terça-feira, 19 de abril de 2011

Os Cordoeiros: Segunda-feira, Abril 19 [2004]

Segunda-feira, Abril 19

A CUNHA

Na sua crónica de 15 de Abril, o meu amigo e conselheiro Artur Costa enfatizava a imperiosa necessidade de se fazer o que apodava de "crítica da nossa vida quotidiana". Lembro-me que, há semanas, o cronista criticava severamente o uso abusivo de telemóveis nos comboios acelerados de Lisboa/Porto/Lisboa, viagem que, por necessidade profissional, tem de fazer várias vezes por semana.
Artur Costa tem razão. É que, segundo as estatísticas, há dois milhões de portugueses a usar aquele aparelhozinho. E imaginem o que seria de todos nós se esses milhões se metessem agora a pressionar, simultaneamente, as teclas de tal peste. O país, num momento, arrepiava os cabelos face à poluição sonora, de altos decibéis, que constituíam tantas conversinhas de ouvido colocado àquilo.
Eu, que não sou conselheiro, nem lá me querem, nem tenho o brilho intelectual e cultural de Artur Costa, logo lhe saquei a ideia: a de tratar de uma coisinha do quotidiano, do nosso quotidiano colectivo, uma coisinha de somenos, mas que é capaz de estar mais instalada na vivência do dia-a-dia que o próprio telemóvel, não fazendo tanto barulho, mas corroendo mais, muito mais: A CUNHA.
Esta é o instrumento mais legal que se tem à mão para obter o deferimento de uma pretensão. É assim como que uma espécie de petição que se faz, sub-repticiamente, no local e à pessoa certa. Para obter uma autorização de obras, promoção num concurso, entrada numa carreira, etc., etc. Atropelando os outros. Vale para a Administração Pública e para as empresas privadas. Ali, o concurso é anunciado no Diário da República, aqui num dos jornais mais lidos da localidade. Mas toda a gente sabe que não é preciso possuir as atribuições que se exigem, desde que haja um amigo, um amigo do amigo que conheça quem manda. Os anúncios são mero pró-forma.
É claro que isto é mera confabulação minha, pois que, no jardim à beira-mar plantado, não há CUNHA, dado que, sendo esta legal, não é o democraticamente. E a nossa legalidade não é só legalidade, é legalidade democrática.
Eu sou um tipo zangado com a CUNHA, não aprecio atropelos à legalidade democrática, por isso que não gosto da legalidade da cunha. Quando faço um requerimento ao chefe de repartição de finanças lá do bairro, espero meses, anos, quando vou à conservatória, idem, quando concorro para um cargo, não tenho o apoio da maçonaria, nem da opus dei, nem dos partidos, nem do futebol. Fico sempre em último. Quem me ler, se alguém me ler, não faça como eu: introduza, no local certo e à pessoa certa, a CUNHA.
Narro um caso muito simples que, em tempos, me passou pelas mãos.
Era um processo de injúrias, ou difamação, daqueles em que se lavava a roupa mais suja que nem o detergente mais potente lhe tirou as nódoas O arguido, um engenheiro de certa autarquia que não menciono, não vá o Diabo tecê-las e enfiaram-me processo idêntico que as leis têm estas coisas: processam quem tem razão e condenam, sem dó, nem piedade… Pois nessa autarquia tudo corria às ordens do respectivo presidente, como ele queria que para isso os munícipes o elegeram: para mandar. Filha, secretária na câmara e pessoal, no escritório particular, familiares que ganhavam sempre os concursos para lugares na mesma câmara. Os eleitores encheram. Fizeram aqueles abaixo-assinados que não servem para nada, a menos que venham publicados nos jornais. Este não veio. Houve assembleias gerais. Aqui, o engenheiro despistou-se, disse as verdades, mas com aqueles termos que são muito genuínos e que nós, os juristas, dizemos serem "objectivamente injuriosos". Disse as empresas beneficiadas, falou, pudera!, no futebol. Juntou a papelada toda. Um escândalo. Num dos papéis dizia-se": "... Sr. eng. F... isto é uma cunha do secretário-geral do nosso partido. Veja o que, torneando a lei, se pode fazer... O presidente da... ". Em papel timbrado da câmara. O engenheiro foi condenado e o processo dorme o sono dos condenados no arquivo de certo tribunal que não menciono. Sou medroso.


Alberto Pinto Nogueira
# posto por Rato da Costa @ 19.4.04


"A Day in Court", by Jose S. Perez
(Imagem amavelmente cedida por AlVino)

# posto por Rato da Costa @ 19.4.04

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