Sexta-feira, Abril 9
Lenocínio e Constituição
«A Berta estava insatisfeita com a condenação de que fora objecto, mas não discutia os factos que lhe eram apontados na sentença. De facto, tinha tido uma casa de meninas "a funcionar"...
A insatisfação da Berta resultava do facto de considerar inconstitucional o crime de lenocínio. Na verdade, tal proibição legal limitava e condicionava "a consciência pessoal e a liberdade de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho", asseguradas pela Constituição. A Berta recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães, mas não teve grande sorte. Continuou condenada e, quanto à inconstitucionalidade do crime de lenocínio, a Relação considerou que "a seguir-se a concepção de liberdade de escolha (de profissão) que a Berta propõe, a máfia, em geral, ou, em especial, as actuais 'máfias do Leste', que vivem da exploração de parte dos salários de imigrantes, devem ser consideradas como altruístas 'centros de emprego'"!
Recorreu então para o Tribunal Constitucional. Para a Berta, o crime de lenocínio, tal como o previa a lei, tinha um "forte pendor moral", podendo mesmo dizer-se que "tal como está previsto é um crime sem vítima, pois não protege ninguém em concreto; defendendo, antes, interesses de cariz sentimentalista". Na verdade, sendo a prostituição é legal, isto é, livre, por que razão há-de ser punido aquele que, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição? No fundo, "parece estar a privar-se o cidadão de exercer uma actividade profissional, por imposição de regras e princípios morais"...
O Tribunal Constitucional debruçou-se com curiosidade sobre o caso da Berta, começando por lembrar que, "apesar das duas posições extremas - a da separação absoluta entre o direito e a moral e a da total coincidência entre o direito e a moral -, é amplamente aceite que o direito e a moral, embora a partir de perspectivas diferentes, fazem parte de uma unidade mais vasta", sendo certo que "tanto quem procure em valores morais a legitimação do direito, como quem acentue a distinção entre moral e direito reconhecerá, inevitavelmente, que existem bens e valores que participam das duas ordens normativas".
Ora, no caso do crime de lenocínio, para o Tribunal Constitucional, o que está subjacente ao mesmo não são "preconceitos morais", mas antes o "reconhecimento de que uma ordem jurídica orientada por valores de justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão da liberdade de acção, situações e actividades cujo princípio seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem". E "a liberdade de exercício de profissão ou de actividade económica tem obviamente, como limites e enquadramento, valores e direitos directamente associados à protecção da autonomia e da dignidade de outro ser humano. Por isso estão particularmente condicionadas, como objecto de trabalho ou de empresa, actividades que possam afectar a vida, a saúde e a integridade moral dos cidadãos".
É certo que, como o Tribunal Constitucional reconheceu, a Constituição não impõe que seja punido criminalmente o lenocínio, mas também não proíbe que tal actuação seja punida criminalmente. No fundo, está-se perante uma "opção de política criminal", sempre passível de discussão, mas "justificada, sobretudo, pela normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e exploração da necessidade económico-social das pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência".
Com a punição do crime do lenocínio pretende-se evitar o risco da exploração de situações de carência e desprotecção social, risco que é "elevado e não aceitável", já que os estudos existentes no nosso país indicam que "as situações de prostituição estão associadas a carências sociais elevadas". E o Tribunal Constitucional concluiu não existir qualquer inconstitucionalidade no crime do lenocínio e a Berta, para além de ter de pagar as custas, lá teve de entregar os 1500 euros ao O Ninho..
O Estado paga...
A Maria morreu durante um aborto em 1985. A mulher que fizera o aborto e tentara esconder o cadáver veio a ser apanhada e condenada na pena de quatro anos e seis meses de prisão e no pagamento de uma indemnização de 3.000.000$00 aos herdeiros da Maria. Não pagou porque houve recurso e... o processo parou no Tribunal da Relação de Évora. Durante anos, não se praticou qualquer acto no processo, por razões não esclarecidas, e em 1997 a Relação de Évora ordenou "o arquivamento dos autos por prescrição do procedimento criminal". Os herdeiros da Maria intentaram então uma acção contra o Estado, pedindo uma indemnização pelos prejuízos causados com a demora na decisão e que levara à prescrição.
Na 1ª instância, o tribunal condenou o Estado a pagar aos herdeiros, que tinham pedido 60.000 contos de indemnização, a quantia de 3000 contos. Mas na Relação o Estado foi absolvido. Recorreram então os herdeiros para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que, em 17 de Junho de 2003, pela pena dos juízes-conselheiros Camilo Moreira Camilo, Lopes Pinto e Pinto Monteiro, não teve dúvidas em reconhecer que os herdeiros da Maria tinham direito a ser indemnizados pelo atraso anormal do processo. Mas esse direito dos herdeiros da Maria a serem indemnizados pelo Estado era só pelos prejuízos causados com o atraso do processo e não pelos que tinham sido causados com a morte da Maria.
