segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Alguns livros que hoje li

Os Cordoeiros: Domingo, Fevereiro 29 [2004]

Muro na Cisjordânia

O Supremo Tribunal de Israel,apreciando uma petição feita por israelitas e palestinianos do grupo Comitê Popular contra o Muro na Cisjordânia, determinou que o governo deve suspendê-lo, por uma semana.
Também, na semana passada, o Tribunal Internacional de Justiça, em Haia, se reuniu para avaliar a legalidade do muro.
Na quinta-feira passada, dois palestinianos foram mortos por tropas israelitas durante um protesto para impedir a construção do muro, em Bidou.
Mais um apartheid! Uma vergonha!
# posto por Rato da Costa @ 29.2.04

Efeméride

Em 29 de Fevereiro de 1792, em Pesaro, nasceu Gioacchino Antonio Rossini. Das 40 óperas que escreveu, destaca-se Il Barbiere di Siviglia, representada, pela primeira vez, em 1816, em Roma.

Entrevista

Esclarecida e esclarecedora a entrevista de Clara Sottomayor, professora na Faculdade de Direito da Universidade Católica do Porto. Publicada no Notícias Magazine de hoje, esta especialista em direito de família e de menores tece considerações muito relevantes sobre os muitos disparates que se têm tecido à volta do Caso Casa Pia. A ler e a guardar.

Julgamento

«O juiz mandou-me finalmente erguer e, sem tirar os olhos dum maço de processos que tinha sobre a mesa, perguntou-me:
- Tem mais alguma coisa a alegar em sua defesa?
Era um homem de olhos pequeninos, penetrantes, entrincheirados nuns óculos de míope, e tinha os cabelos raros e revoltos sobre a testa vasta e luzidia. Acompanhara todo o julgamento com a mesma automática indiferença com que certos padres oficiam. Digo mesmo: como se não acreditasse na eficácia da Justiça.
O delegado, esse, compusera uma grande e nobre seriedade para a galeria, que seguiu com ávido interesse o julgamento, não decerto por amor da Justiça, nem porque eu lhe inspirasse comiseração: mas para ouvir relatos dramáticos e torpes. Que disse ele na sua acusação? Não me posso lembrar precisamente: coisas confusas, palavras ocas, gestos... Apenas sei que terminou pedindo contra mim a mais grave das penas aplicáveis aos meus crimes.
Quanto aos senhores jurados, bocejavam, quando não dormiam. Do meu defensor, é estranho, mal me lembro. E inútil insistir. Ai de mim, no meu passado alguma coisa há-de ficar inexplicável. Durante o julgamento caí provavelmente numa destas letargias que me alheiam por completo do ambiente. Desde muito novinho que certos estados de abstracção, ou de torpor, me perturbaram ou inibiram a atenção: durante eles o espírito como que me abandonava, deixando-me entregue ao puro mecanismo vegetativo.


Estremeci. A pergunta do juiz fez-me voltar a mim. Ergui-me e levei a mão direita ao bolso interior do jaquetão, na intenção de puxar do manuscrito que compusera para ler ao tribunal. Um instinto, porém, advertiu-me a tempo: em lugar dos papéis, saquei do lenço, e enxuguei com ele o suor que me escorria da testa. Deixei o rolo no fundo da algibeira e, depois duma pausa, com as mãos pendentes, inclinando-me um pouco, respondi com voz nítida e pausada:
- Declaro mais uma vez que pratiquei todos os crimes de que sou acusado!
Ao dizer isto, o meu coração palpitou vivamente, de quase amorosa alegria.
- Está bem - disse o juiz, sem olhar para mim. - Sente-se além e espere.
- Aí não, daquele lado! - explicou o beleguim, atalhando-me a passagem.
Ouvi atrás de mim um soluço abafado num lenço (era a Luísa) e depois um rumor de comentários excitados. Senti-me cheio de orgulho e atirei um olhar de desafio à multidão que enchia o tribunal. É que eu sou na verdade um caso raro!
Sentei-me num banco, junto da teia, no meio de outros réus, que me olhavam com estranheza e curiosidade. Um deles, que eu nunca vira, acotovelou-me e disse-me ao ouvido num tom de voz familiar e um hálito medonho:
- Apanhas a carga toda!
Encolhi os ombros com indiferença.
Houve em seguida um burburinho; os senhores jurados ergueram-se, batendo as solas no estrado, esticando as pernas que a imobilidade entorpecera, e foram saindo em fila por uma porta baixa, ao fundo, conversando e rindo, com muitas vénias e teimas, enquanto o juiz, reanimado, dava instruções ao presidente. O delegado sumiu-se, muito digno, sobraçando a pasta. No vão duma janela, dois advogados de longas cabeleiras discutiam como dois fariseus sobre pontos da Lei, com afectada e quase cómica solenidade, e segredavam rindo. Na bancada da defesa, absorvido em admiração e estupidez, um estudante seboso e cabeludo procurava fixar-lhes a atitude e o gesto. Era o meu defensor!
O escrivão não se mexeu do seu lugar: amarelo e distraído, tinha o ar dum processo arquivado e esquecido sob o pó. Conservou as mãos descoloridas e magras cruzadas sobre o pano vermelho da mesa, todo esburacado, e não se atrevia a fitar-me nos olhos. Reparei no entanto que me observava a espaços, disfarçadamente, com uma expressão de mágoa ou piedade; então, pus-me a olhá-lo com tal insistência que o obriguei a corar. Ri-me e deixei-o em paz.
É quase certo que, lá por dentro, me chamou cínico e descarado.


O tempo corria devagar, naquela sala que mais parecia um longo esquife, de paredes empoeiradas com painéis antigos de azulejos pintados a flores convencionais. De quando em quando ouvia-se o tilintar das armas dos soldados. Uma aranha, indiferente às misérias e pompas da Justiça, tecia a sua teia num velho bico de gás, sobre as nossas cabeças.
Cheirava mal: a suor, a aguardente e a pó. O ar espesso e envenenado entorpecia. Os guardas dormitavam de pé. O rumor das conversas subia num crescendo, até que o beleguim lhes punha termo com um berro. Podia-se então ouvir o zumbido de duas moscas que turbilhonavam sobre a calva do escrivão como dois acrobatas numa pista. O pobre homem sacudia-se com um desespero fatalista. Assoei-me para que não me vissem rir.
Nesse momento, um sujeitinho gordo e corado veio cochichar-lhe qualquer coisa ao ouvido, deu-lhe uma palmada amigável e eloquente nas costas atrofiadas, e desapareceu, sorrindo para a turba com ar de alegre suficiência e fazendo adeusinhos com a mão papuda para todos os lados. Era um causídico famoso nos anais do crime. Concluí que o escrivão devia sofrer de enterocolite mucomembranosa e de contrariedades domésticas.
Mas tanta expectativa acabou por me impacientar: para que diabo haviam de perder tanto tempo, se a minha condenação era certa e segura, e eu a desejava do mais íntimo da alma? Pensei na penitenciária, e alvorocei-me: devia ser bem melhor que o tribunal. Este aparato sem dignidade nem grandeza, a acumulação de gente, o movimento incessante, a companhia dos outros réus, tudo me desviava dos meus interesses mais vivos e profundos. Eu não tinha sequer esboçado uma defesa. Estava morto por me ver dali para fora, condenado, arrumado para sempre, livre do mundo.
Minha mulher esperava atrás de mim, para além da teia. Voltei-me a olhá-la, e via-a sorrir entre as lágrimas. Creio que me fez um sinal, mas não cheguei a percebê-lo. Tinha os olhos pisados. Ergui os ombros, desinteressado, pois nenhuma dor, nem mesmo a dela, já me impressionava. Ao contrário, desejaria não tornar a vê-la, esquecer tudo, seguir um rumo novo. A dor humana perdera para mim todo o sentido.


