se à irrisão dos cínicos, dos oportunistas e dos simplesmente espertos. Mas o que disse está dito, certo de que estas palavras algum fundamento hão-de ter. Meta cada um a mão na consciência e diga o que lá encontrou.
José Saramago, O CADERNO

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

FICA-TE MUNDO CADA VEZ A PIOR

Fosse Cristo, Voltaire ou João Fernandes o primeiro a formular esta máxima, tem a minha inteira concordância. Antigamente, quando alguém se queria desfazer dum cão, atava-lhe uma pedra ao pescoço e atirava-o ao rio. Hoje, quem se quer desfazer dum cão leva-o para longe e abandona-o. Tão revoltante é um procedimento como o outro. Vem isto a propósito duma pulhice que me traz revoltado.
Haverá uns três meses, e estando eu aqui na aldeia, um familiar meu de visita perguntou-me:
– Arranjaste um cão?
– Eu?!
– Tens um preso no coberto!
Fui ver. Lá estava um cachorro preso ao chedeiro dum carro de bois. Julgando tratar-se de brincadeira de crianças, desfiz o nó do cordel que o prendia pelo pescoço e, convicto de que o canídeo, uma vez liberto, iria procurar o dono, dei o caso por arrumado.
Qual não foi a minha surpresa quando, passados uns quinze dias, de volta à aldeia, deparo com a mancha cor de limão sujo do cachorro à entrada do coberto onde costumo recolher o carro. Tão imóvel e esparramado que o julguei morto. Aproximei-me. Afinal respirava. Tão lentamente como deve respirar um urso em hibernação. Chamei por ele. Não reagiu. Toquei-lhe com a ponta do sapato. Levantou a cabeça. Reparei então que no lugar do olho direito tem uma bola branca. No esquerdo, sumido na órbita à sombra dum tufo de pêlo eriçado, uma tristeza, uma resignação, uma dor sem limites. Pedi-lhe, por gestos, que se desviasse para eu meter o carro. Deve ter compreendido porque arrastadamente se ergueu e afastou mal equilibrado nas quatro patas. Pude então reparar até onde ia a miséria do pobre animal: um tumor nos testículos, os quadris em chaga, espinha em bossa decamelo, membros titubeantes – um esqueleto semovente com a morte às cavalitas. Perguntei de quem era o cão. Ninguém me soube ou quis responder.
– Então não é cá da aldeia?
– Não. Isso são cães abandonados. Trazem-nos de longe e deixam-nos.
– E ninguém o alimenta?
– Suponho que não.
– Nesse caso, de que é que ele consegue sobreviver?
– Sei lá? Alguns restos que por aí apanha...
Compreendi então porque, de há três meses a esta parte, encontro sempre o cão deitado à minha porta. É o único lugar donde ele não é escorraçado.
Gostava de saber quem foi o safardana que abandonou o cão nestas condições. Queria ter com ele uma conversinha particular. Dizer-lhe, cara a cara:
– Quem faz isto a um cão, é bem capaz de fazer o mesmo ao pai ou à mãe...
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 16 e s.)

S. Martinho de Anta, 1 de Junho

Dia-a-dia

Esta amiga repete-me, rindo, uma canção de revista que se lembra de ter ouvido à mãe, na infância: «Maria, são teus olhos azeitonas, / Cachopa, tua boca qual cereja! / E os teus seios cachos de uvas que abandonas / À carícia desta boca que os deseja!» «Mas é uma canção antropofágica!», digo-lhe eu. «Cheia de metáforas alimentares ou gastronómicas! A mulher reduzida a objecto duma fome insaciável!» E desta vez ela não ri. [JRM, 29/3/1977]

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Dia-a-dia

• Faleceu neste dia, em 1995, o estimado Miguel Torga, poeta, ficcionista e ensaísta português. Nascido em 12 de Agosto de 1907, tinha então 87 anos de idade.
Estranho sonho aquele em que viste junto de ti, rejuvenescida, tua mãe, morta há longos anos. Acordaste acabrunhado: porque, ao objectivar a verdadeira natureza dos teus sentimentos ou da tua dependência para com ela, o sonho te mostrou o recalque ou repressão em que tens vivido a vida inteira. E assim te libertaste deles! [JRM, 29/3/1977]

