segunda-feira, 14 de março de 2016

Renascer ou findar?

Renascer, sem nascer de novo ou rejuvenescer? Ou findar, finalizar, acabar, terminar? Os anos que já temos de vida estabelecem-nos o segundo...

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Tratado das paixões da alma

António Lobo AntunesAntónio Lobo Antunes - 21.01.2016 às 8h00

Pode crer, ficaria bem, talvez, por exemplo, o médico gostasse, talvez a senhora, dona Fernanda, se sentisse menos só em casa, iluminada pelas pétalas fosforescentes, se sentisse mais nova, se sentisse mais bonita, talvez que na pastelaria do quarteirão a seguir, onde bebe o seu chazinho à tarde no meio de solitários macambúzios, um sujeito bem apessoado, ou pelo menos razoavelmente apessoado, a mirasse rente ao cálice com um líquido branco num interesse discreto

Ilustração: Susa Monteiro

E agora, dona Fernanda? O seu marido morreu, o seu cão morreu, o seu filho vive na Suíça e não atende o telefone, a sua amiga Prazeres cortou relações consigo, convencida que a senhora andava a catrapiscar-lhe o marido, o médico não pára de avisá-la
- Atenção às gorduras
a desenhar círculos à volta dos resultados das análises, tirando os óculos no fim para suspirar melhor, a bater com a ponta da esferográfica num dos números
- Ai dona Fernanda, dona Fernanda
competente, amável, preocupado, por acaso viúvo também visto que duas alianças juntinhas num dedo e a roupa descuidada, às vezes com nódoas que nenhuma esposa consentiria, sem mencionar a falta de graxa nos sapatos, a senhora com vontade de responder-lhe
- Ai senhor doutor, senhor doutor
ao olhar-lhe as biqueiras, um homem não muito velho, nem sequer feio por acaso, que, a avaliar pelas pestanas, deve ter sido um bebé lindo antes de se transformar num adulto assim assim, um aperto de mão à entrada, um aperto de mão à saída acompanhado pelas palavras
- Ali ao balcão marque para outubro
já quando a senhora, dona Fernanda, a agarrar no puxador lembra-lhe as gorduras
- Cuidado com isso
a senhora a pensar que se fosse a médica e ele o doente lhe receitava uma bisnaga de graxa e um pano para avivar o brilho ao cabedal, uma das empregadas do balcão, a folhear outubro na agenda
-Tenho dia onze e dia vinte e sete, dona Fernanda
com anéis exuberantes, desses que se compram no metro a sujeitos acocorados num banquinho diante de um pano sujo, cheio de preciosidades de pataco, a senhora, dona Fernanda, a contemplar o que ela usava no indicador direito, um girassol de plástico enorme tapando-lhe o dedo todo
- Dia onze está certo
enquanto se imaginava com um anel idêntico
- Como é que me ficaria?
e ficaria bem, pode crer, ficaria bem, talvez, por exemplo, o médico gostasse, talvez a senhora, dona Fernanda, se sentisse menos só em casa, iluminada pelas pétalas fosforescentes, se sentisse mais nova, se sentisse mais bonita, talvez que na pastelaria do quarteirão a seguir, onde bebe o seu chazinho à tarde no meio de solitários macambúzios, um sujeito bem apessoado, ou pelo menos razoavelmente apessoado, a mirasse rente ao cálice com um líquido branco num interesse discreto, a perguntar ao empregado o seu nome, talvez que o sujeito a ganhar coragem para vir ter consigo
- Dá-me licença?
e a senhora lhe aceitasse a companhia recuando uma das três cadeiras que sobravam na sua mesa, dona Fernanda, talvez aceitasse também um novo encontro para o dia seguinte, talvez, mesmo, o deixasse pagar-lhe o chá dado que apesar de barato todos os cêntimos contam e a pensão do seu marido acanhada, uma sopinha e uma maçã ao jantar e pronto, um arrozito com um terço de uma lata de atum ao almoço e entre o almoço e o jantar o luxo do chazinho, a senhora para a empregada das consultas, depois dela lhe entregar o cartão de utente com o dia onze de outubro escrito debaixo do dia vinte e seis de março de hoje
- Desculpe o atrevimento mas importa-se de me dizer onde comprou o anel do girassol?
confirmando que a um marroquino do metro a quem tinham acabado os girassóis mas não os alfinetes doirados com uma pantera pronta a saltar, ideal para a gola do casaco na qual se espetava com um alfinete, experimentou ao espelho e sentiu-se melhor com aquilo, alegrava-lhe a roupa, alegrava-lhe as feições, o sujeito do cálice, respeitoso
- Não me leve a mal dizer isto mas de pantera parece uma actriz
e a senhora, dona Fernanda, não lhe levou a mal, a senhora, dona Fernanda, contente, a senhora, dona Fernanda, quase a sorrir, a senhora, dona Fernanda, a sorrir, a senhora, dona Fernanda
- Muito obrigada
a inchar na blusa, o sujeito, lisonjeiro
- Olhe que estou a ser completamente sincero
passando o indicador, ao de leve, no bicho, por si, dona Fernanda, até podia ter carregado um bocadinho, o sujeito funcionário público
- Sou funcionário público
num ministério ou assim, pareceu-lhe que um ministério, o sujeito contínuo num ministério, tão educado
- Vemo-nos amanhã?
a pagar-lhe de novo o chá, a senhora, dona Fernanda, coquete
- Quem sabe?
mas a dizer que sim com a cabeça, isto é a cabeça, independente de si, autónoma
- Sim
a sua boca, independente de si, autónoma
- Claro que sim
e a senhora, dona Fernanda, feliz que tudo nela lhe escapasse, a aquecer a sopinha no fogão apercebendo-se que cantarolava, apercebendo-se que as duas assoalhadas mais bonitas, apercebendo-se que o sofá aguentava apesar do marido da dona Prazeres, que cortou relações consigo por supor, injustamente, que a senhora, dona Fernanda, o catrapiscava, a garantir que era difícil abraçá-la numa coisa com uma das pernas meio solta, não cessando de avisar
- Vou cair.