O manuscrito que eu tinha na algibeira era a tentativa de explicação do meu procedimento. Não se riam. Não queria, com ele, atrair sobre mim a complacência do digno tribunal, mas provar que a natureza do meu crime era duma complexidade excepcional, que o punha fora e muito acima dos seus fáceis juízos. Escrevera-o à pressa, na cadeia, durante a instrução do meu processo, pensando, comovido, no efeito que a sua leitura iria produzir no julgamento. Mas na verdade, que importavam àqueles homens indiferentes as razões do meu crime e da minha serenidade, que eles por certo classificaram de cinismo?
Os cidadãos desejam que se lhes torne o mais leve possível o «direito» de julgar. Teriam morrido de tédio, ter-se-iam talvez rido, ao escutar a verdade minuciosa dos meus estados de alma. A Verdade, para os cidadãos, é sempre cómica ou corrosiva: desperta o riso - ou reclama medidas de segurança. A que interessa aos tribunais é uma verdade formal, relativa, decalcada nos figurinos da Lei. No fundo, os jurados eram necessariamente estúpidos: a ordem psíquica e moral estava-lhes vedada. Factos! Factos! - Eu seria para eles, apenas, o homem que matou para roubar.


De repente, abriu-se a porta do fundo e o beleguim bradou:
- Está reaberta a audiência! Façam favor de se alevantar!
O juiz e os jurados entravam de novo no pretório. Toda a sala se encheu de rumor e agitação. Respirei aliviado. Era o epílogo da farsa - para mim, o começo de tudo. À custa de ameaças e empurrões, no meio dos quais se erguia o choro desesperado e agudo duma criança, tudo serenou em menos de um minuto, e o presidente do júri, todo curvado, ajeitando as lunetas aflitivamente, leu quesitos e respostas no meio dum silêncio tumular. A sala inteira parecia pender dos seus lábios ressequidos e incolores. Atrás dele, hirtos e inexpressivos como acólitos de padre num enterro, os jurados esperavam a sua própria libertação. O juiz interrompia às vezes a leitura, impaciente, para dar esclarecimentos, e eu mordia a boca para não rir nem gritar. A cada resposta - «está provado por unanimidade» - acendia-se um rumor de comentários. O juiz sentou-se por fim, e, folheando um velho código de folhas amareladas e cobertas de notas, redigiu rapidamente a sentença. Ouvia-se o ranger do aparo, o roçar das folhas do livro e o pigarro dum jurado velho. Chegou-me um aroma fresco de laranja vindo da janela, como um raio de sol... Apanhei a carga toda, conforme profetizara o camarada.
Senti-me empurrado, sacudido, levado pelo braço. Seguiu-se uma enorme confusão. Não me posso lembrar do que se deu a partir daquele instante: recaí decerto no meu alheamento, como num sono de ópio. Só muito mais tarde, na cadeia, consegui com muito esforço, e mesmo assim com falhas, reconstituir a cena do julgamento, que de todo se me varrera da memória. Não há dúvida, eu reconheço que há qualquer coisa em mim. Por isso já não estranho que estas recordações me subam indistintas, enevoadas, sem nexo - como se outro, e não eu, as houvesse vivido.»


José Rodrigues MiguéisPáscoa Feliz, editorial estampa, 5ª ed., p. 11-18
# posto por Rato da Costa @ 29.2.04

[1989] – 28 - Fevereiro (terça).

A Rosa Maria Goulart mandou-me a tese sobre mim. Tinha-a já lido aos bochechos à medida que me ia enviando as folhas. Mas é muito diferente ir riscando fósforos para nos orientarmos num corredor escuro ou acender uma lâmpada que o ilumine logo todo. Li-a, pois, agora (quase) de um trago. É uma coisa linda. Fina, arguta. E um toque de indizível feminino que lhe dá uma flexível elegância. Assim é muito agradável de ler. Naturalmente transcreve muitos trechos dos meus livros a acompanhar a dissertação. E quando os releio, decerto por aquilo que os emoldura, toma-me uma cálida suspeita oblíqua de que não serei talvez um escritor carecido — como à força se obstinam em convencer-me.
Em todo o caso, houve trechos que não gostei de ler. São os trechos em que do combate com a sensiblerie, meu pecado original, ela me escraviza ainda. Não quero que me abandone porque faz parte do que sou: quero só que me não domine e saiba ocupar o seu lugar. Tremenda luta a minha contra a pieguice, um certo infantilismo que me impregnou. Mas o pólo oposto disso, a «secura», a «dureza» são também péssimos porque são retórica da anti-retórica.
*
Há dias vieram à TV três cineastas falar do cinema de hoje. E eu percebi, embora o não dissessem, que o seu desânimo não tinha que ver com as condições portuguesas de fazer filmes, e era submersamente um desencanto contra o facto em si de ainda se fazer cinema. O problema em causa, mas que não se revelou em causa, vinha da pergunta larvar sobre o que significa hoje fazer ainda um filme. Ou seja, o que significa ainda fazer arte cinematográfica. E atrás dessa questão estava uma outra, muito simples, sobre o que significa hoje ainda fazer arte. 
V. Ferreira

Os Cordoeiros: Sábado, Fevereiro 28 [2004]

Jornalismo de opinião (desinformativa)

