Boticas faz parte do imaginário da minha infância. Teria eu uns sete ou oito anos e regressava de Montalegre onde tinha ido aviar não me lembro agora que recado, quando, à portela do «Baldoso, onde o Zé da Cova, quando vivo, levantou uma pedra com uma caixinha, destinada a receber as esmolas para as almas do Purgatório e em proveito exclusivo dele»1, enxerguei, à minha frente e no mesmo sentido, um viajeiro solitário. Estuguei o passo e meti conversa. Era um pistolante dos seus dezoito anos, género madraço e pateta alegre, natural de Donões, segundo me disse. Que ia para as Boticas.
– Fazer o quê?
– À Senhora da Livração.
Como fosse sexta-feira, estranhei:
– Mas a festa é só amanhã à noite.
– Amanhã à noite é o arraial. Mas ao romper o dia há o despertar com estrondos de morteiros, arruada de músicas, foguetes de três respostas. De tarde, o cortejo: carros alegóricos, gigantones, zés-pereiras, figurantes, pantominas. Não quero perder nada.
– E onde vais dormir hoje?
– Lá numa casa onde fornecem cama e mesa gratuita aos romeiros de longe. Ali não falta nada. Estou lá caído todos os anos.
E o devoto da Senhora da Livração dava à perna, todo concho, a caminho das Boticas.
Tive pena de não poder ir com ele. Mas fiquei a pensar naquilo. E o santuário das Boticas a crescer na minha imaginação até ficar do tamanho da catedral de S. Tiago de Compostela, aonde, no dizer dos velhos, quem lá não for em vida, vai lá depois de morto.
Tanto pedinchei que, no ano seguinte, me deixaram ir à Senhora da Livração. Não vi nada do que o gargajola de Donões me havia impingido. Não obstante, fiquei preso aos encantos de Boticas para o resto da vida. E ao mais pequeno pretexto, estou lá caído – para usar a expressão do patola de Donões. Foi o que aconteceu no último fim-de-semana. Bastou ver um letreiro Feira Gastronómica de Porco em Boticas para meter pés, neste caso, rodas, a caminho. Dei a volta por Sapiãos. Ao sair da Granja, deparei com uma frota de carros estacionados e de pessoas a subir uma rampa. Fui na onda. Era um campo de futebol.
– Lá vêm eles!
Eles, os bois. Ia haver uma chega. Protegi-me com um poste para deixar caminho livre a um dos lutadores.
– Donde é o boi? – inquiri.
– Da Carreira da Lebre.
Bonito exemplar. Bom corpo, boa galha, bem tratado. Um senão: os cascos a lembrar umas barcas de fundo chato e proa arrebitada que antigamente se usavam no rio Tâmega – no tempo em que o Tâmega levava água... «Oh, coitado! – disse para comigo – A este deitava-lhe o meu Louro…» (Um boi capado que havia em minha casa e que turrava melhor do que muitos quilhudos.) Mas já, pelo outro topo do campo, entrava o adversário. Também barroso, menos peso, menos idade, meio selote.
Correram um ao outro, mas não pegaram logo. Muita carranca, muita cerimónia, muita fita para a fita – muita cheiradela. Julguei que nem se pegavam. De chofre, um estoiro tremendo, cujo eco se ouviu ao longe e arrancou à multidão um urro colectivo de assombro. Era a primeira marrada, coisa de respeito.
Ao arrepio da minha expectativa, o patudo parecia levar a melhor. Mas o selote ia aguentando. À roda. Num círculo de poucos metros de diâmetro. E demonstrava ter melhor jogo de galha. Até que o meu prognóstico se confirmou: o da Carreira da Lebre aborreceu-se daquilo e bateu em retirada.
– Levai-o ao pedicuro – gritei.
– Ao matadouro – ripostou alguém com uma beiça de palmo e meio.
Seja como for, a chega não esteve má.
E refugiei-me no pavilhão porque a aragem, apesar do sol, arrepiava. Muita gente conhecida, muito barulho. O Rancho Folclórico das Alturas em exibição, a aparelhagem sonora muito alta e desafinada.
Fui dar uma volta pelos escaparates. Muito espaço, tudo muito bem ordenado, agradável à vista. Alguns preços pareceram-me exagerados. Mas o que é bom, nunca foi caro, dizem os ricos. Como sou pobre, não trouxe nada. Nem sequer me sentei nas amplas e airosas tasquinhas. Mas pelos risos das bochechas e a destreza de queixos dos numerosos fregueses que nelas petiscavam, os sólidos e os líquidos deviam ter um toque especial de bom gosto e excelente qualidade.
Retirei-me pela noitinha, na intenção de voltar no dia seguinte, domingo. Não pude, mas sintonizei a Rádio Boticas. Um voz feminina entrevistava, em directo, alguns visitantes. «Isto tem mais gente do que a Senhora da Livração!» – exclamou alguém. Não acredito. Em todo o caso não duvido de que a Feira tenha sido um sucesso. Os meus parabéns à Câmara pela iniciativa. Venham mais do género. «O que faz falta é atrair a malta».
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1 Vítor Branco, Reminiscências do Passado, pág. 58.
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1 Vítor Branco, Reminiscências do Passado, pág. 58.
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