sábado, 16 de janeiro de 2016

Derrota ideológica e vitória política

Opinião

Muitas vezes pergunto se a maioria daquilo que hoje passa por ser um radicalismo da esquerda (e que a direita saliva ao ouvir) não é pouco mais do que moderadamente social-democrata ou democrata-cristão.

Uma coisa a esquerda deve compreender com toda a clareza: a direita venceu a batalha ideológica nos últimos anos. Mais: essa vitória tem profundas repercussões nos anos futuros e molda a opinião pública. É uma vitória muito perigosa e pegajosa, porque se coloca no terreno daquilo que os sociólogos chamam “background assumptions”, molda o nosso pensamento sem trazer assinatura, parece a “realidade” quando é uma construção ideológica. No entanto, convém não confundir duas coisas distintas, a ideologia e política. E a direita perdeu a batalha política, o que ajuda a ocultar a sua vitória ideológica. O problema é que a solidez da vitória ideológica é maior do que a solidez da vitória política.
Para começar, obrigou-me a contragosto a ter que retomar uma linguagem esquerda-direita, que de há muito penso estar ultrapassada e ter mais equívocos do que vantagens. Sim, já sei, conheço a frase de Alain sobre que quem pensa que não é de esquerda nem de direita é de direita, mas hoje a frase oculta mais do que revela.
Considero este retorno a um quadro de dualidades, que só pode ser usado numa perspectiva histórica ou sentimental, um dos estragos mais recentes sobre possibilidade de se sair de uma política do passado. Pode servir para dar identidade, mas explica cada vez menos o que se passa. Um exemplo, é a crítica ao consumismo oriunda da esquerda que preparou o terreno e encaixou perfeitamente na crítica da direita ao “viver acima das suas posses”, em ambos os casos centrando-se na culpabilização dos consumos típicos da classe média. Mais do que de esquerda e direita, estas posições são socialmente reaccionárias.
Num país em que a construção de uma classe média é recente e traz consigo uma nova liberdade face à pobreza e à memória recente da pobreza, isso significa pôr em causa muitos aspectos do mecanismo de elevador social e abre caminho, por exemplo, à negação de que a educação possa ser um elemento fundamental dessa ascensão social. Alguns autores usam a crítica à ideologia republicana da “escola” para pôr em causa aquilo a que chamam o “mito” da educação.
A verdade é que em termos ideológicos, e também em termos políticos, passámos do cinema para a lanterna mágica. Andámos para trás, e isso acontece mais vezes do que aquilo que se deseja. Com a experiência de um Tea Party à portuguesa, ficamos “liberais” à americana. Por isso, lá tive, a contragosto e moendo-me todo, que voltar a falar a linguagem paupérrima da dualidade esquerda-direita.
Este retorno ao dualismo esquerda-direita foi uma vitória do PP de Monteiro-Portas e do Bloco de Esquerda. A sua vítima foi o centro político e o antigo PSD reformista. Ver o PSD de Passos e seus amigos a aceitar com toda a naturalidade serem classificados de direita, foi uma ruptura clara e explícita com o PSD de Sá Carneiro. Do outro lado, o PS evitou cuidadosamente auto nomear-se de esquerda, como se a palavra tivesse sarna, já para não dizer que os diminuía face aos seus novos amigos da banca e dos negócios nos últimos anos. A “terceira via” foi o caminho. Renderam-se todos aos “mercados” como Deus ex machina da política e isso desarmou-os ideologicamente.
Por isso, todo o espectro político está puxado à direita e, por reflexo, deixou apenas franjas na esquerda. As verdadeiras fracturas são hoje de outro tipo e não ganham nada em serem pensadas na dicotomia esquerda-direita. O caso mais flagrante é a questão da democracia e soberania, a perda de poderes do voto dos portugueses, cujo parlamento não tem capacidade orçamental, e a entrega à burocracia transnacional de Bruxelas dos principais instrumentos de governação de um país que era suposto ser independente, ou seja, é mais importante a posição face à “Europa”. E aqui a divisão esquerda-direita não é fácil de fazer.
Mais relevante para perceber o que se passou é ver como o programa social virou parte do centro e da direita para o radicalismo e puxou parte da esquerda para ocupar esse centro. Será que a esquerda não se interroga se muitas das medidas que hoje enuncia como sendo o supra-sumo da esquerda, como seja a reposição de salários e pensões, não são propriamente de esquerda, e só se tornaram de esquerda pela radicalização da direita? Muitas vezes pergunto se a maioria daquilo que hoje passa por ser um radicalismo da esquerda (e que a direita saliva ao ouvir) não é pouco mais do que moderadamente social-democrata ou democrata-cristão.