António Arnaldo Mesquita, jornalista do Público especializado em questões judiciárias, nas edições de sexta-feira e sábado últimos, refere a existência de uma circular emitida pelo Procurador-Geral da República, a que aquele periódico diz ter tido acesso, na qual se «preconiza a suspensão dos inquéritos por denúncia caluniosa e/ou difamação abertos pelas queixas de arguidos do processo da Casa Pia - casos de Pedroso e Cruz» (ver aquiaqui e aqui). Com base na existência dessa directiva, que considera em colisão com o Código de Processo Penal, o jornalista, extravasando a objectividade informativa, tece diversos cenários que poderão nortear a actuação dos “caluniados” e “difamados”, transmutando a informação em opinião.
Desconhecemos a existência daquela circular ou directiva, que não se encontra ainda no site oficial da PGR. Não estamos, por isso, em condições de avaliar a crítica ou a polémica que é suscitada. Mas do que nos apercebemos, com toda a certeza, é da confusão de conceitos que perpassa nos escritos de A. A. Mesquita, desde instituir o juiz de instrução como tribunal de recurso das decisões do Ministério Público até fazer equivaler a aventada suspensão ou atraso da investigação com o instituto da suspensão provisória do processo - possível, em certas circunstâncias, depois de finda a investigação, mas sempre condicionada à concordância do juiz de instrução, do arguido e do assistente. Confusão essa que, a ser da autoria do jornalista, mesmo inconscientemente, representa um péssimo serviço para a formação esclarecida da opinião pública.
Torna-se evidente, para qualquer leigo, que A. A. Mesquita, enquanto opinador, se põe ao serviço, não da objectividade da informação, própria de um jornalista que se preze, mas dos interesses particulares de nomes visados no processo da Casa Pia. Por isso, é compreensível que algumas pessoas, habituadas a vê-lo em congressos e conferências de magistrados do Ministério Público, mano a mano com estes, se sintam defraudados com este jogo em vários tabuleiros… (leia aqui)
A. M.
# posto por Rato da Costa @ 28.2.04

Também a Oriente

Após 8 anos (1995) do ataque ao metro de Tóquio com gás sarin, em resultado do qual morreram 12 pessoas, foi condenado, à pena de morte, Shoko Asahara, líder da seita religiosa envolvida naquela acção criminosa.
# posto por til @ 28.2.04




Efeméride

Em 28 de Fevereiro de 1901, nasceu Linus C. Pauling, químico brilhante e activista político. Recebeu, por duas vezes, o Prémio Nobel: o da Químicaem 1954, o da Paz em 1962.

Bom Gosto

A escrita é também uma música. As mesmas verdades ou as mesmas mentiras, as mesmas alegrias ou as mesmas tristezas, podem ser escritas de maneiras infinitamente diversas. É esse o mistério das palavras. Não basta juntá-las: é preciso encontrar-lhes a alma.
Não se exige a um magistrado que seja um artista da palavra. Mas, no mínimo, para além da gramática, ou apesar dela, talvez seja de lhe pedir a contenção que fundamenta a justiça. Escrever tanto tornou-se uma estética. Ser redundante é um atributo. Não sendo uma exigência dos Códigos, parece um padrão para aferir da qualidade.
Quem faz das palavras o seu instrumento de trabalho, deveria estudar e aperfeiçoar a sua utilização. É o que fazem os que utilizam os números ou os que se confrontam com as notas musicais. Aprende-se a escrever. Aprende-se a fazer uma redacção (palavra belíssima, caída em desuso). Saber disciplinar as ideias é saber disciplinar as palavras.
Temos uma justiça com um discurso pouco cuidado. Por formação e por gosto. As palavras acotovelam-se na insuficiência das ideias. Ou vice-versa. A glória está no número de páginas preenchidas com palavras, ainda que seja glória que ninguém lê.
Li, algures, que ler é escrever. A lição que tenho aprendido é a de que o exercício sistemático e diversificado da leitura é uma forma eficaz de aprendizagem da escrita. Creio que a formação não tem investido nesta vertente, como se o que aprendemos a escrever até à licenciatura fosse suficiente para a escrita de uma vida.
A sobriedade no uso das palavras reflecte a ponderação no exercício dos procedimentos e das decisões. Tal como na vida, também na justiça há uma questão de bom gosto.

A.R .

BLOGS JURÍDICOS:
Causidicus, para além dos excelentes poemas de domingo, algumas incursões arqueológicas e outras surtidas de bom gosto, aventura-se na exploração da galáxia Blawgs (ou dos Law Blogs)...
Agradece-se e retribui-se a generosa referência aos Cordoeiros.
# posto por til @ 28.2.04

domingo, 27 de fevereiro de 2011

«O Burguês Fidalgo» (1ª e 2ª árias dos Espanhóis)



Collegium Musicum Bednarska - Anton Birula, Varsóvia, 2010

UMA SUGESTÃOZINHA INOCENTE

Nos últimos dias, as emissoras radiofónicas, os jornais e as televisões deste país têm preenchido os noticiários com longas e por vezes maçadoras reportagens sobre o que se está a passar por essas auto-estradas de Portugal.
Pelos vistos os utentes não querem pagar portagem. Bloqueiam as pistas, buzinam, demoram os pagamentos, gritam, pintam o diabo.
Acho bem. Que não paguem. Ou, se pagam, que bufem.
Mas atrevo-me a fazer uma sugestãozinha inocente. Se os do litoral não querem as auto-estradas com portagens, que as mandem para o interior. A Barroso caíam-lhe como sopa no mel umas três ou quatro. Uma que nos ligasse às grandes capitais da Europa, outra a Braga, uma terceira a Vila Real, uma quarta entre Vilar de Perdizes e Fafião.
Se as não poderem mandar todas, mandem pelo menos uma que nos ligue a Braga. Verão como nós pagamos a portagem de cara alegre.

Apelo aos meus Conterrâneos

É sempre com emoção que percorro os caminhos de Barroso. A profundidade dos horizontes, o silêncio dos vales, o misticismo dos píncaros, a limpidez das torrentes, a garrulice das águas, a música dos pássaros, o perfume das plantas, a leveza da aragem, o límpido cristal das albufeiras e, melhor do que tudo isso, o carácter aberto, simples, generoso, acolhedor, do povo barrosão.
Lá voltei, uma vez mais, neste mês de Agosto próximo passado. Estive no cimo do Larouco, nos Cornos das Aloiras, na Roca da Ponteira, no Mosteiro de Santa Maria das Júnias, na Cascata de Pitões.
Assisti à feira do prémio do gado de raça barrosã, a várias chegas de bois, às romarias, ao Congresso de Vilar de Perdizes.
Saboreei o nosso presunto, o nosso fumeiro, o nosso cabrito, a nossa vitela, o nosso pão centeio cozido em forno a lenha, a nossa batata, os nossos legumes, sem dúvida das melhores iguarias de Portugal.
Mas regressei preocupadíssimo com sinais de rápida degenerescência. Um exemplo: o lixo está a macular tudo — as bermas dos caminhos, as valetas das estradas, as margens dos ribeiros, o vão das pontes, os cantos e esquinas dos povoados. Até os cemitérios de automóveis, essa porcaria ferrugenta, essa coisa imunda, essa mácula sem qualificação possível, está a inundar os vales, as encostas, os outeiros, tudo quanto era recanto de beleza e deixou de o ser.
Deixo aqui um apelo aos meus conterrâneos: detende-vos um pouco, metei a mão na consciência, caí em vós e arrepiai caminho, antes que o nosso querido Barroso se transforme numa lixeira repugnante à vista e ao olfacto.