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

MADUREIROS

O tempara! O mores![1] «Ó tempo das amoras!» Verdadeiramente, o tempo das amoras é Setembro. Mas neste fim de Agosto já elas estão coradinhas e apetitosas. Nos meus tempos de rapaz não se viam tantas amoras maduras à berma dos caminhos. À uma, os lavradores não deixavam medrar tanto as silvas. À outra, garotos e melros vindimavam nelas à tripa forra. «O melro pica na mora» era o estribilho preferido por mestre Saias quando, no calor duma desgarrada à «cana verde», precisava de muleta para rimar com palavra terminada em «ora». Era um grande cantador ao desafio, mestre Saias. Estilista é que nem por isso. Se o fosse, não punha o melro a «namorar» em Setembro. Seja como for, uma coisa é certa: as amoras são cada vez mais e os melros e os garotos cada vez menos. No meu tempo eram mais que as pragas e não havia amoras que lhes resistissem. Eram os melros a «picar» e nós a fazer madureiros. Quem é que se não lembra? «Vamos fazer um madureiro?» «Vamos!». E toda a minha gente corria aos silvados a colher amoras. Elas para os aventais ou a aba dos vestidos, nós para os barretes ou a fralda das camisas. Vindima feita, toca a escolher uma pedra jeitosa, de preferência com uma depressão a meio, a servir de gamela. Depois esmagavam-se as amoras bem esmagadinhas de modo a ficarem em compota. A seguir cada qual munia-se dum garfo ou forquilha de urze. Todos a postos, ao ataque! A ver quem mais garfadas levava à boca, quem mais sorvia o molho a ventosas de lábios e língua. Resultado? Rostos e roupas mais besuntados de tinta do que palhaços pelo Entrudo. Mas que alegria! E que saudades... Porque será que as crianças de agora não fazem madureiros?
Nisto pensava eu quando comecei a ouvir um chilreio infantil para além dum campo de milho. «Quereis ver que estão a fazer um madureiro?» – disse para comigo. E estuguei o passo para ver o que era. Uma garota e três garotos, todos eles na casa dos sete, oito anos, sentados num cômoro formado por duas levadas convergentes, nesta época do ano enxutas. À volta, caprichosas figuras geométricas desenhadas no chão com ramos secos dum velho olmo há anos prostrado por estranha doença que, segundo julgo saber, levou quantos da sua espécie havia na província.
– Então estas são as vossas lameiras? – perguntei, lembrado de outras que eu, na idade deles, costumava talhar na relva a cristas de sacho.
– Não. Isto é a nossa casa – respondeu ela – Aqui é a cozinha.
– Estou a ver.
Lá estava a lareira, a lenha, os potes.
– Aqui a sala – interveio um dos garotos – O sofá, a mesa. As cadeiras.
– Aqui os quartos. A porta, as camas – e o garoto que agora falava, deitou-se nos pauzinhos que faziam de leito para eu ver.
– E ali? A horta?
– Não. A garagem.
– Desculpa. Não tinha reparado nos mercedes.
Eles riram-se, porque eram bicicletas.
– Sabeis o que é um madureiro?
– Não.
– E amoras?
– Também não.
– Mas em que mundo viveis vós?
– Na França.
– Ah! Agora percebo. Pois tendes aqui uma bonita casa. Diverti-vos e sede felizes.
E voltei costas a murmurar:
– O tempora! O mores! Outros tempos, outras brincadeiras.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 14 e s.)

[1] Tradução literal: «Oh, tempos! Oh, costumes!»