Ainda recentemente ouvi com atenção uma intervenção de Marisa Matias fazendo para mim uma classificação interior daquilo que era ideologicamente de esquerda e, com excepção da questão das privatizações versus nacionalizações, tudo era da mais pacífica doutrina social da igreja, podia ser dito pela Caritas, por um democrata cristão ou um social-democrata se ainda os houvesse. Até o Papa Francisco, nestes termos, estaria muito mais à esquerda.
O mal é da Marisa Matias? Não, é de nos termos deixado enredar numa confusão entre o interlocutor e o conteúdo da interlocução. Por isso, exames, pensões, reformas, feriados, tudo passou a ser não apenas de esquerda, mas do radicalismo de esquerda, apenas porque só partidos que se auto-classificam de esquerda o fazem. Aceitar que alguém diga isto sem um atestado de ignorância ou uma gargalhada mostra a nossa pauperização política e ideológica.
É por isso que um deputado do ex-PaF se dizia muito surpreendido por o Bloco de Esquerda defender o feriado do Corpo de Deus, sem perceber que o problema é ele ter colocado uma vulgata do “economês” acima de um dia em que se reza ao divino e em que a Igreja quer que as mundanais preocupações dêem lugar à fé. O que se passou é que a radicalização da direita deixou um terreno vazio ao centro que faz com que uma esquerda moderadíssima pareça o bolchevique com uma faca entre os dentes.
A aceitação de que a classificação política dos outros seja feita pela direita radical, coisa que a ala direita do PS interiorizou completamente, é um dos aspectos dessa vitória ideológica. A direita mais radical interiorizou em muitos portugueses um modo de pensar, uma maneira de defrontar os problemas, uma forma de questionar, uma interpretação da vida social, da economia, do estado, que é de facção, mas que muitos aceitam sem questionar.
O esplendor dessa vitória ideológica surge quando um qualquer jornalista puxa do coldre a pergunta “quanto custa?” e “quem paga?”, sempre que se fala de salários, pensões, reformas, diminuição dos horários de trabalhos, qualquer coisa que diga respeito ao mundo do trabalho e não faz o mesmo em todas as outras circunstâncias. Já viram um jornalista confrontar um gestor ou um empresário com a pergunta de “quem paga?” e “quanto custam’” os erros de gestão, a falta de competitividade das empresas devida à má qualidade dos seus empresários, a fuga ao fisco “legal”, etc?
Já viram um jornalista, com a mesma imediaticidade pavloviana do “quem paga?”, perguntar a um banqueiro se ele acha justo que os erros de gestão da banca tenham que ser pagos pelos contribuintes? Não, porque o jornalista já deu na sua cabeça a resposta ideológica, “é preciso salvar o sistema financeiro”.
Por que razão não há sanção moral pública com as muitas pessoas com riqueza acima de um milhão de euros que estão a fazer à pressa doações para escapar à eventualidade de o governo PS criar um imposto sucessório, ao mesmo tempo que não perdem oportunidade de penalizarem moralmente os mandriões dos trabalhadores dos transportes?
É isto a fractura entre a esquerda e direita? Não, é uma fractura que um homem ou mulher honesto, podem colocar noutras palavras como seja a decência. Se admitirmos que há “bom senso” no pensamento, então também podemos admitir que o “bom senso” da ética é a decência.
Recoloquemos aí muito daquilo que é hoje uma falsa fractura ideológica, não porque isso seja um limbo ideológico, mas porque essa recolocação ajuda a limpar o terreno. Depois podemos partir para as fracturas ideológicas do passado, que conhecemos como de esquerda e direita e analisá-las e teremos algumas surpresas pela inversão de alguns papéis. E depois podemos voltar ao limbo inicial para ver se ele subsiste para além de um sistema de valores e se o podemos arrumar de outro modo, limpando-o da superioridade moral que acarreta o uso de valores em política. Para combater a ideologia da direita radical precisamos de algum retorno à moralidade, como os espanhóis compreenderam com as suas “marchas pela dignidade”, e depois então vamos à política pura e dura para nos desentendermos, a boa coisa do debate em democracia e liberdade.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