Congresso de Medicina Popular de Vilar de Perdizes

Fui lá e gostei. Bruxedo ou não, fez-me bem a romaria. E não foi só do presunto, aliás excelente. Foi também do convívio, do ambiente de festa, do encontro de velhos amigos, do relacionamento com novas caras.
Esta lembrança do presunto merece um aparte. Se os de Vilar de Perdizes souberem prender os congressistas pelo beicinho, neste caso, pelo dente, com os bons e genuínos petiscos indígenas, eles, os congressistas, voltarão fora do congresso. Aqui fica a recomendação.
Retomemos a narrativa. Fui lá no sábado. Cheguei à hora em que dois autocarros, suponho que postos às ordens do congresso pela Câmara de Montalegre, saiam com as bruxas, perdão, com os congressistas para uma volta turística pela região. Pareceu-me que os dois autocarros não passavam duma gota de água num deserto. Se fosse necessário levar todos os romeiros a passear, nem um comboio de cem carruagens.
Que ninguém estranhe eu falar em romeiros. É que aquilo é mesmo uma rumaria à velha moda portuguesa. Bem. Para romaria ainda lhe faltam a procissão e os foguetes. Que o senhor diabo se não lembre de os incluir no programa…
Como espectáculo, porém, não fica a dever nada à famosa festa da Senhora da Saúde, da mesma povoação. Com esta vantagem: o congresso dura três dias e três noites e a festa apenas um dia e uma noite. A perder, portanto.
Por outro lado, vi lá, em vez de tendeiras com doces e balcões de comes e bebes, escaparates de livros e ervas medicinais e tendas de videntes, cartomantes, curandeiros e endireitas. E sobretudo, uma curiosidade enorme de toda aquela enorme multidão. Um exemplo. No átrio das escolas primárias, ao sol, ao pó, ao vento, um sujeito sem nada que o recomendasse, antigo padre ou professor a quem um parafuso deve ter saltado do lugar, mandou vir durante horas seguidas, discutindo desconexamente a respeito de tudo e de todos e teve artes de manter, durante toda a santa tarde, uma larga roda de ouvintes interessados. E o pascácio não dizia coisa com coisa nem admitia réplica. O que não seria, se o banha de cobra tivesse, como não tinha, a presença e o verbo de S. Paulo a pregar aos gentios.
Não pude ver mais nada porque os amigos me arrastaram para a merenda. Arrastaram é força de expressão. Quando me falaram em presunto, não foi preciso chamar por mim duas vezes.
Regressámos para a sessão da noite. E então é que foi o deslumbramento total. Por falta de espaço nos recintos fechados para tanto poder de mundo ali presente, haviam montado o palco ao ar livre. Julguei-me transportado por artemages à velha Atenas e estar perante o Areópago a ouvir Sócrates ou S. Dionísio o Areopagita.
Vamos lá. Os oradores não valiam grande coisa. O sortilégio ia toda para a assembleia, em anfiteatro, ao luar. Ou então era do excelente vinho da merenda. Tudo pode ser.
B. Cruz

“Tablóides” – 22 de Novembro de 1973 (Cortado pela Censura)

• Quando lhe anunciaram a candidatura presidencial de certo indivíduo de reputação duvidosa, ele propôs este slogan: «Antes pior que assim!»
• Avisto das minhas janelas, a distância, os arranha-céus de Wall Street, hoje dominados pelas gigantescas torres gémeas do Trade Center. Anoiteceu. Vénus sumiu-se. Os faróis dos aviões cortam a paz do céu em todos os sentidos, como estrelas cadentes. O crescente da Lua, de longe seguido por Júpiter, baixa serenamente no horizonte do mundo dos negócios. E lembra-me, em pensamento futurível – futuríssimo! –, a melodia de Debussy: Et Ia lune descend sur le temple qui fut…
• Este semiletrado provinciano, que fala de «ideias» mas nunca mexeu um dedo para as servir, e tem vivido repimpado a ver os outros – os «mártires» – marchar para o calvário, lamenta que eu já não escreva o que, ou como, escrevia há quarenta anos, e por isso deixei de ter interesse para ele. Quereria ele que eu ficasse a repisar slogans ultrapassados, a repetir afirmações de fé desnecessárias (porque nunca as desmenti), e, diante da impossibilidade de me realizar, eu não fizesse mais nada na vida, com a minha vida? Há destas «admirações» que nos limitam e constrangem! E certas «fidelidades» que resultam retrógradas, porque teimam em ver o futuro como ele se afigurava no passado, e não como ele se oferece nas circunstâncias do presente. Quando alguns amigos de Vladimir Illitch Ulianov o acusavam de renegar ou contradizer, em 1910, o que afirmara em 1905 ou 6, ele respondia que, fiel aos princípios, formulava no entanto interpretações e directrizes para situações que já não eram as mesmas daquele outro tempo.
• Estilo novo: a arte de dizer o mínimo possível de ideias (e de factos) no máximo possível de palavras, e, naturalmente, de citações de autores.
• É-nos fácil citar, dos mortos, aquilo que mais convém aos nossos fins. Mais difícil e mais proveitoso seria pintá-los tais como eles foram na vida real, pública ou particular, com os seus erros e defeitos, e as suas possíveis qualidades. Porque as obras, as ideias, são com frequência resultado do esforço de compensação, ocultação ou contradição das nossas pessoais maneiras de ser, sentimentos e objectivos. Como em Frei Tomás…
• Os homens pareceram de repente possuídos de patrioturismo…
• Como os negócios corriam mal, em vez de Discoteca, passou a chamar-se Disco-Bar: do nome do proprietário, D’Escobar. Outra, que era Bar-Café, deu em ser conhecida por Barca-Fé. Com a respectiva insígnia a néon – uma nave (de loucos) com a cruz nas velas.
• «Venha para cá sofrer connosco!», diziam-lhe. E ele: «Não, querido amigo. Sofro aqui muito mais… e melhor!»
J. R. Miguéis

1932 - Nascimento da actriz Elizabeth Taylor


A 27 de Fevereiro de 1932, nasce, em Hampstead (Londres), a actriz Dame Elizabeth Rosemond Taylor. Filha de pais norte-americanos, notabilizou-se na 7ª. arte, interpretando papéis inesquecíveis em filmes como Gata em Telhado de Zinco Quente (1958), Cleópatra (1963) e Quem tem medo de Virgínia Woolf? (1966).