Dia-a-dia

Felizmente não preciso de ser estimulado com aquela do «viver para os meus próprios sonhos»! (F. Pessoa) Não tenho eu feito outra coisa, e com bem pouco reconhecimento e ainda menos proveito. E se, em vez de pregar, desatássemos a dar algumas mostras do que somos capazes – na ficção, na filosofia ou no teatro – para não dizer mais? [JRM, 29/3/1977]
O navio de cruzeiro Costa Concordia encalha e tomba na costa da Toscana, Itália, com pelo menos cinco mortes.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Dia 15 [Janeiro de 2009]

Lapidações e outros horrores
A notícia queima. O mufti da Arábia Saudita, máxima autoridade religiosa do país, acaba de emitir uma fatua que permite (permitir é um eufemismo, a palavra exacta deveria ser impor) o casamento de meninas na idade de 10 anos. O dito mufti (hei-de lembrar-me dele nas minhas orações) explica porquê: porque a decisão é «justa» para as mulheres, ao contrário da fatua anteriormente vigente, que havia fixado em 15 anos a idade mínima para o casamento, o que Abdelaziz Al Sheji (esse é o nome) considerava «injusto». Sobre as razões deste «justo» e deste «injusto», nem uma palavra, não se nos diz sequer se as meninas de 10 anos foram consultadas. É certo que a democracia brilha pela inexistência na Arábia Saudita, mas, num caso de tanto melindre, poderia ter-se aberto uma excepção. Enfim, os pedófilos devem estar contentes: a pederastia é legal na Arábia Saudita. Outras notícias que queimam. No Irão foram lapidados dois homens por adultério, no Paquistão cinco mulheres foram enterradas vivas por quererem casar-se pelo civil com homens da sua escolha… Fico por aqui. Não aguento mais.
José Saramago, O CADERNO

Dia-a-dia

• A amizade está para o amor, como a vacina para a doença. [JRM, 26/3/1977]

sábado, 14 de janeiro de 2012

Dia 14 [Janeiro de 2009]

Presidentes
Um, Bush, que sai e que nunca deveria ter entrado, outro, Obama, que está prestes a chegar e oxalá não venha a desiludir-nos, outro, Bartlet, que, não duvido, ficará por muito tempo. A este dedicámos nestes dias, Pilar e eu, algumas horas disfrutando os últimos episódios de A Ala Oeste da Casa Branca a que em Portugal preferiram chamar Os Homens do Presidente, título eminentemente machista, uma vez que algumas das personagens mais importantes da série são mulheres. Jed Bartlet, interpretado por Martin Sheen (lembram-se de Apocalipse Now?), é o nome do presidente que temos vindo a acompanhar com um interesse que nunca esmoreceu, tanto pela tensão dramática dos conflitos como também por alguns aspectos didácticos sempre presentes sobre o modo norte-americano de fazer política, quer no bom, quer no péssimo. Bartlet chegou ao fim do seu segundo mandato e portanto está de saída. Estamos em plena campanha presidencial, uma campanha em que não têm faltado os golpes baixos, mas que acabará (já o sabemos) com a vitória do melhor dos candidatos, um hispano de ideias claras e ética impecável chamado Mattew Santos. Claro que é irresistível pensar em Barack Obama. Terão os autores da história o dom da profecia? É que entre um hispano e um negro, a diferença não é tão grande.
José Saramago, O CADERNO

Dia-a-dia

«O coração dos velhos é como um frasco de perfume que se esgotou: guarda para sempre um rasto do amor que algum dia conteve.» (De O Milagre segundo Salomé.) [JRM, 22/3/1977]

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Pintassilgo-americano

Carduelis tristis CT2.jpg
Pintassilgo-americano (Carduelis tristis), Quebec, Canadá.

Dia 13 [Janeiro de 2009]

Ángel González
Há um ano, precisamente no dia 12 de Janeiro, num hospital de Madrid, morreu Ángel González. Hospitalizado eu próprio em Lanzarote por causa de uma doença similar à que o levou, atendi a chamada telefónica de um jornal que queria publicar umas palavras sobre a infausta notícia. Em termos que o meu interlocutor mal deve ter ouvido, tão intensa era a minha emoção, disse que havia perdido um amigo que era, ao mesmo tempo, um dos maiores poetas de Espanha. Em sua lembrança deixo hoje aqui um dos seus poemas, que traduzo do espanhol.