NINGUÉM AS VESTE QUE AS NÃO BORRE...


Após um mês de sol apareceram os nevoeiros. A exemplo da Primeira República Francesa, também em Barroso se podia chamar Brumário ao segundo mês do ano.
Brumário por causa das brumas do «nosso descontentamento». Embirro sobremaneira com os dias em que a aldeia acorda envolta em nevoeiro. Era a coberto dele que, outrora, os lobos desciam dos montes e atacavam os cães nas eiras.
O medo que nós tínhamos aos lobos! Nós, os pequenos pastores. «Viste lobos?» — perguntávamos, na galhofa, àqueles que, por resfriado ou qualquer outra patologia das cordas vocais, apareciam afónicos. Isto porque, quem visse lobo, perdia a fala.
A mim, em boa hora o diga, nunca me aconteceu. Mas fartei-me de berrar a lobo.
Um dia por outro, no relativo silêncio dos montes, ecoava o alarme: «Lobo! Aí vai Lobo! — E logo de todos os pontos apareciam vozes: «Cerque, Ti António!» «Dá-lhe fogo, Joaquim!» — «Agarra cão!»
Por vezes não se via lobo nenhum. Outras, lá ia ele, disparado como uma seta, em diagonal, direito à serra.
Eu, em garoto, nunca arrostei com um lobo. E foi pena. Foi pena porque, assim, nunca tive ensejo de pôr em prática a teoria que o Avô me ensinara. Um dia fui dar com ele sentado no escano a calçar-se para ir à caça.
— O Paizinho não tem medo aos lobos? — perguntei.
E o Avô, que era muito divertido, respondeu:
— Tenho lá algum medo aos lobos? Sabes o que lhes faço?
— Não.
— Repara.
E o Avô, enfiando a mão no carpim, virou-o do avesso. Depois, arregaçando a manga do braço direito, exemplificou:
— Enfio-lhes a mão goelas abaixo, agarro-os gela tripa do cu e viro-os com o de dentro para fora.
No dia seguinte, estando eu à lareira a ensaiar a manobra numa peúga: «Eh, lobo!» vem de lá a mãe e espeta-me dois tabefes:
— Mas tu calças-te para ires com o gadinho, ou estás de pantomina?
Doutra feita, andando eu com as vacas em Fontefria, aparece o Barrolo com a rês. Pusemo-nos a jogar a choca e o rebanho foi andando até desaparecer para além dum cômoro de maninho. Nisto, passa a caminheta das cinco da tarde. Diz o Barrolo:
— Tenho de ir virar a rês, se não ainda vem algum carro e desgraça-me.
E mete a correr, pau no ar e goelas abertas:
— Chiba aí ei... ei... i.
Ainda mal tinha desaparecido, reaparece, a tropeçar nas próprias pernas, cabelos no ar, olhos esbugalhados, boca aberta.
— Que foi, Barrolo? Viste lobo?
Ele abria e fechava a mandíbula, como sapo das hortas em dias de calor ou náufrago de água doce que perde o pé, mas não dizia nada.
— Levou-te algum richelo?
Numa voz roufenha, de cartilagens secas, o Barrolo lá conseguiu articular:
— Uma ovelha!
— Rais-ta parta! Porque não chamaste por mim?
— Que é que tu lhe fazias?
Eu exemplifiquei a manobra do Avô:
— Virava-o com o de dentro para fora.
— Fia-te. Se o visses acontecia-te o mesmo que a mim.
Olhei para ele com mais atenção:
— Não me digas que borraste as calças?
— Ó Marinheiro? Não fales nisto a ninguém, que é uma vergonha...
— Oh, Barrolo? Não faças caso. Isso acontece a qualquer um. «Ninguém as veste que as não borre... É dos livros.»

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas de Barroso (p. 128 e s.)

sábado, 21 de junho de 2014

Coimbra, 20 de Junho de 1978.


ARQUIVO

Tão baço o teu retrato
No álbum da lembrança!
Que vaga semelhança
Entre a imagem que vejo
E a dor que sinto!
Minto
Se te disser
Que te desejo ainda,
Que o meu instinto
Te reconhece e quer.
E sei que um dia me perdi
Em ti
Como se perde o homem na mulher.


Miguel Torga, DIÁRIO XIII 

sábado, 14 de junho de 2014

OS MEUS MORTOS


Durante grande parte da nossa vida, a morte é uma coisa alheia e distante que só vaga e incertamente nos diz respeito. Até que, um dia, damos subitamente com ela à porta da nossa própria casa e descobrimos então que sempre ali esteve.
Quando somos jovens e morrem os avós, ou os pais, ou os amigos dos pais, não é ainda a morte. Mesmo se um amigo morre, morre por acidente, morre por acaso, morre antes do tempo de morrer. A morte apenas começa a ter um rosto, o nosso rosto, quando, à volta, os amigos morrem tão-só de morrer e os motivos por que morrem são uma explicação, não uma razão.
A mãe de minha mulher costumava dizer: «Os meus mortos...», e eu não compreendia. Hoje, porém, também eu tenho mortos. Quando o Chico morreu escrevi um poema a que pus o título de «O mundo sem o Chico», porque, descobri, a sua morte tinha levado o mundo consigo e o que me restava era um outro mundo, desconhecido e desabrigado, onde penosamente aprendia a viver outra vida, a minha vida. Depois disso, muitos mais mundos se foram desfazendo diante de mim e, de cada vez, fiquei mais só do lado de cá de qualquer coisa.
Antes de morrer com 16 facadas, numa longínqua auto-estrada da Turquia, Sérgio escreveu-me uma última vez. Uma carta trivial, dizendo coisas triviais sobre coisas triviais, como se não tivesse ainda morrido. A notícia da sua morte chegara, no entanto, primeiro do que a carta. Que podia eu fazer com ela, com a carta, com tanto peso, com tanta desmesura? Também Fernando me escreveu antes de se enforcar. Mandou-me um cheque. Emprestara-lhe em tempos dinheiro e ele esquecera-se de que já mo havia pago e pagava-mo de novo. Que podia eu fazer com um dinheiro tão insustentável como aquele?
E com os seus nomes, que poderei fazer agora com os seus nomes? E que outro nome terão agora o Fernando, o Sérgio, o Chico, o Assis, o Arnaldo, a Marcela, o Luís, o Manuel Hermínio e os outros? Abro a minha agenda telefónica e estão ainda todos paradamente lá, os nomes que um dia tiveram. Que poderei fazer com eles? Riscá-los? Apagá-los? São agora aparentemente inúteis, esses nomes e esses números. E, contudo, ali permanecem, alguns há vários anos. Porque se trata, cada um, de uma questão comigo mesmo, uma questão insolúvel, ainda não encerrada. Todos os anos copio outra vez os seus nomes. Porque ainda não me conformei.
Há de facto na morte algo de injusto e de inaceitável, e as nossas lágrimas são, acho eu, tanto de revolta quanto de dor. Assisti outro dia ao enterro do Manuel Hermínio. Meteram-no num buraco fundo e imenso e, enquanto o Sol declinava lentamente atrás dos pinheiros, três homens despejaram sobre ele terra húmida e pedras. Como poderia conformar-me?
Os meus mortos levaram consigo, de mim, palavras, memórias, dias, lugares, desígnios, incertezas; os seus olhos guardam para sempre o meu rosto, os seus ouvidos a minha voz. Também eu morri com eles, e também eu, o que fiquei, me perdi fora de mim. Onde quer que eles estejam agora, quem quer que sejam, estou, pois, junto deles. E pertencem-me, tanto quanto provavelmente eu lhes pertenço.