José Saramago

Os Cordoeiros: Sexta-feira, Fevereiro 27 [2004]

BOM SENSO

Quando ignoramos o sentido do verbo, ou dele temos uma ideia difusa, tal como nos ensinaram na escola primária, consultamos o dicionário: da Porto Editora, ou, os mais eruditos e rigorosos, o Compacto da Língua Portuguesa e, ultimamente, da Academia de Ciências de Lisboa. Mas isto agora já não é bem assim, pois que, aí também, a evolução tecnológica acarretou outra lógica, a da ida à Internet. As coisas tornaram-se, segundo parece, mais complicadas.
E como são complexas, o legislador, com suas tendências abrangentes e totalitárias (quer estar em tudo quanto é sítio), já entra nos domínios que eram, e são, dos dicionários. Nada lhe escapa, na ânsia de nos fichar até no uso da língua materna. Define, do alto do seu poder democrático, em normas tipo editais, conceitos que são da filosofia, da sociologia e da história: é um legislador omnisciente e omnipresente que usurpa às ciências o que delas sempre foi e, com certeza, sempre será. É um legislador que tem o direito como um fim e não como um instrumento regulador das relações sociais. E que tem o direito de nos leccionar a língua que outros, em tempos, mais apetrechados, nos leccionaram.
Vejam, por exemplo, e como paradigma, o DR. II do ano corrente, a fls. 2818. O legislador exige "...bom senso...". No Dicionário, onde o tal verbo devia descansar pacificamente, a palavra ("...no princípio era o verbo...") era sinónimo de capacidade de alguém pensar com lógica (chama-se a isto "raciocinar"), com acerto, sem influências de paixão ou emotividade. Deste modo, se é isto que o legislador quer na tal lei de fls. 2818, na lógica das coisas, ou seja, no bom senso, a afirmação da exigência do bom senso é, sem mais, uma redundância. Ou o legislador quer mudar o sentido do verbo e, não o redefinindo (o legislador supõe que pode dizer que o branco é preto?), tombou, inevitavelmente num mais desacertado mau senso. Temos, pois, aqui, um paradigma de como a falta de senso se transformou, por contradição, em bom senso. Com a chancela do legislador.
Mas, além do legislador, aquele ser ontológico que faz leis, há outros centros criadores de bom senso. Um causídico, assustador e apopléctico, chega à TV e, com a legitimidade que lhe vem do dinheiro, anuncia que vai provar, na Televisão (é verdade que eu vi e ouvi e perguntei e outros viram e ouviram) que o juiz não tinha razão e distorceu tudo para prejudicar o cliente que, sentencia, está inocente. Mas tem de ter autorização da corporação. E, dizem, pede-a. Requer... protesta. Quer ver a vítima julgada na TV e pelo Povo. Mesmo assim. Ele sabe que confunde. Que o juiz não vai à televisão, que vai falar sozinho e o que disser é verdade. O direito que ele disser é o direito que o juiz (mal) disse, pois o que ele diz na TV passa a ser o que o juiz disse, sem o dizer. A corporação não esconde o embaraço e demora em decidir: quer agradar ao confrade, mas tem um obstáculo: a falta de senso do requerente que quer provar na TV o que só pode ser provado noutro "site". Todavia, devo acrescentar, por bom senso, que o meu bom senso também é objecto de julgamento pelo bom senso alheio. Dirão, no caso, que imperou a falta dele. Paciência!
E assim vai o "BOM SENSO".

Pinto Nogueira
# posto por Rato da Costa @ 27.2.04

Mosteiro de Santa Clara

Mosteiro de Santa Clara
Acesso: Largo D. Afonso Sanches 
Protecção: Incluído na Zona Especial de Protecção da Igreja do Convento de Santa Clara
Coordenadas GPS: 41º 21' 09.99" N; 8º 44' 22.91" W


Embora fundado em 1318 por D. Afonso Sanches e D. Teresa Martins, o edifício que conhecemos trata-se de uma construção do século XVIII, já que, desde meados do século XVII, o edifício se encontrava à beira da ruína e sem condições para as freiras que aí viviam. No entanto, dados os graves problemas que o país atravessou em oitocentos e com a extinção das ordens monásticas, as obras ficaram incompletas. Entre 1929/1932, a Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais levou a cabo obras de intervenção e conclusão das fachadas, neste que é um dos mais emblemáticos monumentos de Vila do Conde.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Eduardo Gageiro: Retratos com histórias

[1989] – 26 – Fevereiro (domingo).

Ouço uma balada de Coimbra e inevitavelmente reapareces. Moravas no terceiro andar de um prédio esguio, pegado ao «Jesuíta», à entrada da rua Larga. Podias reaparecer em qualquer parte da cidade, mas vejo te sempre na vinda para a Faculdade. E é quase sempre inverno. Vestes um casaco escuro, talvez preto, e sinto nas mãos como deve ser macio. Fina, alada, o rosto pequeno, endurecido de sisudez. E o andar subtil, no frémito breve da anca adivinhada, da brevidade dos pés. Vens da rua Larga, viras à Faculdade e vejo-te de costas desaparecer no largo portão. E há depois na minha memória um silêncio rarefeito de uma súbita aparição que se desfez.
*
Continuo com a minha cabeça confusa. Ontem em Évora temi vir-me abaixo. Cérebro espesso, tonturas, uma massa compacta nos ouvidos e sempre uns silvos agudos, se lhes presto atenção. Mas sobretudo me aflige a ideia de que vou perder os sentidos. Ou de que o coração vai parar. E ao mínimo aviso, entro em pânico. E agrava-se a situação. E fico à espera de que a coisa se desenlace. Vivo permanentemente num certo ponto crítico. Há uma nebulosa no cérebro que se não desvanece. Tenho dores nos ossos do crânio. E o mais decisivo para saber como estou é fumar um cigarro. Sinto que me rebentam no cérebro todos os fusíveis. Que fazer? Como trabalhar? Não bastava todo o desânimo na continuação do romance. Faltava-me ainda a incapacidade física. Definitivamente perdido? O romance (e eu)?
*
É bom não se terem mais obrigações culturais, não ter de se ler senão aquilo de que se gosta, construir a obrigação em devoção. E bom perguntarem-nos se já lemos tal ou tal livro e dizermos que não — e não passarmos enfim por incultos, mas por quem pode ignorar, se for isso ser ignorante.
*
A questão do racismo só se resolve definitivamente com a batalha demográfica. Seremos então invadidos pelos pretos (e talvez amarelos) e se houver racismo será dos pretos contra os brancos e estes apenas terão a vantagem de ser mais instruídos do que eles. Mas os gregos também o eram em relação aos romanos e a vitória deles cultural não chegou para não serem vencidos (Graecia capta cepit ferum victorem — Horácio).
*
Acreditei em mim, ou seja no que fiz, ou seja no que realizei durante cinquenta anos de aplicação. Errei, oscilei no meu gosto, mas o que acertei não foi escasso. De tudo isso, porém, bem poucos me deram razão. Agora a luta acabou e retiro-me do combate. Sento-me ao sol de inverno do fim. Não tenho mais nada a dizer nem a suportar o que outros digam. O meu problema agora é só comigo, com um pouco de dignidade no acabar. Fui vencido, razoavelmente enlameado, não tive grande público a ouvir-me, aqui ou lá fora. Há decerto um erro em mim que não vi. E é por isso que não consegui distinguir sobre o meu erro o acerto alheio. Mas tudo acabou. E é bem isso que eu procuro de sossego no coração e no que o faz com frequência desconcertar. Cerro a porta. E que ninguém bata, porque não abro.
V. Ferreira