Assim parece

Acusado pelos críticos literários de realista,
os meus parentes, em troca, atribuem-me
o defeito contrário;
afirmam que não tenho
sentido algum da realidade.
Sou para eles, sem dúvida, um funesto espectáculo:
analistas de textos, parentes da província,
pelos vistos, a todos defraudei
que lhe vamos fazer!
Citarei alguns casos:
Certas tias devotas não se podem conter,
e choram ao olhar-me.
Outras muito mais tímidas fazem-me arroz doce,
como quando eu era pequeno,
e sorriem contritas, e dizem-me:
que alto,
se o teu pai te visse…,
e ficam suspensas, sem saber que mais dizer.
No entanto, não ignoro
que os seus gestos ambíguos
dissimulam
uma sincera compaixão irremediável
que brilha humidamente nos seus olhares
e nos seus piedosos dentes postiços de coelho.
E não são só elas.
De noite
a minha velha tia Clotilde regressa da tumba
para agitar diante da minha cara os dedos como sarmentos
e repetir em tom admonitório: 
De beleza não se come! Que julgas que é a vida?
Por sua parte,
a minha falecida mãe, com voz delgada e triste,
augura para a minha existência um lamentável final:
manicómios, asilos, calvície, blenorragia.
Eu não sei que dizer-lhes, e elas
regressam ao seu silêncio.
O mesmo, igual que então.
Como quando era pequeno.
Parece
que a morte não chegou a passar por nós.
José Saramago, O CADERNO

Dia-a-dia

Já me verberaram o falar muito de «cultura» sem ter obra que o justifique. (E os outros têm-na?) É possível que haja razão nisso. Tenho usado esse termo por vezes em vez de «mentalidade», ou de «reforma da mentalidade», que era o tema tão caro a António Sérgio. E que coincide, afinal, com o que o ilustre António José Saraiva tem entendido por Cultura no sentido lato. Sou, no entanto, dos que menos se manifestam a tal respeito. Já houve mesmo um semiletrado que, do fundo da sua insignificância, se permitiu condenar a doutrina de Sérgio: provando, assim, sem o saber, que o Mestre tinha razão! [JRM, 22/3/1977]
Rachmaninov: Piano Concerto No. 2 (mais)

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Dia 12 [Janeiro de 2009]

Imaginemos
Imaginemos que, nos anos trinta, quando os nazis iniciaram a sua caça aos judeus, o povo alemão teria descido à rua, em grandiosas manifestações que iriam ficar na História, para exigir ao seu governo o fim da perseguição e a promulgação de leis que protegessem todas e quaisquer minorias, fossem elas de judeus, de comunistas, de ciganos ou de homossexuais. Imaginemos que, apoiando essa digna e corajosa acção dos homens e mulheres do país de Goethe, os povos da Europa desfilariam pelas avenidas e praças das suas cidades e uniriam as suas vozes ao coro dos protestos levantados em Berlim, em Munique, em Colónia, em Frankfurt. Já sabemos que nada disto sucedeu nem poderia ter sucedido. Por indiferença, apatia, por cumplicidade táctica ou manifesta com Hitler, o povo alemão, salvo qualquer raríssima excepção, não deu um passo, não fez um gesto, não disse uma palavra para salvar aqueles que iriam ser carne de campo de concentração e de forno crematório, e, no resto da Europa, por uma razão ou outra (por exemplo, os fascismos nascentes), uma assumida conivência com os carrascos nazis disciplinaria ou puniria qualquer veleidade de protesto.
Hoje é diferente. Temos liberdade de expressão, liberdade de manifestação e não sei quantas liberdades mais. Podemos sair à rua aos milhares ou aos milhões que a nossa segurança sempre estará assegurada pelas constituições que nos regem, podemos exigir o fim dos sofrimentos de Gaza ou a restituição ao povo palestino da sua soberania e a reparação dos danos morais e materiais sofridos ao longo de sessenta anos, sem piores consequências que os insultos e as provocações da propaganda israelita. As imaginadas manifestações dos anos trinta seriam reprimidas com violência, em algum caso com ferocidade, as nossas, quando muito, contarão com a indulgência dos meios de comunicação social e logo entrarão em acção os mecanismos do olvido. O nazismo alemão não daria um passo atrás e tudo seria igual ao que veio a ser e a História registou. Por sua vez, o exército israelita, esse que o filósofo Yeshayahu Leibowitz, em 1982, acusou de ter uma mentalidade «judeonazi», segue fielmente, cumprindo ordens dos seus sucessivos governos e comandos, as doutrinas genocidas daqueles que torturaram, gasearam e queimaram os seus antepassados. Pode mesmo dizer-se que em alguns aspectos os discípulos ultrapassaram os mestres. Quanto a nós, continuaremos a manifestar-nos.
José Saramago, O CADERNO

