quinta-feira, 14 de abril de 2011

José Saramago - Cadernos de Lanzarote

A partir de amanhã (15 de Abril de 1993) começarei a publicar neste local o primeiro Diário dos Cadernos de Lanzarote, de José Saramago. A primeira página tem a seguinte proposta.

A Pilar

Eu sou eu e a minha circunstância.
Ortega y Gasset

Este livro, que vida havendo e saúde não faltando terá continuação, é um diário. Gente maliciosa vê-lo-á como um exercício de narcisismo a frio, e não serei eu quem vá negar a parte de verdade que haja no sumário juízo, se o mesmo tenho pensado algumas vezes perante outros exemplos, ilustres esses, desta forma particular de comprazimento próprio que é o diário. Escrever um diário é como olhar-se num espelho de confiança, adestrado a transformar em beleza a simples boa aparência ou, no pior dos casos, a tornar suportável a máxima fealdade. Ninguém escreve um diário para dizer quem é. Por outras palavras, um diário é um romance com uma só personagem. Por outras palavras ainda, e finais, a questão central sempre suscitada por este tipo de escritos é, assim creio, a da sinceridade.
Porquê então estes cadernos, se no limiar deles já se estão propondo suspeitas e justificando desconfianças? Um dia escrevi que tudo é autobiografia, que a vida de cada um de nós a estamos contando em tudo quanto fazemos e dizemos, nos gestos, na maneira como nos sentamos, como andamos e olhamos, como viramos a cabeça ou apanhamos um objecto do chão. Queria eu dizer então que, vivendo rodeados de sinais, nós próprios somos um sistema de sinais. Ora, trazido pelas circunstâncias a viver longe, tornado de algum modo invisível aos olhos de quantos se habituaram a ver-me e a encontrar-me onde me viam, senti (sempre começamos por sentir, depois é que passamos ao raciocínio) a necessidade de juntar aos sinais que me identificam um certo olhar sobre mim mesmo. O olhar do espelho. Sujeito-me portanto ao risco de insinceridade por buscar o seu contrário.
Seja como for, que os leitores se tranquilizem: este Narciso que hoje se contempla na água desfará amanhã com a sua própria mão a imagem que o contempla.

Ilha de Lanzarote, Fevereiro de 1994. 

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