Coimbra, 26 de Fevereiro de 1979

É sempre a lição nativa que me vale. Quando o poço parece seco, exausto, já sei: o remédio é afundá-lo mais, escavar e remover sem descanso o saibro da minha humanidade até encontrar de novo o veio da nascente.
M. Torga

“Tablóides” – Novembro de 1973

• «Por que escreve nos jornais?», pergunta-me o leitor azedo. «Porque é proibido escrever nas paredes, um “jornal de parede” que todos pudessem ler à vontade! Nunca escrevi para os “intelectuais”, nem mesmo quando circulava entre eles. Primariamente, escrevi sempre para mim mesmo, e para Toda-a-Gente, essa hidra de mil cabeças.»
• «Não consegui aderir», dizia-lhe um leitor, a respeito de um dos seus livros. Resposta dele: «Talvez eu devesse ter usado papel mata-moscas na impressão?»
• Esta frase: «A língua é a minha Pátria», atribuída a um Poeta, saiu inteirinha das «Epístolas» do Novo Testamento…
• Herói antigo: «Ingrata Pátria, não comerás meus ossos!» Sim, mas ela foi-lhe chupando os tutanos (ou a alma).
• «Sim, sim», dizia um escritor de avançada idade a uma jovem leitora que o assediava com as suas atenções: «Talvez eu seja como Você diz, um escritor extraordinário. Mas o que eu já não sou, de certeza, é sequer um homem ordinário!»
• Diálogo:
- O senhor recebeu o toque do génio.
- Lisonjeia-me imenso. Quanto lhe agradeço…
- Espere: O génio passou, tocou-lhe na testa… e foi-se embora.
• Um amigo de Paul Valéry disse a respeito deste: «Cavador de situações, de honras e veneras, de reputação e lucros!» De quantos poderíamos dizer hoje o mesmo, que nem sequer têm a escusa do talento.
• O moderno romance em vários países: (as pessoas presentes são sempre exceptuadas).
P
ílulas
ink
ara
essoas
álidas…
• Diz-se que é próprio do génio tornar claras as coisas complexas. Eu, lendo uma prosa confusa, difusa, obscura, obtusa, ininteligível, digo logo: «O autor é um génio!»
• Semeia escravos, colherás guerrilheiros.
• A um traficante que voltara milionário do Extremo Oriente chamaram «Rei da Pechinchina».
• Ouvindo a rádio: «Isto é Offenbach!» «Não: Offende-Bach!»
• Escritor de génio, pede-se:
- Um homem que, além do talento, tivesse a gravidade de Herculano e Antero, a ironia e finura do Eça, o sarcasmo de Camilo e Fialho, o bom gosto (só este) de Ramalho Ortigão, o burlesco de Raul Brandão, a veia polémica de Raul Proença…
- Mas seria um monstro!
- Exacto. É de monstros assim que estamos precisados.
• «Um homem sorri à morte? Ora adeus! Que há nisso de grande? O difícil é sorrir à vida!»
• Para a representação da farsa O Bocejo, o empresário contratou um mímico famoso, a quem confiou o papel de um personagem que sofria de bocejo nervoso, incontrolável, repetido. Esse era mesmo o fulcro do êxito da peça. Na opinião de um crítico que assistiu à estreia: «O sucesso de O Bocejo foi tal que antes de o pano (de boca!) ter descido sobre o primeiro acto, o público, cansado de bocejar por indução, dormia a sono solto. Escusado será dizer que não houve segundo nem terceiro acto.»
• O «inconsciente colectivo» que todos nós citamos (quase sempre de ouvido ou de o ter lido nos jornais) só existe na medida em que é individual… e consciente.
• O único problema sério da Vida é a Morte. Ele domina todos os outros.
• Muito nós falamos da sociedade de consumo! (Como se não fôssemos todos, pelo menos em potencial, vorazes consumidores.) Mas para a combater ou contrariar, adoptámos e encarecemos o seu maior promotor e seu braço-de-ferro: o advertising (ou publicidade). É a conciliação dos contrários… à moda deles.
J. R. Miguéis

Imagem do dia

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Caricatura satirizando William Pitt, o Novo, e Napoleão Bonaparte (1805).

Os Cordoeiros: Quinta-feira, Fevereiro 26 [2004]

Efeméride

Em 26 de Fevereiro de 1802, nasceu Victor Hugo. Uma voz determinada e determinante contra a pena de morte.
# posto por til @ 26.2.04

Prisões

Em França, em 1 de Fevereiro, havia 60905 presos, 38% dos quais em prisão preventiva, para uma capacidade de 48602 lugares. Taxa de ocupação:124,5%.
Para saber mais sobre presos e prisões em França, aqui, um exemplo do que é a intervenção cívica.
# posto por til @ 26.2.04

Soltas

Aragão Seia recandidata-se a presidente do Supremo.
Cardona promete fim dos baldes higiénicos até 2006.
Primeiras Acusações para Detidos em Guantanamo.
Tribunal de Montalegre Absolve Justo e Critica Actuação da Polícia Judiciária.
O Senhor Conselheiro refugia-se atrás de Deus.
# posto por Rato da Costa @ 26.2.04