Dia-a-dia

• A 12 de Janeiro de 1976, morre, em Wallingford, Agatha Christie, escritora inglesa de romances policiais. Escreveu mais de 80 livros, criando famosas personagens como Hercule Poirot e Miss Marple.
• Penso às vezes que tu me vais deixar, sair da minha vida, esquecer-me até, e a minha mágoa torna-se imensa. Mas logo to perdoo: porque tu tens sido, na minha relativa esterilidade, como aquelas raras chuvas que, ao cabo de anos de seca, bastam para, numa só noite, transformar em jardins as caatingas do Ceará. [JRM, 22/3/1977]

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Dia 11 [Janeiro de 2009]

Com Gaza
As manifestações públicas não são estimadas pelo poder, que não raro as proíbe ou as reprime. Felizmente não é esse o caso de Espanha, onde se têm visto sair à rua algumas das maiores manifestações realizadas na Europa. Honra seja feita por isso aos habitantes de um país em que a solidariedade internacional nunca foi uma palavra vã e que certamente o expressará no acto multitudinário previsto para domingo em Madrid. O objecto imediato desta manifestação é a acção militar indiscriminada, criminosa e atentatória de todos os direitos humanos básicos, desenvolvida pelo governo de Israel contra a população de Gaza, sujeita a um bloqueio implacável, privada dos meios essenciais à vida, desde os alimentos à assistência médica. Objecto imediato, mas não único. Que cada manifestante tenha em mente que já levam sessenta anos sem interrupção a violência, a humilhação e o desprezo de que têm sido vítima os palestinos por parte dos israelitas. E que nas suas vozes, nas vozes da multidão que sem dúvida estará presente, irrompa a indignação pelo genocídio, lento mas sistemático, que Israel tem exercido sobre o martirizado povo palestino. E que essas vozes, ouvidas em toda a Europa, cheguem também à faixa de Gaza e a toda a Cisjordânia. Não esperam menos de nós os que nessas paragens sofrem cada dia e cada noite. Interminavelmente.
José Saramago, O CADERNO

Coimbra, 11 de Janeiro de 1980.

       LÁPIDE

Luís Vaz de Camões.
Poeta infortunado e tutelar.
Fez o milagre de ressuscitar
A Pátria em que nasceu.
Quando, vidente, a viu
A caminho da negra sepultura,
Num poema de amor e de aventura
Deu-lhe a vida
Perdida.
E agora,
Nesta segunda hora
De vil tristeza,
Imortal,
É ele ainda a única certeza
De Portugal.

Dia-a-dia

Se «a criança é o pai do homem», quem é então a sua mãe? O ventre que a concebeu? Não admira, assim, que os homens vivam na adoração dele! [JRM, 22/3/1977]
A 11 de Janeiro de 1890, o governo britânico entrega a Portugal um memorando exigindo a retirada das forças militares existentes no território compreendido entre Moçambique e Angola. Esta zona era reclamada por Portugal, que a havia incluído no célebre Mapa cor-de-rosa.