O STJ optou por considerar que com o atraso e prescrição os herdeiros tinham perdido a possibilidade de receberem a indemnização de 3000 contos a que tinha sido condenada inicialmente a mulher que praticara o aborto e causara a morte, pelo que era justo, num sentido equitativo, condenar o Estado a pagar aos herdeiros os, agora, 15.000 euros acrescidos dos juros desde o início do processo. ("Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do S.T.J. 2003- II).»
FRANCISCO TEIXEIRA DA MOTA (no Público de hoje)
# posto por Rato da Costa @ 9.4.04
A insatisfação da Berta resultava do facto de considerar inconstitucional o crime de lenocínio. Na verdade, tal proibição legal limitava e condicionava "a consciência pessoal e a liberdade de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho", asseguradas pela Constituição. A Berta recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães, mas não teve grande sorte. Continuou condenada e, quanto à inconstitucionalidade do crime de lenocínio, a Relação considerou que "a seguir-se a concepção de liberdade de escolha (de profissão) que a Berta propõe, a máfia, em geral, ou, em especial, as actuais 'máfias do Leste', que vivem da exploração de parte dos salários de imigrantes, devem ser consideradas como altruístas 'centros de emprego'"!
Recorreu então para o Tribunal Constitucional. Para a Berta, o crime de lenocínio, tal como o previa a lei, tinha um "forte pendor moral", podendo mesmo dizer-se que "tal como está previsto é um crime sem vítima, pois não protege ninguém em concreto; defendendo, antes, interesses de cariz sentimentalista". Na verdade, sendo a prostituição é legal, isto é, livre, por que razão há-de ser punido aquele que, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição? No fundo, "parece estar a privar-se o cidadão de exercer uma actividade profissional, por imposição de regras e princípios morais"...
O Tribunal Constitucional debruçou-se com curiosidade sobre o caso da Berta, começando por lembrar que, "apesar das duas posições extremas - a da separação absoluta entre o direito e a moral e a da total coincidência entre o direito e a moral -, é amplamente aceite que o direito e a moral, embora a partir de perspectivas diferentes, fazem parte de uma unidade mais vasta", sendo certo que "tanto quem procure em valores morais a legitimação do direito, como quem acentue a distinção entre moral e direito reconhecerá, inevitavelmente, que existem bens e valores que participam das duas ordens normativas".
Ora, no caso do crime de lenocínio, para o Tribunal Constitucional, o que está subjacente ao mesmo não são "preconceitos morais", mas antes o "reconhecimento de que uma ordem jurídica orientada por valores de justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão da liberdade de acção, situações e actividades cujo princípio seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem". E "a liberdade de exercício de profissão ou de actividade económica tem obviamente, como limites e enquadramento, valores e direitos directamente associados à protecção da autonomia e da dignidade de outro ser humano. Por isso estão particularmente condicionadas, como objecto de trabalho ou de empresa, actividades que possam afectar a vida, a saúde e a integridade moral dos cidadãos".
É certo que, como o Tribunal Constitucional reconheceu, a Constituição não impõe que seja punido criminalmente o lenocínio, mas também não proíbe que tal actuação seja punida criminalmente. No fundo, está-se perante uma "opção de política criminal", sempre passível de discussão, mas "justificada, sobretudo, pela normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e exploração da necessidade económico-social das pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência".
Com a punição do crime do lenocínio pretende-se evitar o risco da exploração de situações de carência e desprotecção social, risco que é "elevado e não aceitável", já que os estudos existentes no nosso país indicam que "as situações de prostituição estão associadas a carências sociais elevadas". E o Tribunal Constitucional concluiu não existir qualquer inconstitucionalidade no crime do lenocínio e a Berta, para além de ter de pagar as custas, lá teve de entregar os 1500 euros ao O Ninho..
O Estado paga...
A Maria morreu durante um aborto em 1985. A mulher que fizera o aborto e tentara esconder o cadáver veio a ser apanhada e condenada na pena de quatro anos e seis meses de prisão e no pagamento de uma indemnização de 3.000.000$00 aos herdeiros da Maria. Não pagou porque houve recurso e... o processo parou no Tribunal da Relação de Évora. Durante anos, não se praticou qualquer acto no processo, por razões não esclarecidas, e em 1997 a Relação de Évora ordenou "o arquivamento dos autos por prescrição do procedimento criminal". Os herdeiros da Maria intentaram então uma acção contra o Estado, pedindo uma indemnização pelos prejuízos causados com a demora na decisão e que levara à prescrição.
Na 1ª instância, o tribunal condenou o Estado a pagar aos herdeiros, que tinham pedido 60.000 contos de indemnização, a quantia de 3000 contos. Mas na Relação o Estado foi absolvido. Recorreram então os herdeiros para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que, em 17 de Junho de 2003, pela pena dos juízes-conselheiros Camilo Moreira Camilo, Lopes Pinto e Pinto Monteiro, não teve dúvidas em reconhecer que os herdeiros da Maria tinham direito a ser indemnizados pelo atraso anormal do processo. Mas esse direito dos herdeiros da Maria a serem indemnizados pelo Estado era só pelos prejuízos causados com o atraso do processo e não pelos que tinham sido causados com a morte da Maria.