Visão, 14/06/2001
Manuel António Pina

quinta-feira, 5 de junho de 2014

TRÊS COELHOS DUMA CAJATADA


Quando um homem está a contar com uma coisa e lhe sai outra, fica sempre desconsolado. Foi o que aconteceu comigo nesta quadra natalícia. Estava a contar com neve. Afinal, o céu teimou em manter-se limpo, o sol a brilhar, a geada a cair. Uma espécie de Janeiro antecipado. Nos meus tempos de garoto, dias destes, só a partir do Ano Novo. Era então que o sol se tornava álgido, a lua altaneira, as geadas de palmo.
Foi por dias desses que eu aprendi a patinar no gelo. Nos lameiros onde eu guardava as vacas, nessa época do ano sempre encharcados, formavam-se grandes lagos de carambelo, verdadeiras tentações para umas acrobacias de patinagem artística, as quais, no meu caso, não tinham arte nenhuma. Aquilo era tombo que te parte, com grandes mossas no esqueleto, dum modo particular nas partes mais salientes, género cóccix e cotovelos. Por amor ao esqueleto, mudei de táctica. Em vez de esqui, passei a fazer escu. Consistia ele em cavalgar molhos de urzes ou giestas e descer as encostas vidradas a grande velocidade, rédea firme, tronco inclinado para trás, pernas em estradiota, goelas abertas, numa atitude selvagem, nem mais nem menos ridícula do que aquela que mais tarde vi fazer a pessoas mais civilizadas na montanha russa da Feira popular de Lisboa.
A brincadeira valeu-me alguns rasgões nos fundilhos, outras tantas bofetadas de minha mãe e ordens expressas de meu pai para me deixar de cavalgadas no gelo. E dado que meu pai não era de brincadeiras, eu passei a esconder-me para as fazer. Ia lá para uma touça com uma fonte e uma lameira em plano inclinado, sempre coberta de gelo e tão recatada entre urzeiras como o toucador duma gueixa entre biombos. Era aí que eu cavalgava matões a meu bel-prazer e à rédea solta.
Ora uma tarde em que eu me entregava ao meu desporto favorito e proibido, sai-me dentre as urzes o meu cão com um coelho na boca. Isto não teria nada de anormal se, atrás do coelho, não viesse uma ratoeira a rastos. Recolhi o coelho ao bornal, fiz umas festas ao Dezoito, que assim se chamava o cão, atirei com a ratoeira à lura dum carvalho antigo e com o assunto para trás das costas.
Era isto a um domingo e eu aluno da quarta classe. Vim para casa, meti as vacas, ceei mais cedo e fui dormir a S. Vicente, onde, segunda-feira, a professora exigia a nossa presença logo ao romper o dia. À hora do recreio, estava o meu vizinho Joaquim do Fontenova, praça velha, direito comigo. Pelos vistos, a ratoeira era dele. Neguei, claro.
— Ai sim? E onde foste tu pelo coelho que ontem trouxeste para casa?
— Agarrou-o o meu Dezoito.
— Na minha ratoeira?
— Não vi ratoeira nenhuma, já te disse!
— Acuso-te à professora.
— Acusa. Quero lá saber.
Nesta altura da discussão já estávamos rodeados por todos os alunos das quatro classes e uma boa parte dos vizinhos de S. Vicente. E até o senhor abade, que regressava do passal de cabeção, batina, tamancos e sacho às costas, quis saber que galega parira ali? Inteirado, pôs aquela cara de bondade e riso que era a dele e disse:
— Vá. Ide à vossa vida. Deixai-me aqui só com o Fontenova e o Marinheiro que lhes quero um segredo.
A malta dispersou. O pároco voltou-se para o Fontenova e inquiriu:
— Quantos coelhos tens em casa?
— Um.
— Não. Tu, às ratoeiras que armas todas as noites, deves ter mais?
— Bem. Se o senhor abade tem alguma incumbência, podem-se arranjar mais alguns.
— Quantos?
— Uns quatro ou cinco.
— Preciso apenas de dois.
— Onde quer que lhos deixe?
— Entrega-los aqui ao Marinheiro.
— Para quê?!
— Ele te dizer onde está a ratoeira.
— E o senhor abade fica por ele? — atalhei eu a rir-me.
Ele ameaçou-me com um tabefe:
— Anda, que tu és malandro, mas desta já eu te safei.
No domingo seguinte, estando eu no adro entre um ror de rapazes e homens à espera do toque de entrada para a missa, vem de lá o Faia de Travassos, sempre pantomineiro, bate-me duas palmadinhas nas costas e exclama:
— Ora aqui está o homem que matou três coelhos duma cajatada...


Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas de Barroso (p. 122 e ss.)

Coimbra, 5 de Junho de 1978.


ADEUS

É um adeus…
Não vale a pena sofismar a hora!
É tarde nos meus olhos e nos teus…
Agora,
O remédio é partir discretamente,
Sem palavras,
Sem lágrimas,
Sem gestos.
De que servem lamentos e protestos
Contra o destino?
Cego assassino
A que nenhum poder
Limita a crueldade,
Só o pode vencer
A humanidade
Da nossa lucidez desencantada.
Antes da iniquidade
Consumada,
Um poema de lírico pudor,
Um sorriso de amor,
E mais nada.