Leopardo

Charging Leopard-001.JPG
Jovem leopardo (Panthera pardus pardus) correndo.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

PATOS BRAVOS

Uma vaga de calor originária do norte de África varreu o fim-de-semana do último domingo de Julho.
A Direcção Geral de Saúde fartou-se de emitir comunicados a recomendar aos velhos roupas leves e largas, muita ingestão de líquidos e sítios frescos.
Tudo isso segui à risca. Pus um chapéu de palha e uns calções, muni-me dum liteiro e duma garrafa de água e fui para junto do rio.
Em Peireses, Rio, assim sem mais atributos, é o Regavão.
Nesta época do ano está ele reduzido a um fiozinho de água que lá vai deslizando e rindo de pedra em pedra e de charco em charco. Não obstante, tem recantos duma saudosa beleza que não fica a dever nada à dos celebrados Mondegos, Tejos ou Limas. Lembrei-me de um onde a água cai do alto dum rochedo para uma piscina natural de muitos metros de fundura.
À piscina chama o povo Olas e servia outrora de represa a um moinho hoje em ruínas.
Estou ligado a este local desde os meus oito anos, idade com que principiei a frequentar a escola primária de S. Vicente da Chã. De Peireses éramos quatro os escolares e percorríamos diariamente seis quilómetros de caminhos velhos, ida e volta. Com vento, chuva ou neve, era casa-escola, escola-casa. Com tempo quente, porém, não resistíamos a uma escapadela aos ninhos ou a um mergulho no Rio.
Um dos nossos sítios predilectos era o moinho do Bértolo, precisamente este de que estou a falar.
Por norma, elegíamos o lençol de água que, à saída do rodízio, se espraiava por uma espécie de lagoa pouco funda mas razoavelmente comprida e larga. Aí podíamos chapinar à vontade, sem risco de afogamento.
Um dia, porém, lembrei-me de experimentar a represa. Os meus companheiros alarmaram-se:
– Está quieto, burro, que ainda te afogas!
– Afogo nada. Quereis ver?
O canal de acesso ao cubo era delimitado, duma banda pelo rochedo; da outra, por um paredão de calhaus a esmo com torrões a calafetar as juntas. Escolhi um sítio com três ou quatro metros de largura e, lançando-me do rochedo, fui agarrar-me ao paredão. Depois inverti a manobra. Entre um ponto e outro, ia dando atabalhoadamente aos braços e às pernas. Ao cabo de meia dúzia de ensaios, parecendo-me que já flutuava, aventurei-me piscina fora. Eureka! Sabia nadar... Os outros seguiram-me o exemplo. Em breve parecíamos um bando de parrecos.
Nesse tempo, o moinho do Bértolo ficava no baldio e era um descampado de rochas e tojos. Hoje pertence aos terrenos da Junta de Colonização Interna, os rochedos estão cobertos de árvores e os tojos cederam a vez a um prado ribeirinho.
Foi precisamente deste rincão de relva que eu me lembrei para estender a manta e tomar o fresco.
Ia eu ao longo da margem, silencioso pela verdura, rebenta-me dos pés um guincho esganiçado, estranho, quase horripilante, misto de grito de alarme, aflição ou praga.
Instintivamente, recuei. Mas depressa compreendi do que se tratava: um pato bravo que, surpreendido pela minha súbita e odiosa presença, dera o alerta à ninhada.
E pude então contemplar esta coisa maravilhosa. Enquanto a pata-mãe descolava, em voo descoberto, para montante, os filhotes escapuliam-se, submersos ou à flor da água, em sentido oposto.
A estes, nunca mais lhes pus a vista em cima. Pelo contrário, a pata-mãe fez tudo para atrair e fixar a minha atenção. Após um voo de poucos metros, poisou no tal lençol de água a que há pouco me referi e pôs-se a fazer evoluções em círculo, com grande estardalhaço de patas e asas, como a dizer-me: «Aqui estou. Se quiseres, mata-me. Mas não faças mal aos meus filhos.»
Comovi-me. Há por aí tantas mães humanas que matam os filhos à nascença ou se desfazem deles logo que podem. E ali estava uma mãe irracional disposta a dar a vida pelos seus...
Afastei -me discretamente:
– Desculpa, irmã pata. Volta para junto dos teus meninos e goza o resto da tarde em paz.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 11 e ss.)