O STJ optou por considerar que com o atraso e prescrição os herdeiros tinham perdido a possibilidade de receberem a indemnização de 3000 contos a que tinha sido condenada inicialmente a mulher que praticara o aborto e causara a morte, pelo que era justo, num sentido equitativo, condenar o Estado a pagar aos herdeiros os, agora, 15.000 euros acrescidos dos juros desde o início do processo. ("Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do S.T.J. 2003- II).»
FRANCISCO TEIXEIRA DA MOTA (no Público de hoje)
# posto por Rato da Costa @ 9.4.04
TUBERCULOSE
De acordo com o «Expresso», um grupo de profissionais da saúde vai, na próxima semana, apresentar na Assembleia da República uma proposta de alteração à Constituição para permitir o internamento compulsivo dos doentes com tuberculose.
O Bastonário da Ordem dos Médicos já reagiu e, em declarações à TSF, não escondeu a indignação. Germano de Sousa sublinha que internar doentes à força levanta vários problemas éticos: «Vamos resolver o problema dos tuberculosos prendendo-os de vez? Claro que há uma tuberculose aguda mas justifica o internamento porque o doente quer ser tratado».
Germano de Sousa sublinha que esta proposta põe em causa direitos fundamentais de um Estado democrático e só conhece um país em todo o mundo que obriga os doentes ao internamento: Cuba (registo áudio).
Para além de não resolver o problema, o Bastonário considera que uma alteração constitucional no sentido do internamento compulsivo abre portas para caminhos que podem ser muito perigosos embora reconheça que a tuberculose, em particular a resistente, pode pôr em causa a saúde pública.
Lusomundo
# posto por Rato da Costa @ 9.4.04
O Bastonário da Ordem dos Médicos já reagiu e, em declarações à TSF, não escondeu a indignação. Germano de Sousa sublinha que internar doentes à força levanta vários problemas éticos: «Vamos resolver o problema dos tuberculosos prendendo-os de vez? Claro que há uma tuberculose aguda mas justifica o internamento porque o doente quer ser tratado».
Germano de Sousa sublinha que esta proposta põe em causa direitos fundamentais de um Estado democrático e só conhece um país em todo o mundo que obriga os doentes ao internamento: Cuba (registo áudio).
Para além de não resolver o problema, o Bastonário considera que uma alteração constitucional no sentido do internamento compulsivo abre portas para caminhos que podem ser muito perigosos embora reconheça que a tuberculose, em particular a resistente, pode pôr em causa a saúde pública.
Lusomundo
# posto por Rato da Costa @ 9.4.04
CONTINUO A ACHAR GRAVE...
Tal como já escrevi em comentário ao comentário que foi feito ao meu post sobre os últimos acontecimentos na PGR, eu continuo a achar grave o que por ali se passou. O que não significa que eu pense que se deva extravasar culpas para quem as não tem. Mas, ainda assim, não posso deixar de pensar que o sucedido em nada beneficia a credibilidade da justiça. Imagine-se o que estarão a sentir pessoas que, recentemente, tenham apresentado queixas na PGR contra pessoas conhecidas e poderosas e que optaram por essa via com receio de que, ao apresentá-las nos tribunais de comarca, os visados pudessem aceder a elas mais facilmente?
E não basta dizer, para amenizar as coisas, que o importante é que o caso não tenha sido abafado. Não faltava mais nada! Eu não consigo, sequer, supor que a PGR pudesse abafar um caso destes! Mais: nem me atrevo sequer a admitir que alguém possa aceitar tal situação. Na PGR?!
Admito, contudo, que este é apenas mais um episódio que ilustra o país que somos. Um país onde crianças colocadas sob a responsabilidade do Estado são abusadas sexualmente. Um país onde pessoas morrem nos hospitais na sequência de uma simples intervenção cirúrgica, alegadamente porque a anestesia contém um produto que mata. Um país onde há um hospital em estado-de-sítio por causa de um fungo ou de um vírus.
Eu sei que estamos assim. Mas no dia em que não ficar indignado com episódios destes, então, caramba, vale tudo...
Coutinho Ribeiro
# posto por Rato da Costa @ 9.4.04
E não basta dizer, para amenizar as coisas, que o importante é que o caso não tenha sido abafado. Não faltava mais nada! Eu não consigo, sequer, supor que a PGR pudesse abafar um caso destes! Mais: nem me atrevo sequer a admitir que alguém possa aceitar tal situação. Na PGR?!
Admito, contudo, que este é apenas mais um episódio que ilustra o país que somos. Um país onde crianças colocadas sob a responsabilidade do Estado são abusadas sexualmente. Um país onde pessoas morrem nos hospitais na sequência de uma simples intervenção cirúrgica, alegadamente porque a anestesia contém um produto que mata. Um país onde há um hospital em estado-de-sítio por causa de um fungo ou de um vírus.
Eu sei que estamos assim. Mas no dia em que não ficar indignado com episódios destes, então, caramba, vale tudo...
Coutinho Ribeiro
# posto por Rato da Costa @ 9.4.04
Duccio di Buoninsegna
Crucifixion Scene from the Maestà Altarpiece
Museo dell'Opera del Duomo, Siena
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