Miguel Torga

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Skaters (2011)



Descrição: Óleo sobre placa
Localização: colecção privada 
Autor: Manuel Alcorlo

sábado, 17 de maio de 2014

um homem sorri a morte -com meia cara


JOSÉ RODRIGUES MIGUEIS

um homem
sorri a morte

-com meia cara



 Editorial Estampa





IN MEMORIAM

DO

DOUTOR FRANCISCO PULIDO VALENTE,

mestre de médico e de homem,

E DO

DOUTOR Luís NAVARRO SOEIRO,

grande coração ao serviço das almas

J. R. M.






Ao traçar estas páginas de memória duma crise, entre tantas que talvez um dia reúna em maior tomo, punha-se-me este problema: até que ponto pode um escritor falar das suas experiências pessoais, sem incorrer na pecha de subjectivismo e sem ser indiscreto a respeito de si próprio? Será possível, nesta época e num meio como o nosso, avesso por tradição e preconceito à literatura de confissões, que tem enriquecido e ajudado a esclarecer tantas outras culturas, usar da franqueza de um Rousseau, de um Stendhal, de uma Bashkírtseva, para não dizer já de um De Quincey ou Baudelaire? Flaubert deixou-nos documentada a crise inicial de epilepsia, que tanto faz pensar na do Jean-Jacques das Confessions; de James Joyce esforçam-se os biógrafos por descrever-nos a cegueira e a úlcera gástrica; e Uriel da Costa, e Scott Fitzgerald? Indo ao extremo da indiscrição, quanto se não tem especulado sobre a «necrofilia» de Camilo ou a castidade de Júlio Dinis! Já houve quem «explicasse» a angústia de Antero pelo aperto do piloro ou do cárdia, não sei bem, e o seu suicídio — ó céus! — pelo aumento da pressão atmosférica. O sofrimento, como parte tecidual da existência, é um enigma que empolga os homens.
Mas, independentemente da desproporção dos casos, a questão peca pela base, pois não é do autor que aqui se trata, essencialmente, mas sim do que, na sua experiência pessoal, possa ser comum, comunicável, útil até, como exemplo e lição, aos demais homens. Estas não são confissões de egotismo, nem de actos ou pensamentos secretos, nem sondagens do «eu odioso», mas um caso humano narrado em primeira mão pela sua mais próxima testemunha, com a objectividade de um romance, e pretexto para agitar certos problemas tão gerais como a inquietação da doença e da morte, ou a atitude do indivíduo perante o sofrimento físico e o destino pessoal.
Sim, foi sobretudo para os hipocondríacos — os aterrados da doença, os obcecados do fim — que eu escrevi estas páginas de jornal; depois, para os que queiram saber como se reage num leito de hospital, quando a morte ronda; e talvez também para aqueles médicos a quem interesse saber como os vêem os seus doentes.
Procurei pintar um ambiente real: o dos hospitais numa grande metrópole moderna, onde a dor e a brutalidade, a doçura e o humor, e em particular a devoção dos médicos e das enfermeiras põem traços de tragédia e de epopeia, diante das quais o tema pessoal se apaga e some.
Que escritor, dispondo deste material de experiência vivida, recusaria tratá-lo com objectividade, pintando o cenário e os actores dum drama que diariamente se desenrola a nosso lado, mas ignorado ou esquecido, ou pudicamente velado pelos preconceitos? Não se escrevem porventura memórias de guerra, de masmorras e campos de concentração? E não será também saudável mostrar em que lamas o homem se arrasta ou mergulha por vezes, para delas se erguer e libertar, purificado?
O que importa ao escritor, subjectivador do objectivo, intérprete das reacções do indivíduo em face das calamidades que de todos os lados nos ameaçam, é recriar para os leitores o quadro das experiências de que foi o centro, dando-lhes a ilusão, porventura instrutiva, de serem eles os actores do drama.
Se, ao traçar alguns destes episódios, roço aqui além pela ironia, é sempre com profundo respeito e comovida gratidão que me refiro aos autênticos apóstolos da medicina que tenho conhecido. Os erros são de todos nós, humanos, e não seria de esperar que deles estivessem isentos os homens da bata branca. Nem de longe tentei reincidir na sátira de que há milénios eles têm sido alvo. Pode-se dizer dos médicos o mesmo que das mulheres e dos judeus: crivados, eles e elas, de epigramas e ataques, a humanidade não saberia nem poderia viver sem a sua presença.

J.R.M.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Coimbra, 15 de Maio de 1979.


UM POEMA DE AMOR

É um poema de amor.
Começa num sorriso promissor
E acaba num soluço
De saudade.
Entre essas duas margens,
Um rio de silêncio.
Um rio largo, onde se espelha, baça,
A paisagem severa de uma vida,
A que faltou a graça
Dessa remota hora repetida.