Linguagem judiciária

Os brasileiros costumam citar a seguinte frase: "O orifício circular corrugado, localizado na parte ínfero-lombar da região glútea de um indivíduo em alto grau etílico, deixa de estar em consonância com os ditames referentes ao direito individual de propriedade". O que, trocado por miúdos, quer dizer, simplesmente: «Cu de bêbado não tem dono».
Isto vem a propósito do hermetismo que tem vindo a caracterizar a linguagem jurídica. Todos nos habituámos a ler peças e decisões forenses cujo estilo gongórico, esotérico, confuso e, muitas vezes, pedante nos leva, inconscientemente, a virar precipitadamente as páginas à procura das conclusões e do pedido ou dispositivo finais, para, aí chegados, muitas vezes, desiludidos, termos de voltar atrás na busca de um sentido inteligível qualquer. E, mais recentemente, com as facilidades permitidas pelo corta e cola dos programas de computar, vemo-nos atolados em longas e fastidiosas citações doutrinárias e jurisprudenciais, quase sempre as mesmas, despejadas no papel a propósito de tudo e de nada, numa exibição gratuita de erudicismo sebenteiro. E então, quando se lembram das expressões latinas consagradas na linguagem jurídica, é de pôr as mãos à cabeça, pelo seu uso inapropriado ou incorrecto.
Outra pecha são as reverências ou louvaminhas em petições forenses. São osaliás doutos despachos, sentenças ou acórdãos, os meritíssimos juízes, osdigníssimos procuradores, os distintíssimos advogados (tudo sem misturas), osvenerandos ou colendos desembargadores e conselheiros, que se utilizam invariavelmente, muitas vezes com o mais descarado cinismo ou hipocrisia, mesmo quando os empregadores desses encómios pensam, para si, exactamente em termos opostos. Então os venerandoscolendos e outros gestos que implicam o dobrar da espinha dorsal, são mesmo resquícios de vassalagem, que devem vir dos tempos da Idade Média.
Nos tempos modernos que vivemos, em que a Justiça vai sendo cada vez mais transparente e pública (infelizmente, para alguns) e, segundo a Constituição, deve ser administrada em nome dessa entidade mítica que se chama Povo, impõe-se que a linguagem a utilizar pelos juristas seja simples, clara e concisa, sem deixar de ser precisa e rigorosa, que os diversos actores judiciários se afirmem pelo seu saber e competência, sem necessidade de recorrerem a salamaleques e expressões de subserviência, e que os magistrados não se refugiem em templos divinos, recusando-se a serem reverenciados e louvados. Em suma, é tempo de se ir mudando a linguagem e as formas de tratamento, expurgando-as de entulhos autoritários, de bolores e de odores de baú e de excrescências culturais. É tempo de cultivar, cada vez mais, a simplicidade, a humildade e, já agora, a honestidade.
L. C.
# posto por Rato da Costa @ 26.2.04

Vincent van GoghTerrace of the Cafè "La Guinguette" (October1886)
Musée d'Orsay, Paris

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Dizem?

Dizem? 
Esquecem.
Não dizem?
Disseram.

Fazem?
Fatal.
Não fazem?
Igual.

Por quê
Esperar?
Tudo é
Sonhar.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

O Mostrengo - Fernando Pessoa, na voz de Paulo Autran

Cesário Verde: 25 de Fevereiro

cesário verdeEm 1855 nascia em Lisboa o poeta Cesário Verde. Vítima de tuberculose aos 31 anos de idade, publicou poemas em jornais. A sua obra foi reunida pelo amigo Silva Pinto e publicada postumamente em 1887, com o título O Livro de Cesário Verde.
Os seus poemas exibem uma poesia-pintura que aproximou as duas artes:
AO GÁS

[1989] – 25 - Fevereiro (sábado).

Fomos a Évora, eu e o Gilo, ao enterro da Josete (a Regina não pôde ir). Céu escuro, chuva. Josete estava na câmara mortuária do hospital. Não lhe vi o rosto, tapado por um cendal, mas reconheci-lhe as mãos de dedos encravelhados do reumatismo. Alberto Silva e os filhos, a Zeca e o Jorge, mais outros familiares e amigos. E imensa gente que me procurou e falou e confusamente se alegrou de me ver. Era gente do meu tempo e eu decerto lhe proporcionava a recuperação desse tempo que era como se não fosse definitivamente perdido. E depois do enterro, fomos almoçar ao Fialho. E inevitavelmente encontramos mais gente conhecida. E depois do almoço divagámos pela cidade. Gilo quis ir ver a Travessa do Sabugueiro, 3-A, que era ali perto e onde vivemos os primeiros anos de Évora. Depois pôs gosto em percorrer a cidade toda para se apropriar também do tempo que passou. E eu reparei que a cidade, sendo a mesma onde a procurámos, se retirava um pouco da minha lembrança para um certo modo de ser em pequenez de brinquedo e estranheza em que me não reconhecia de todo, mas reconhecia a pessoa que eu tora de quando lá vivi. Porque não era o caso de me parecer mais pequena do que julgara, como acontece com o que é da nossa infância. Era uma pequenez em conformidade com a pessoa que lá vivera e fora a minha.
E por fim regressámos, ainda com chuva, e mais depressa do que fôramos, embora tivéssemos levado mais tempo… 

“Tablóides” – 28 de Setembro de 1973

• Coisa só possível numa terra de improvisadores impressionistas, inexperientes e, portanto, irresponsáveis, aptos a saber de tudo e a ajuizar de tudo, espantava-se um (pseudo) crítico de que eu, sendo «um escritor voltado para o passado» (!), tivesse escrito um romance – Uma Aventura Inquietante – «que é um ensaio sobre a liberdade». Mas fui eu próprio que o disse algures! Ele não fez senão copiar-me… É evidente que nunca me leu nem conhece nada do meu passado… todo voltado para o futuro! Para comentar uma simples frase ou ideia, torna-se por vezes imperativo conhecer a obra e até a vida de um escritor, todo o moisaco não só literário mas ético e cívico da sua existência: pois tudo é parte da sua vivência ou criação. Onde é que tais jovens aprenderam e a quem deram eles provas da sua seriedade e preparação profissional? É destes críticos e pensadores que está cheio o nosso inferno… mesmo sem fascismo! 

Os Cordoeiros: Quarta-feira, Fevereiro 25 [2004]

Outras cinzas


“A felicidade do pobre parece
a grande ilusão do Carnaval,
a gente trabalha
o ano inteiro
por um momento de sonho,
p’ra fazer a fantasia
de rei, ou de pirata, ou jardineira,
e tudo se acabar na quarta feira.

Tristeza não tem fim,
felicidade, sim...”

Vinícius/Jobim

Cinzas


Quarta-feira de Cinzas - Início da Quaresma

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Peneireiro-vulgar (Falco tinnunculus)

[1989] – 24 - Fevereiro (sexta).

O Expresso de sábado passado trazia uma referência azeda que me era dirigida. Foi o caso que alguns jornalistas foram a Melo não sei bem porquê. E o presidente da Junta aproveitou para me insultar uma vez mais por eu ter legado ao Município, e não à aldeia, o meu espólio literário. Naturalmente legar o meu espólio à aldeia era legá-lo à rataria. Além de que o sujeito da Junta, dado aos copos, não deve saber bem o que é isso de literatura. Foi assim pena que os jornalistas lhe não tivessem explicado que uma biblioteca não se confunde com uma adega e que vai certa diferença de um livro a um copo de três.
*
E neste instante telefona-nos a Dora a comunicar que «morreu a Josete». Assim. Era a mulher do Alberto Silva e formavam ambos em Évora o centro de convergência do nosso grupo de amigos. A primeira a partir foi a Alice, mãe da Dora, e depois o André Infante, o pai. Quem se segue? Nada mais a dizer.
Mas insensivelmente deslizei para a memória de então. Não bem disto ou daquilo, mas apenas da memória feita tempo. Porque é isso o fundamental do incerto vaguear da melancolia. O mais são pontos incertos que se iluminam aqui e além como indicativos casuais desse estar absortos em nós. Há trinta anos que saímos de Évora e a memória desse tempo ainda se não dissipou. Ficou-me ligada a emoção à cidade, ao descampado em redor, aos amigos. E é-me grato pensar que Aparição, o meu livro mais lido, lhe está intimamente ligado. Gente vária tem ido à cidade por causa dele e a notícia de Évora levei-a à URSS, à Polónia, a Espanha, ao Brasil e este ano chegará mesmo a França. Mas Évora, nas suas gentes oficiais, nunca me estimou. Primeiro os fascistas, sobretudo através dos padres, depois os comunistas, que ainda lá estão, e jamais tiveram um gesto de simpatia. Creio que mo deviam, ao menos por lhe aumentar o turismo. Aqui há anos o Francisco José Viegas, então professor na que é agora universidade e foi liceu no meu tempo, movimentou-me uma pequena homenagem, mesmo com uma lápide, que não houve, na casa da rua da Mesquita, 28 em que vivi de ’49 a ’59 e onde escrevi Aparição. Mas Francisco José Viegas não era de lá. Há mães-madrastas, é o caso. Mas eu fiquei a amar a cidade como se fosse mãe por inteiro. Que os deuses lhe perdoem. E é só. 

1927 - Nascimento do escritor português David Mourão-Ferreira (Faleceu a 16 de Junho de 1996)

A 24 de Fevereiro de 1927, nasce, em Lisboa, o escritor, poeta e professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, David Mourão-Ferreira.

“Tablóides” – 20 de Fevereiro de 1973

• Quando, pela manhã, nos sentamos a escrever, raro nos é possível reproduzir com inteira fidelidade o pensamento ou a imagem que nos ocorreu ou formulámos na febre da insónia ou em sonhos, por vezes com deslumbrante nitidez. Só com grande esforço nos é dado arrancá-los ao caos e negrume das cavernas submarinas da infiel memória, onde tudo se sumiu. Se de todo os não esquecemos, o que é mais frequente! Há, porém, casos em que a fulguração duma ideia nos força a saltar da cama e a registá-la no estado nascente. E então ela sai-nos cristalina. 

Os Cordoeiros: Terça-feira, Fevereiro 24 [2004]

Carnaval no Brasil

Nana Gouvêa dá show

Faca(da)s

O Professor Marcelo está para o comentário político como o Professor Herrero está para o faquirismo: ambos são exímios nas facas e nas facadas.
No Domingo passado, a facada aplicada no tal Director-Geral que parece que despachava sem delegação do ministro ou do secretário de Estado foi de Mestre. Mas não foi apoteótica. O Professor, o Marcelo, não resistiu àquele sorriso de desdém que ofende os pobres e apoquenta os humilhados. Eu, por exemplo, fiquei com pena do esfaqueado.
O uso indiscriminado das facas é perigoso. E é feio, também. Degolar alguém que está por terra, sem capacidade de defesa, não é um exercício de perspicácia mas uma afirmação de perversidade. O Povo não gosta e creio que o Professor Cavaco não agradecerá.
A propósito do caso Vale e Azevedo, voltou a esfaquear a Acusação, assim mesmo, com letra maíuscula e perfídia. Explicou sem saber o que estava a explicar, sustentado que se o processo tinha estado sem movimento durante 30 dias, por causa da prova, a Acusação, e aqui traduzo, o Ministério Público, era responsável. O Professor, o Marcelo, deve ter falado de ouvido e com a faca no propósito. A questão era simples: entre a produção da prova e a prolação do acórdão não poderia ter sido excedido o período de 30 dias. Se esse período foi ultrapassado, é questão que, manifestamente, não é imputável à Acusação.
Onde não há contraditório, há facadas. O Professor, o Marcelo, viciou-se a comentar entre reverências e comodidades. Pratica as generalidades com a eficácia de quem sabe explorar os sentimentos. Talvez seja uma qualidade, mas daquelas que não são para levar muito a sério.
É por estas e por outras que eu prefiro o Professor, o Herrero: sabe usar as facas sem dar facadas.

R.A.
# posto por til @ 24.2.04

Aforismos

Fêmea jurista, discurso de papa e viúva rica tudo é lenha verde - muito fumo e pouco aquece.

Agustina Bessa-Luís

Bacanal

Quero beber! cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco...
Evoé Baco!

Lá se me parte a alma levada
No torvelim da mascarada,
A gargalhar em doido assomo...
Evoé Momo!

Lancem-na toda, multicolores,
As serepentinas dos amores,
Cobras de lívidos venenos...
Evoé Vénus!

Se perguntarem: Que mais queres,
Além de versos e mulheres?...
- Vinhos!... o vinho que é o meu fraco!...
Evoé Baco!

O alfange rútilo da lua,
Por degolar a nuca nua
Que me alucina e que eu não domo!...
Evoé Momo!

A Lira etérea, a grande Lira!...
Por que eu extático desfira
Em seu louvor versos obscenos,
Evoé Vénus!

(1918)
Manuela Bandeira, do livro Carnaval

Entrudo

Sala vulgar dum cabaré.
Antemanhã. Findou o entrudo.
Calou-se a voz do oboé.
Um par ainda: eu ao pé
da colombina de veludo.

Envergo um fato de palhaço
com lantejoilas corroídas;
largo de mais, o corpo lasso
joga mal nele; em cada braço
tombam as mangas desmedidas.

Dela afinal nada conheço.
(Meu coração, no entanto, a escuta...)
A sua mascarilha é um muro espesso.
Nada lhe dou, nada lhe peço...
Será donzela?... Prostituta?

Uma luz ácida, azulada,
espreita já pela janela.
Saio. Que baça a madrugada!
Que alheia a rua abandonada!
Que vazio na alma que enregela!

Saúl DiasGérmen (1960)
# posto por til @ 24.2.04