MIGUEL TORGADIÁRIO XIII

quarta-feira, 7 de maio de 2014

SE TE NÃO PODES DESFAZER DOS INIMIGOS, JUNTA-TE A ELES


Se os dias, como os substantivos, se classificassem pelo género, incluiria o de hoje entre os neutros. De manhã choveu e de tarde fez sol. Embora não seja homem de grandes afazeres, só pela noitinha pude sair de casa. O Outono está quase no fim, as árvores quase nuas e os caminhos atapetados de folhas. Gosto de as sentir debaixo dos pés. Criam-me a ilusão de passear por sobre as alfombras das salas, corredores e jardins privativos do sultanesco palácio que um dia o génio da lâmpada de Aladino me prometeu e até hoje ainda não cumpriu.
A quinhentos metros da aldeia, caí na solidão absoluta. Apenas um leve pipilar de aves que dir-se-ia vir ou fazer parte da terra. O poente enrubescia e a lua navegava alta por entre nuvens cor de chocolate com pinceladas laranja. Um fim de tarde de pastores enamorados, cavaleiros andantes, menestréis a dedilhar a tiorba e princesas elanguescidas ao balcão.
Vinha já de regresso, a pensar na morte da bezerra ou na minha, já me não lembro, surge-me pelas costas o Anacleto.
— Que andas por aqui a fazer a esta hora? — perguntou.
— Nada que me envergonhe. E tu?
— Venho ali do lameiro. E sabes o que fui lá fazer?
— Tornar a água.
— Mandinga aos porcos-bravos.
— Algum laço?
— Roupa velha.
— Restos de comida? É isso?
— Não.
— Homem explica-te por uma vez.
— Os tipos levam-me o lameiro virado. Vêm ao vezo dos niscros e da bolota e viram tudo. Se eu lá esconder umas peças de roupa usada, os gajos cheira-lhes a homem e fogem.
— Ora aí está um truque que eu desconhecia.
— Ficas a saber.
— Por falar em porcos. Já mataste?
— Eu agora já não mato. Os filhos estão todos para a França. A mulher não come carne de porco. Eu também não.
— Não gostas?
— Gostar, gosto. Mas o médico proibiu-ma. E olha que bem saudades tenho das matanças de antigamente. Aquilo é que eram festas! Ainda me lembro da primeira vez que matei. Como sabes, eu era um criado de servir. Não tinha onde cair morto, como se costuma dizer. Mas era apaixonadiço, namorei a minha Rosa e não tive outro remédio se não casar com ela. Fomos viver para uma corte cedida de esmola pela Viúva, boa mulher, Deus a tenha em bom lugar, que bem o mereceu. O espaço não era muito, mas a minha Rosa tanto insistiu que eu improvisei lá um cortelho para ela criar um reco. À força de leitugas e labrestos apanhados por esses lameiros de pasto e terras de centeio, castanhas, bolotas e batatas do rebusco, erva dessas bordas e o suprimento dumas malgas de grão e outras de farelo mendigadas pela minha Rosa por casa das lavradeiras a quem ajudava nas lides de casa, pudemos chegar ao São Martinho em condições de matar o nosso porquinho. Convidámos os meus sogros e quatro amigos para a matança. Fizemos tudo o que havia a fazer da parte da manhã e, ao meio-dia, estávamos à mesa. Julguei que os tipos, barba untada, barriga cheia, se fossem embora. Mas não. Só os meus sogros é que se retiraram. Os outros quatro puseram-se a jogar as cartas. Veio a merenda, veio a ceia, e os tipos não largavam. Acabaram-se as filhós de sangue, o sarrabulho, a coiracha, o fígado, os rins, o gorgomilo, tudo o que era do dia, e os tipos sempre a reclamar: «Então não há mais nada que se coma?» Comecei a desmanchar no porco. Lá para a meia-noite, rosnei ao ouvido da minha Rosa: «Vamo-nos deitar a ver se os alarves ganham vergonha e se vão embora.» E depois, em voz alta: «Bem, rapazes, desculpai lá, mas eu e a Rosa vamo-nos deitar.» «Ide. Ide, que nós cá nos arranjamos» — respondeu o que embaralhava. A minha Rosa, coitada, morta de fadiga, adormeceu logo. Mas eu não havia maneira de pregar olho. De golpe, saltei da cama, fui para junto deles e toca a dar ao dente... Não carai... E com esta me vou. Até logo.


Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas de Barroso (p. 122 e ss.)

sexta-feira, 18 de abril de 2014

O PÉ DESCALÇO


Há dias, estando eu a arrumar uns livros na estante, deparei com um datado de 1956 e o seguinte título: «O PÉ DESCALÇO — Uma Vergonha Nacional que Urge Extirpar». Fiz com ele o que as máquinas de contar dinheiro fazem com as notas de cem euros. Premi-o de encontro ao dedo e deixei deslizar as páginas. O suficiente para ficar a saber que, à data do meu nascimento, dois terços dos portugueses andavam descalços. E que, em 1928, a «Liga Portuguesa de Profilaxia Social», com sede no Porto, lançou uma campanha com o título supracitado.
Os argumentos eram de peso. Que «só em 1927 foram socorridas na Cruz Vermelha da Cidade Invicta, 600 pessoas com ferimentos nos pés», grande número das quais veio a morrer de tétano.
Que o vergonhoso hábito de andar descalço estava tão arreigado, que se viam raparigas com boas roupas, cordões de oiro ao pescoço e arrecadas nas orelhas e os pés nus. O mesmo nos rapazes. Bons fatos, gravata, correntes com grilhão no colete e pata ao léu.
Que o grande número de pessoas descalças por essas ruas e praças causava espanto e comentários desagradáveis nos estrangeiros que nos visitavam. Que só em Portugal e na África se viam coisas destas. Guerra ao pé descalço.
Lentamente, como quem rola um penedo encosta arriba, a «Liga» foi levando a cruz ao Calvário. Primeiro o governador civil do Porto, depois o de Lisboa, a seguir o de Coimbra, proibiram, sob pena de multa e cadeia, o pé descalço na rua. Os tribunais começaram a ficar entupidos com tanta gente levada a juízo. E o mais estranho é que, pelos relatos desses julgamentos, ficamos a saber que nas grandes cidades se andava descalço durante todo o ano.
Eu, por acaso, só andava descalço no Verão. Para o Inverno sempre havia uns tamancos amanhados pelo meu pai, a quem a necessidade obrigava às mais variadas artes, entre elas a de soqueiro. E francamente lhes digo que até gostava de andar descalço. Ao arrepio da sensação de grilheta causada pelo tamanco, a pata ao léu transmitia-me na rua, nos caminhos e nos montes, a sensação de leveza e graciosidade dum bailarino no palco. Só não gostava de duas coisas. Esborrachar o dedo grande de encontro às pedras e abrir gretas nas pregas interdigitais. Já viram o que era andar sobre lameiros de feno cortados de fresco? Os caules, rijos e feros como as cerdas da escova de ferro com que o Tomé da Volta, picador de burros afamado, almofaçava o fouveiro, enfiavam-se-me pelas gretas e punham-me a dançar o saricoté num pé. Valia-me então uma vizinha de porta a quem eu suplicava que me fizesse chichi nos pés. Ardia mas aliviava.
Chamava-se ela Marcelina e era dada na cédula de nascimento como nascida no mesmo ano que eu, e filha de pai incógnito e da cabaneira Ana Garcia, mais conhecida por Descalça.
Esta Descalça tinha apenas a casita, um hortejo, meia dúzia de galinhas e uma burra parideira.
As galinhas andavam por aí à vontade. A burra apascentava-a a filha pelos baldios da povoação. Eu, na altura pastor de vacas, repartia com ela a merenda e os brinquedos. Corríamos por aqueles campos, rebolávamo-nos na relva, riamo-nos muito. Não sei como é que os pardais escolhem companheira. Mas deve ser por qualquer coisa muito parecida com aquilo que me atraía para a Lina, a Descalça, antonomásia herdada da mãe, mas que na filha assentava a primor, uma vez que, da minha lembrança, nunca lhe conheci qualquer espécie de calçado. E o que ainda hoje me causa espanto é nunca ter visto nos pés da minha companheira de infância qualquer dedo esborrachado ou greta interdigital. À força de andar sempre descalça, criara na planta dos pés uma verdadeira sola, que lhe permitia correr por cima das pedras, tojos, silvas, ou qualquer outro obstáculo, sem se magoar.
O livro citado afirma que o pé da mulher descalço se esparrama, alarga, masculiniza, se torna nodoso, feio. Não é verdade. Pelo menos a meus olhos, o pé da Lina continuava bonito, harmonioso, elegante, feminino a mais não poder ser.
Com ele a minha amiga se sentiu feliz até aos catorze anos. Por essa altura sobreveio-lhe uma doença muito comum nas mulheres: a inveja. Via as filhas dos lavradores de sapatos na missa e nas festas e meteu-se-lhe na cabeça que também tinha direito a uns. Pediu-os à mãe:
— Oh, filha! E dinheiro?
— Deixe-me ir às segadas.
— Vou falar com o Marcelino.
O Marcelino era tio materno da Lina e capataz de seitoiras. Comprometeu-se a levar a sobrinha à Terra Quente. Partiram em fins de Maio e regressaram em meados de Julho. Graças à protecção do tio, a jovem Descalça foi e veio sem ter perdido a inocência e a alegria.
Juntara à volta de 500$00 de jeiras. Comprou sapatos, meias de vidro, vestido, arrecadas e deu o resto à mãe. Entretanto chegou a Senhora da Livração e Lina resolveu ir à festa e estrear os sapatos. Fui com ela. À pata e descalços, ela com os sapatos numa saca, à cabeça, e eu com os meus enfiados num pau, ao ombro. Entre Peireses e as Boticas medeiam uns bons quinze quilómetros de caminhos poeirentos. Chegámos num estado lastimável.
— Calçamo-nos Lina? — perguntei eu à entrada da vila.
— Mas eu queria lavar os pés para não sujar os sapatos. Não sabes onde haja por aí um tanque ou um rego?
Levei-a lá para uma represa onde, durante a festa, costumam colocar um São Cristóvão gigante com uma tranca nas unhas e o Menino Jesus ao ombro.
Desencardimos os pés, enfiámos os sapatos, corremos para o arraial. De repente a Lina levou as mãos ao peito e disse:
— Ai Jesus!
— Que foi?
— Falta-me o ar...
— Não me digas que respiras pelos pés?!
— Ai Jesus! — voltou ela, sentando-se no passeio.
Estava coberta de suores frios, lívida, mesmo aflita. Afligi-me também:
— Queres que te vá buscar um copo de água?
— Liberta-me dos sapatos se não abafo.
Retirei-lhe rapidamente os sapatos e as meias. Ela respirou fundo:
— Ai que alívio! Deus te pague.
Ficou um momento a olhar para mim com aqueles seus olhinhos garços, tão luminosos, expressivos e promissores como as mais belas manhãs de Abril. Depois começou a chorar.
— De que choras?
— Lá se foi a festa...
— Porquê?
— Já viste a figura? Tu de sapatos e eu descalça?
— Isso tem bom remédio.
Descalcei-me também e estendi-lhe a mão:
— Anda.
E começámos de novo a correr de mãos dadas, alegres, felizes e inocentes como dois pardais acabados de sair do ninho.

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas de Barroso (p. 118 e ss.)